*Por Vítor Antunes
Hans Donner é uma imagem vincada à televisão. Especialmente por ter entre os seus projetos, dezenas de logotipos de novelas e programas, incluídos aí até mesmo a própria identidade visual da Globo. Ele também é idealizador de todas as vinhetas de abertura de novelas e programas entre 1976 e 2016. Exibida no “Vale a Pena Ver de Novo” desde dezembro, “Tieta” está na centralidade de uma grande polêmica. A abertura, protagonizada por Isadora Ribeiro, foi editada. Conversamos com o idealizador da abertura sobre duas questões que dominaram o debate público: a primeira era se seria apropriado exibir uma vinheta com nudez no horário vespertino, às 17h – “Tieta” foi transmitida originalmente no horário nobre, como uma novela das oito em 1989; a segunda, a solução encontrada pela Globo para resolver o impasse da vinheta. A emissora optou por reduzir a abertura original, que tinha 1 minuto e 20 segundos e para apenas 15 segundos. O resultado consistiu em um frame único que exibia os nomes do elenco, acompanhado por fragmentos mínimos da animação original. Para Hans, essa situação reflete uma mudança significativa na maneira como o público interpreta a arte criada para a televisão, especialmente quando há elementos que tangenciam a sensualidade. Ele não esconde sua frustração com o tratamento dado a uma de suas obras mais emblemáticas.
Éramos, então, mais modernos em 1989 do que hoje? Segundo ele, havia uma maior abertura para a conexão com a beleza feminina, com a natureza, especialmente em um tratamento visual no qual as pessoas enxergavam muito mais como arte do que como provocação sexual. “Acredito que o mundo ficou cada vez mais careta. Inclusive, creio que hoje as mulheres não iriam aceitar ser mostradas assim. Todavia, quando vi a abertura [na reprise do Vale a Pena Ver de Novo] desta forma castrada, me decepcionei. Só apareceu um pouquinho da árvore retorcida e, quando todo mundo esperava que fosse surgir um corpo escultural, ele não apareceu. Antigamente, era um tempo em que podíamos fazer “Globeleza”, “Pedra Sobre Pedra” e tantas outras aberturas, e sempre era possível valorizar a beleza das mulheres brasileiras, que são esculturas feitas por Deus. Outro dia, eu estava justamente fazendo uma lista de todas estas aberturas nas quais tinha a mulher como protagonista. Agora, se isso não é mais permitido, eu também não estou mais desse lado da tela. Então, cabe a mim me sentir feliz por ter vivido uma década em que inúmeros trabalhos nessa linha não incomodavam as pessoas”.
Quando Hans Jürgen Josef Donner chegou ao Brasil vindo da Áustria, muito pouco se sabia sobre design no Brasil, menos ainda sobre o que realmente significava a prática dessa disciplina sob um âmbito mais popular e especialmente no seu uso na televisão. Naquela época, a própria logo da Globo era um grafismo simples e característico dos anos 1970, representado através de um globo terrestre. Foi à sua chegada ao Brasil em 1975 e diante de sua contratação pela emissora carioca que a TV passou por uma transformação em sua identidade visual: o logotipo da Globo ganhou um formato tridimensional e colorido – com as cores azul e branco – em um contexto no qual a televisão brasileira ainda era, em grande parte, transmitida em preto e branco. Entre seus trabalhos mais memoráveis Hans estão a abertura de Tititi (1985), em que tesouras e fitas métricas ganhavam vida, movimentando-se de forma sincronizada em meio a tecidos. Ele também foi responsável pela inovadora abertura de Elas Por Elas (1982), em que fotografias se transformavam magicamente em vídeos. Outra é a de Tieta, atualmente reexibida no Vale a Pena Ver de Novo.
Hoje não há mais a mesma liberdade criativa e financeira que eu vivi. Não tem mais um Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, ex-diretor da Globo), que dizia: “Pode gastar, contanto que seja o melhor do mundo.” A televisão não vive mais o que era; o mundo não é mais assim. Além disso, tudo que hoje se faz com Inteligência Artificial, com o apertar de um botão, impressiona. Mas, meus trabalhos eram feitos em uma fase de grande inovação, na qual a Globo se tornou, justamente com esses trabalhos, a televisão mais sofisticada do mundo – Hans Donner
O designer relembra, então, a sua primeira abertura na qual já lançava mão da sensualidade como signo – e teve como resposta a dureza da Censura. “Fiz, em 1979, uma mulher saindo de dentro da banana, no humorístico Planeta dos Homens. Quando foi ao ar, os militares pediram para mudar, porque ela usava um biquíni pequeno. Eles censuraram, e eu fiz uma versão com um biquíni maior. Pior ainda foi em “Brega & Chique”, quando coloquei um homem que saía nu, depois de um desfile de mulheres maravilhosas, fingindo que colocava a mão no bolso, saindo de costas. Naquela época, também chegou de Brasília a exigência de que eu seria obrigado a colocar uma folha de parreira na nádega do ator Vinícius Manne, na vinheta. Eu não sabia o que fazer. Coloquei uma folha de parreira grotesca, de um tamanho bem grande. Quando foi levada ao ar, eles pediram para reduzir. Quando eu reduzi, no final disseram: “Ah, deixa, não precisa mais colocar censura”.
Essa foi a minha experiência de ter vivido, naquele momento, censurado pelos militares. Agora, sou censurado por um mundo que mudou – Hans Donner
Após anos trabalhando na TV, Hans Donner pontua que hoje não assiste mais novelas e está voltado muito mais para trabalhos fora das telas. Inclusive, não tem acompanhado o que estão fazendo com a suas marcas. Ele está mais direcionado a grandes projetos de arquitetura e levando o design foi para uma dimensão palpável, segundo diz. Ele também está voltado a dedicar-se às palestras sobre o design e possui projetos no ramo imobiliário em Goiânia, com a construtora Seren, de projetos de cortinas com Hunter Douglas; design de Móveis com a Mittisa, de tapetes com a Tapetah; luminárias, numa collab com a Monclair e relógios, numa parceria com o São Paulo Futebol Clube.
Outro assunto que Hans trouxe à cena diz respeito ao debate dentro da estética do design contemporâneo, inclusive, o abandono da perspectiva, da sombra e do 3D. Tudo agora é excessivamente flat, chapado. Para Hans isso é algo como “reproduzir a perfeição da mulher brasileira que já inspirou Oscar Niemeyer (1907-2012) sem curvas. Foram os degradês que me inspiraram a criar a marca da Globo em 3D. Isso, com certeza, trouxe muita beleza, porque qualquer coisa com volume 3D é mais atraente do que algo flat. Sei que a Globo tentou seguir a linha da Microsoft e, de repente, todas as marcas deixaram de ter 3D, apoiando essa estética. Mas me parece que isso já está acabando, e que há um retorno à beleza volumétrica”.
Ao ver de Hans, a fase em que pôde exercer seu ofício era uma época em que a televisão dispunha de grandes recursos e de criatividade é única. E essa é a sua compensação. Ter podido emprestar sua assinatura para essa ode à beleza e ao arrojo estético. “Com certeza, vivi minha fase, nos anos 80, no melhor lugar do mundo, na melhor empresa do mundo, com os homens mais brilhantes, que sabiam dar asas para voar, tanto em termos de criatividade quanto financeiros. Isso permitiu que a Globo se tornasse uma televisão sofisticada. Não são palavras minhas, mas das críticas, exposições e palestras ao redor do mundo”.
Quando Hans se formou, em desenho gráfico, as imagens eram estáticas. Na TV e especialmente na brasileira, ele fez com que as mesmas formas ganhassem forma e movimento. Na terra do samba, um europeu chamou as logomarcas à dança. As letras no logotipo de “Água Viva“, são velas de windsurf que continuam ao sabor do vento. Numa entrevista de 1980 a O Globo, ele próprio diz que a ideia, quando desenha uma marca, é “sair do simples”. E hoje, em várias formas de linguagem, impera, justamente, o encontro ao mediano, ao simples – e até ao simplório. Numa comunicação imagética que pauta na falta de coragem, a ousadia acaba acossada pela mediocridade. Que falta faz um chacoalhão criativo na TV moderna… Que falta faz Hans Donner!
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