Festival do Filme de Locarno começa hoje com Meryl Streep e a celebração de “Bloody Sam”, o cineasta da violência em câmera lenta


Um dos mais antigos festivais do mundo chega à 68ª edição prestigiado também por astros do calibre de Edward Norton e Andy Garcia, e com homenagens a diretores polêmicos como Marco Bellocchio, Michael Cimino e Sam Peckinpah

*Por Flávio Di Cola, diretamente de Locarno

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O ano de 1946 foi um marco para a história do cinema nos dois lados do Atlântico. Enquanto a indústria norte-americana alcançava o seu pico econômico registrando mais de 80 milhões de ingressos vendidos por semana em seus 20.000 cinemas, na Europa, o primeiro “verão da paz” via surgir em questão de poucos dias de diferença três grandes festivais – o Festival do Filme de Locarno, em 22 de agosto; a Bienal de Veneza (criada durante o regime de Mussolini, mas interrompida durante a guerra), em 31 de agosto; e o Festival Internacional de Cannes, em 19 de setembro. Todas essas iniciativas eram sinais inequívocos de que os europeus desejavam ardentemente restabelecer a normalidade da vida depois da hecatombe representada pela Segunda Grande Guerra, enquanto arquitetavam a reconstrução da sua cinematografia devastada pelo conflito. Durante essa virada de página da história, os eventos no formato de festivais assumiram um papel crucial como passarela e para a legitimação dos novos tempos. E Locarno, uma das mais lindas cidades da Suiça, localizada no cantão Ticino, às margens do Lago Maggiore, de fala italiana, saiu – de fato – na frente, dando-se ainda ao luxo de recepcionar estrelas como Alida Valli e o ator-diretor Vittorio De Sica naquele remoto ano de 1946.

As exibições ao ar livre na Piazza Grande para 8 mil pessoas são o ponto alto do festival

Ao longo das décadas seguintes, o Festival de Locarno passou a hospedar e a revelar não só algumas das principais transformações e tendências do cinema europeu como também de toda a cinematografia mundial. Nele alcançaram merecido reconhecimento ou decisiva visibilidade para o futuro de suas carreiras, nomes como Michelangelo Antonioni, Marco Bellocchio (um dos diretores homenageados desta edição), Milos FormanLina Wertmüller, Spike Lee, Jim Jarmusch, Joe Dante, Ang Lee, Abbas Kiarostami e Ken Loach, entre outros.

Para conseguir chegar a este 68º ano de existência, Locarno teve de seguir rigorosamente a cartilha de sobrevivência necessária a todo grande evento cinematográfico que precisa competir com milhares de outros festivais que brotaram como cogumelos depois da chuva na esteira da implacável cultura audiovisual planetária instituída pela revolução digital e que acabou virando de cabeça para baixo as formas de distribuição e exibição de imagens mundo afora. O próprio diretor artístico do festival, Carlo Chatrian, reconhece que o cinema tal qual existia até o final do século 20 perdeu a sua primazia e não é mais “a casa do mundo”, enquanto que – por outro lado – ele arrisca a afirmar que nunca “o mundo preciso tanto de uma casa” para reencontrar o afeto perdido. Por isso, o slogan “La casa delle immagine” (A casa das imagens) para conceituar a edição desta festa do cinema em Locarno.

Mas toda festa de grandes proporções precisa de convidados famosos para dar certo e repercutir. E onde achá-los? Em Hollywood, é claro. Pois bem, o filme escolhido para a abertura do festival (mas fora de concurso) em exibição aberta ao público na Piazza Grande, hoje à noite, tem como estrela ninguém menos do que Meryl Streep. Ela é a protagonista da comédia musical “Ricki and the flash” (2015, Sony-TriStar Pictures), dirigida por Jonathan Demme, o mesmo dos mega sucessos “O silêncio dos inocentes” (1991), “Filadélfia” (1993) e “O casamento de Rachel” (2008). Aqui, a premiadíssima atriz volta a contracenar pela terceira vez tanto ao lado de Kevin Kleine – com quem já dividira os louros pelo êxito de “A escolha de Sofia” (1982) – como da sua filha mais velha Mammie Gummer.

Em “Ricki and the flash” que abre o festival deste ano,  Meryl Streep é a roqueira gênero “anos 70” que joga tudo para alto a fim de buscar a fama, mas que precisa voltar para consertar o estrago deixado para trás. Confira o trailer:

A invasão de nomes vistosos do “cinemão” não para em Meryl Streep: o respeitado ator, diretor e ativista de causas ambientais Edward Norton – astro de “Clube da Luta”, “Frida”, “O incrível Hulk” e “Birdman” entre outros filmes emblemáticos do mainstream – também estará presente à abertura do festival, mas na qualidade de homenageado através do “Prêmio de Excelência Moët & Chandon”.

Edward Norton, que será homenageado hoje à noite em Locarno, em cinco grandes momentos:

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Já o troféu honorífico “Clube Leopardo” foi reservado para Andy Garcia, catapultado aos céus hollywoodianos depois de “Os intocáveis” e “O poderoso chefão: parte III”. Ele vem a Locarno para conversar com o público no próximo sábado.

Andy Garcia também está na lista dos homenageados do 68º Festival do Filme de Locarno.
Embora de origem cubana, ele se destacou mesmo no papel de italianos. Confira:

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No campo das homenagens aos cineastas, Hollywood também não deixou por menos: o genial e genioso diretor Sam Peckinpah (1925-1984) será objeto de uma retrospectiva tão merecida como completa de sua obra durante estes dez dias de festival – de 5 a 15 de agosto. Thrillers e westerns como “Meu ódio será sua herança” (The wild bunch, 1969), “Sob o domínio do medo” (Straw dogs, 1971) ou “Os implacáveis” (The getaway, 1972) encenaram a violência num grau jamais visto antes no cinema, além de coreografada e prolongada através de recursos técnicos e de estilo que lhe valeram ao diretor um título muito apropriado para quem também brigava com todo mundo, dentro e fora dos sets: “Bloody Sam, o poeta da violência”.

Um dos mais violentos tiroteios (mas seguramente o mais estiloso) da história do western está em “Meu ódio será sua herança” (1969) de Sam Peckinpah. Confira:

Michael Cimino é outro diretor controverso com trajetória complicadíssima na grande indústria que receberá honrarias por aqui. A ele foi destinado o “Pardo d’Onore Swisscom” cuja entrega será no próximo domingo. Para alguém – como Cimino – que num piscar de olhos passou do céu, com o sucesso estrondoso de “O franco atirador” (The deer hunter, 1978), ao pior dos infernos com o desastre de “O portal do paraíso” (Heaven’s gate, 1980) – responsável pela falência da United Artists e pelo encerramento das estripulias dos jovens gênios da Nova Hollywood – deve ser mesmo um bálsamo receber honrarias como essa que coincidem com o reconhecimento tardio das qualidades artísticas do filme que afundou a sua carreira.

O leitor deve estar estranhando marcas como Moët & ChandonSwisscom estarem nominalmente associados a cobiçados prêmios honoríficos. Há muito que esse matrimônio de gigantescas corporações globais com o mundo dos espetáculos se alastra em todos os grandes e caríssimos festivais de cinema. No caso de Locarno, o elenco de patrocinadores também inclui a UBS-Union des Banques Suisses, ToyotaBally, La Posta (Correios Suiços), entre outros. Como ficou longe a austeridade da primeira edição de 1946 do Festival de Locarno em que a falta de dinheiro restringiu as cerimônias a um singelo baile inaugural!

Na verdade, esses patrocinadores são imprescindíveis não só para sustentar a estrutura, digamos “espetacular” do evento, como também para possibilitar aos organizadores a abertura de novas frentes de exibição e apoio ao cinema como arte e expressão. Sim, por que além da seção principal do festival – o “Concorso Internazionale”, que confere o cobiçado “Leopardo d’Oro” – o Festival de Locarno abriga mais onze setores, como aqueles dedicados a curta-metragens, a documentários, a novas narrativas, a laboratórios e oficinas. É nesse universo que o cinema brasileiro conseguiu, nesta edição, vários espaços para se projetar. Na seção “Pardi di domani”, voltada aos curtas, estamos duplamente representados por “História de uma pena”, do diretor cearense Leonardo Mouramateus, com Jesuíta Barbosa, o jovem ator lançado em “Praia do Futuro” (2014), e pela produção gaúcha “O teto sobre nós”, de Bruno Carboni, ex-aluno do curso de cinema da PUC do Rio Grande do Sul.

Mas a presença brazuca não se esgota com esses jovens talentos: o cineasta Julio Bressane, cuja carreira atravessa quase cinco décadas em que despontam filmes como “Matou a família e foi ao cinema” (1969), “Tabu” (1982) e “Cleópatra” (2007), presidirá o júri da seção “Concorso cineasti del presente”. Enquanto o filme “Acorda Brasil” (ou “Heliópolis”, 2013), do diretor Sérgio Rezende – o mesmo de “Cidade Baixa” (2005) – e protagonizado por Lázaro Ramos terá a honra de ser exibido ao ar livre, em plena Piazza Grande na manhã do dia 14 de agosto.