Exclusivo! Em meio à corrida para o Oscar, Anna Muylaert repercute sucesso e desabafa sobre machismo: “Olhei em volta e só vi homens engravatados”


Em uma conversa franca, a diretora de “Que horas ela volta?” – longa-metragem escolhido para representar o Brasil na seleção dos indicados ao prêmio máximo do cinema, na categoria Melhor Filme Estrangeiro – fala sobre a atuação de Regina Casé, como enfrentou a discriminação ao protagonismo feminino na indústria audiovisual e a polêmica envolvendo os colegas Lírio Ferreiro e Cláudio Assis e ainda como sonhar com a estatueta de ouro

Em 2015, um dos maiores destaques da indústria cinematográfica foi “Que horas ela volta?” (The second mother), o drama sensível, delicado e altamente crítico dirigido por Anna Muylaert e escolhido para representar o Brasil na corrida pelo Oscar 2016 de Melhor Filme em Língua Estrangeira. A película passará agora pela avaliação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que vai selecionar nove produções estrangeiras. Desse grupo, saem os cinco finalistas. Além de lançar um retrato social claro – principalmente para a parcela do público que não pretende fechar os olhos diante da situação -, o longa-metragem ainda teve um papel fundamental de trazer de volta às telas de cinema o talento de Regina Casé – com o reconhecimento tanto do público quanto da própria atriz que prometeu nos brindar novamente com sua atuação em longa-metragens. Do Festival de Sundance, em Utah, nos Estados Unidos, ao Festival de Berlim, na Alemanha, passando por diversas salas de exibição da Europa, a produção e o tema abordado na história têm sido discutidos, mostrando o caráter universal do trabalho da cineasta. E a afirmativa anterior se provou mais uma vez verdadeira durante o 19º Brazilian Film Festival of Miami, no qual o título bateu o recorde de público, no Colony Theatre, em Miami Beach, ao encerrar o evento.

HT conferiu in loco mais uma edição de uma das principais vitrines do cinema nacional mundo afora pilotado pela Inffinito, das produtoras Adriana e Cláudia Dutra + a sócia Viviane Spinelli, e sentou-se para uma conversa franca com Anna Muylaert. Ao longo do papo, a diretora falou sobre a recente polêmica envolvendo os colegas Lírio Ferreira e Cláudio Assis, durante um debate pós-sessão no Recife, os prazeres e desafios de dirigir Regina Casé, os bastidores do mundo do cinema, um ambiente amplamente machista, e, dentre outros tópicos, a campanha para o Oscar 2016, que continuou a todo vapor ali mesmo, nos Estados Unidos, com uma maratona de entrevistas. “Meus dias em Miami Beach foram, basicamente, de mil e uma entrevistas. Recebi inúmeras solicitações de TVs, jornais, sites e rádios americanas. Ao longo dos três dias, foram cerca de 20 entrevistas”, comentou.  Só para você ter uma ideia: o filme foi vendido para mais de 30 países, entre Europa, América, África e Oriente Médio. Na Itália foi lançado em 70 cidades no início de junho, alcançando a 8ª posição do ranking dos filmes da semana. Já na França o lançamento ocupou 190 salas com cópias em 90 cidades. Com apenas quatro semanas de exibição internacional na França a produção superou a marca de 150 mil ingressos, número próximo do sucesso de “Cidade de Deus” no país. Regina Casé e Camila Márdila dividiram o prêmio especial do júri do Festival de Sundance de Melhor Interpretação Feminina em Filme Estrangeiro. O longa concorria com mais 12 filmes do mundo todo na categoria World Cinema. Em Berlim, “Que horas…” ganhou o prêmio da Confederação de Cinemas de Arte e Ensaio na seção Panorama.

Anna Muylaert durante o 19º Brazilian Film Festival of Miami (Foto: Bella Tavares)

Anna Muylaert durante o 19º Brazilian Film Festival of Miami (Foto: Bella Tavares)

De acordo com Anna Muylaert – diretora dos consagrados “Durval Discos” (2002) e “É proibido fumar” (2009) -, a imprensa norte-americana quer saber de tudo sobre a sua trajetória profissional de 30 anos de labuta e muito mais, claro, incluindo o incidente no Cinema do Museu de Recife, no fim do mês passado, no qual “Que horas ela volta?” foi homenageado e, em um debate posterior à exibição, os cineastas Lírio Ferreira e Cláudio Assis interromperam as falas da diretora com a plateia e, um deles, chegou a criticar o físico de Regina Casé. “Eles estavam bêbados, como sempre, mas queriam prestigiar o longa. Gritavam: ‘É o filme do ano!’ etc., mas o problema é que se tornou algo invasivo e, por mais que as pessoas tentassem fazer com que eles parassem, não pararam. Tudo bem, né, foi como eles sempre fazem. A diferença é que no dia seguinte, de manhã, o Thales Junqueira, diretor de arte do meu filme, escreveu no Facebook que o que ocorreu foi “um show de machismo escandaloso e gordofobia, porque chamaram a Regina Casé de gorda, e que eles impediram uma mulher diretora de falar. Daí, eu respondi que, realmente, é difícil para o homem ver a mulher no papel de protagonista. Ele só aceita quando ela é sua coadjuvante. Então, isso deu uns 500 shares, chegou à imprensa brasileira e até aqui nos Estados Unidos estão falando a respeito”, explicou Anna, acrescentando que continua amiga de ambos os diretores e que recebeu os pedidos de “desculpas”.

Em frente ao Colony Theatre, Anna Muylaert fala sobre "Que horas ela volta?" durante passagem por Miami Beach (Foto: Heloisa Tolipan)

Em frente ao Colony Theatre, Anna Muylaert fala sobre “Que horas ela volta?” durante passagem por Miami Beach (Foto: Heloisa Tolipan)

Anna explica, com a voz firme e decidida, que aproveitou o episódio para direcionar seu discurso a algo maior, que assola não só a indústria audiovisual, mas a sociedade contemporânea de forma geral: os empecilhos para que o protagonismo feminino seja uma realidade recorrente. “Eu nunca havia sofrido machismo na minha carreira, mas como esse filme chegou a um nível internacional em questão de premiação e de venda, me vi em um momento no qual olhei para os lados e só tinha gravatas à minha volta. A mulher já tem um excesso muito forte de humildade, tendendo a uma subserviência e baixa autoestima. Isso doeu muito, porque foi um choque. Quando uma pessoa escreve, dirige e co-produz um filme, é difícil imaginar que alguém vai tentar até receber um prêmio em seu lugar”.

A cineasta revelou que já previa o reconhecimento para o longa-metragem desde o início e, após a reação do público, houve a concretização do fato ao ser informada que o seu longa-metragem foi escolhido para representar o Brasil na pré-seleção aos indicados ao Oscar. “Eu fico feliz, mas isso é uma escolha do nosso país, por enquanto. Agora, vamos trabalhar para tentar conseguir a vaga”, disse a diretora, que ainda não está “gastando energias” para pensar sobre discurso ou como irá à festa de premiação caso o filme esteja entre os cinco finalistas. “Será feita uma grande campanha com screening para a comissão da Academia, depois temos que alugar alguns teatros e fazer mais screenings, divulgar bastante, fazer entrevistas… Tudo que tente chamar bastante atenção dos votantes da categoria, para eles poderem sentir o filme e escolhê-lo. É uma campanha de verdade”.

Anna Muylaert fala sobre o seu filme para a imprensa americana sob os ouvidos atentos dos atores Suzana Pires e Fabrício Boliveira, da diretora do BRAFF, Adriana Dutra, e do curador Ricardo Cotta (Foto: Bella Tavares)

Anna Muylaert fala sobre o seu filme para a imprensa americana sob os ouvidos atentos dos atores Suzana Pires e Fabrício Boliveira, da diretora do BRAFF, Adriana Dutra, e do curador Ricardo Cotta (Foto: Bella Tavares)

Agora, você confere o que Anna Muylaert tem a comentar sobre seus projetos futuros, a forma como diferentes classes sociais têm reagido a todas as cenas de “Que horas ela volta?”, por que precisa de um descanso após rodar os filmes e como anda a indústria cinematográfica nacional.

HT: São 30 anos de carreira como Anna Muylaert e, agora, um filme que foi escolhido para representar o Brasil a uma vaga de finalista à corrida pelo Oscar 2016. Como isso repercute na Anna mulher e na Anna diretora, autora e produtora?

AM: Olha, eu estou ótima. Acho que tudo está muito bem agora. Eu estou feliz, namorando, meus filhos estão bem também…

HT: O que vem pela frente depois de você lançar um dos filmes mais elogiados do ano?

AM: Eu acabei de rodar outro longa-metragem “Mãe só há uma”. Foi quase praticamente um trabalho simultâneo a “Que horas ela volta?”. O elenco conta com Matheus Nachtergaele, Daniela Nefussi, que faz as duas mães, mas ninguém percebe que é a mesma atriz, de tão boa que foi a performance. Daniel Botelho, pequeno geniozinho de 13 anos, Luciana Paes, outra que eu amo. A história é sobre um adolescente que tem uma vida normal, mas ele toma um susto e chega com a mãe na delegacia por uma denúncia de que ele não seria mesmo filho da mãe que o criou. Depois de um teste de DNA, ele descobre que realmente não tem nenhum laço sanguíneo com ela e, enquanto ela é presa, ele vai para uma nova família. É um drama adolescente, mas que aponta para a fraternidade, porque na nova família surge um irmão como uma porta para a amizade. Na realidade, dois adolescentes se encontram em uma tragédia familiar e descobrem que são irmãos.

Anna Muylaert fala sobre "Que horas ela volta?" no encerramento do 19º Brazilian Film Festival of Miami (Foto: Divulgação)

Anna Muylaert fala sobre “Que horas ela volta?” no encerramento do 19º Brazilian Film Festival of Miami (Foto: Divulgação)

HT: O que você tem a comentar sobre a diferença de reação entre os públicos da classe A e C que conferiram “Que horas ela volta?”

AM: Olha, em Berlim e em Sundance, eu vi que há cenas que sempre receberam aplausos. A do pedido de casamento é uma delas. No Brasil,  quando a personagem Jéssica (interpretada por Camila Márdila), filha da empregada doméstica Val (Regina Casé), passa no vestibular, eu senti que há salas que vibram como se fosse um gol e outras que reagem com risadinhas. E aí dá para você saber perfeitamente o que essas pessoas estão pensando. Isso no nosso país. No exterior, eu nunca vi reagirem a uma cena como esta desta maneira. São os tais preconceitos e desigualdades…

HT: O que você sente a cada término de filmagem?

AM: Depende muito. Cada filme é um processo diferente. No “Que horas…” foi muito forte, me senti muito realizada, tinha certeza que era um filme bom. Ao mesmo tempo, não estava tão feliz na vida pessoal, porque já estava solteira há quatro anos. Mas… conheci o Luciano Bortoluzzi no set de filmagem.

HT: Como foi esse encontro?

AM: Eu chamei meu pai de santo para benzer o set antes de rodarmos e Luciano chegou lá com cerca de 20 pessoas, tambores e tudo o que tem direito à beira da piscina na qual gravamos. Abençoaram o set, as câmeras, cada pessoa da equipe, com exceção da Regina Casé, que não estava presente, cantando uma música sagrada. No meio dessa alegria e do bem estar gerado, eu vi um cara de óculos no tambor e fiquei apaixonada. Dois meses depois, eu o procurei no Facebook. Dei “Parabéns” na data do aniversário, começamos a conversar e foi isso.

HT: Toda a energia e o gás do amor proporcionaram mais certeza na hora de apostar no filme?

AM: Na verdade, foram dois momentos separados. O filme eu já sabia que seria muito bom. Mas, o Luciano me trouxe uma alegria. Quando olho para trás, acho que Deus fez certo, porque minha concentração no filme foi de 24 horas por dia. Eu dei meu sangue ali. Chegava em casa e pensava naquilo, pensava, pensava, pensava… Tudo era muito delicado. Por exemplo, a cena em que a Camila senta na mesa pela primeira vez e a Val entra, nós ensaiamos sem a presença da Regina. Então, quando rodamos com a protagonista, ela estava tão brava, com um olhar tão fuzilante, que a Camila nem se atreveu a levantar. Então, eu ficava checando e analisando esses detalhes. Quando acabou o processo, eu era um caco, pessoalmente falando. Cada cena ali tem tudo de mim.

Regina Casé como a empregada doméstica Val de "Que horas ela volta?" (Foto: Reprodução)

Regina Casé como a empregada doméstica Val de “Que horas ela volta?” (Foto: Reprodução)

HT: Trabalhar com Regina Casé e ouvir, no final, ela dizer que quer fazer mais filmes por ter participado da sua produção… como se sente?

AM: Estou muito feliz. Acho que, assim como eu dei tudo de mim, a Regina também deu tudo dela. Entendo que deve ter sido um sacrifício muito grande, porque ela havia adotado um bebê em outubro e, em janeiro, já estava filmando. Ela foi muito brava e corajosa. Ninguém com um bebê de nove meses quer passar o Verão em um set de filmagem montado em casa no Morumbi, né?

HT: Como foi o esquema que você organizou para ela no set?

AM: Quando achamos a casa, eu, que já fui uma mãe muito apegada, protegi a maternidade naquele momento. Separei até o quarto de casal para ser o camarim de Regina, assim o bebê poderia ficar mais à vontade nos dias em que acompanhava. Mas foi um filme muito sacrificante para ela, a produção não tinha o nível com o qual ela está acostumada na Globo. Por exemplo, não tínhamos ar condicionado. E ainda tinha o figurino, a caracterização da personagem. É algo muito diferente da figura da Regina, sempre jovial, com os cabelos soltos etc. Mas o retorno está aí. Ela está vendo a reação e consagração ao seu trabalho. Acho que ela está muito feliz e satisfeita com o resultado.

HT: E a relação Regina-diretora? Como foi dirigir Regina Casé?

AM: O meu modo de dirigir é igual para todos. Eu chamo atores inteligentes, que são autores também, e possíveis de recriar a cena junto comigo. Aquele ator que espera ordem não serve para mim. E, nesse filme, todos eles são inteligentes. Cada um trouxe um pouco de si para o personagem, inclusive a Regina. Ela tem um arquivo de gestos, expressões e palavras. E eu só precisava dizer: “Vai, Regina, voa!”. E ela vendo que podia, ia sempre para mais longe. Óbvio que eu tinha uma visão muito clara sobre como deveriam ser as cenas e, com todos os atores, precisei falar que não era de tal ou tal jeito. E há também o já famoso caso do take em que a Regina não queria entrar na piscina, no final. Ela falava que a piscina estava muito fria, que ninguém iria entrar, enquanto tentávamos convencê-la. Aceitou e foi “a” cena do longa. Mas o resultado é uma obra-prima, emocionante.

Anna Muylaert comenta o talento de Regina Casé como atriz: "Ela tem um arquivo de gestos, expressões e palavras" (Foto: Reprodução)

Anna Muylaert comenta o talento de Regina Casé como atriz: “Ela tem um arquivo de gestos, expressões e palavras” (Foto: Reprodução)

HT: Sobre o cinema no Brasil. É possível viver trabalhando com audiovisual no país?

AM: Eu vivi. Criei meus filhos fazendo cinema e televisão. Mas esse projeto foi o mais difícil que eu tive em termos de grana. Mas, acho que foi assim para todo mundo. Foi um ano muito difícil.

HT: Como você arregaça as mangas e parte para um novo projeto?

AM: Agora, antes de eu arregaçar as mangas, vou ter que parar um pouco, sem dúvida. Se eu for direto para outro projeto, será um filme ruim. Quero passar pelo menos uns seis meses adquirindo novas energias.

HT: Essa é uma parada pessoal ou em função da situação difícil do país?

AM: Dez anos atrás, eu fui para Paraty com meus filhos após uma década de trabalho contínuo. Meditei e fiquei em uma casa e à beira da cachoeira… Passei um ano lá, para ficar calma. Aprendi a cozinhar, meus filhos lavavam a louça, arrumavam a cama… Vivenciaram a relação mãe e filho. Houve a construção de uma intimidade muito forte.

HT: Hoje, em 2015, o que o governo faz para as artes efetivamente?

AM: Vários editais, fundo setorial da Ancine. Algumas pessoas ainda tentam fomentar a indústria. Há também esses editais de desenvolvimento de série de TV… Ninguém quer arriscar dinheiro privado a não ser uma distribuidora ou outra.

Vivianne Spinelli e Adriana Dutra cumprimentam Anna Muylaert antes da exibição de "Que horas ela volta?" (Foto: Bella Tavares)

Vivianne Spinelli e Adriana Dutra cumprimentam Anna Muylaert antes da exibição de “Que horas ela volta?” (Foto: Bella Tavares)

HT: Você está preparada para subir ao palco e receber um Oscar pelo Brasil?

AM: Claro que não. Isso ainda é uma hipótese. Se tivermos uma nomeação de fato, me prepararei para isso.

HT: O que você acha sobre essa realidade, em que uma empregada abandona a filha para criar outra criança? Acha que isso acontece em outros lugares do mundo?

AM: Estranhamente, acontece. No México e em vários países da Europa também acontece o mesmo, inclusive na Ásia. A gente acha que é um tema muito brasileiro, mas não é. Esse filme é mais do que sobre a relação de uma empregada doméstica e seus patrões, ele trata dessa questão da relação de poder vertical, algo que é geral. Por isso que houve uma projeção internacional. Claro, eu fiz o filme para o Brasil, porque tinha como objetivo fomentar essa discussão que está acontecendo sobre as relações humanas e seus reflexos. Mas acabei atingindo muito além.