“É grande o preconceito com ex-presidiários no Brasil e nada é feito para mudar essa realidade”, diz José Trassi


O ator tocou três projetos em paralelo: atuou no filme “Carcereiros”, na série “Segunda Chamada” e no monólogo “Paraíso – O Invisível”. Segundo ele, que faz o papel de Damásio, braço direito de um chefe de facção, interpretado por Rainer Cadete no longa-metragem, “vivemos em um sistema que não valoriza a vida humana, e sim o lucro. E a superlotação nos presídios é uma realidade. “É a última peça do dominó que cai em uma conta inteira na sociedade. É um cenário complicado. Para ele ser alterado é preciso mudar uma cultura inteira sobre o sistema prisional no Brasil”

*Por Domênica Soares

José Trassi esteve nos últimos meses em 3 projetos artísticos simultaneamente. Seu personagem em “Carcereiros – O Filme” é Damásio, um homem que para sobreviver precisa ser leal ao seu superior, uma pessoa que vai até às últimas consequências. Já na série da TV Globo “Segunda Chamada” viveu Giraia, com uma essência malandra que sabe ganhar pontos por meios legais e ilegais, com grande poder de adequação a qualquer cenário que esteja inserido. E, na peça “Paraíso -O Invisível”, Trassi interpreta Paraíso, um buscador de sentidos e coerência para vida. Ele procura entender quem foi, o que aconteceu e, durante a narrativa, busca despertar novamente a humanidade dentro de si mesmo, que foi perdida dentro da profissão que se dedicou.

Em entrevista ao site Heloisa Tolipan, Trassi conta que a série “Segunda Chamada” abordou a vida nas escolas públicas e seu personagem, em específico, foi um jovem estudante que vende remédios ilegais. Para Trassi, ainda existem muitos nesse cenário na vida real. “Se você reparar, nas comunidades ainda há muito contrabando, camelô, produto B, muito jeitinho… Há também a variável de que o sistema não é feito para potencializar o ser humano, então acaba virando um ‘cada um se vire do jeito que pode’ para sobreviver e crescer. Como há muitas pessoas na faixa da pobreza faltam oportunidades corretas, de estudo, de saúde oferecidas pelo estado. Então, elas acabam almejando essas oportunidades de vida por vias tortas, não legais. O sistema não é feito para facilitar a vida das pessoas. É feito para se ter lucro. Não sei se essa é a resposta certa. Não tem certo, mas as pessoas buscam a educação, procuram ser melhores, mas, as oportunidades não estão disponíveis. A sociedade precisa criar as oportunidades para não ser esse salve-se quem puder”.

Trassi comenta sobre as lotações dos presídios (Foto: Letícia Godoy)

No filme “Carcereiros”, que conta com a direção de José Eduardo Belmonte e traz a narrativa de uma guerra de facções dentro de um presídio, Trassi faz o papel do Damásio, braço direito de um chefe de facção, interpretado por Rainer Cadete. Ele conta que para fazer essa preparação foi necessária muita sinergia e relação de confiança entre os dois, que criaram cumplicidade, lealdade e parceria. “Eu e o Rainer não nos conhecíamos e, então, esse processo foi bem interessante. Rapidamente criamos empatia um pelo outro”. Sobre a realidade da superlotação nos presídios no Brasil, o ator afirma que seu pensamento tem como vários fatores. Um deles sobre a forma histórica de que as prisões do país foram concebidas para privar o convívio daquele ser que errou na sociedade. “Não temos a cultura de regenerar pessoas, reabilitar os cidadãos que erraram. O maior preconceito é com o ex-presidiário. Nossa cultura não é a reabilitação e, sim, o encarceramento”, afirma.

Ele comenta ainda que dentro disso não há a visão de diferenciações de crimes (a pessoa que é presa por portar um baseado é confinada junto com alguém que já matou). Dessa forma, culturalmente e através da engenharia social que vivemos em um sistema que não valoriza a vida humana, e sim o lucro, existe a lotação das prisões. “É a última peça do dominó que cai em uma conta inteira na sociedade que não tem a cultura da reabilitação do cidadão, que não tem a cultura de separar os presos pelos tipos de crime e casos. Mas veja: somando ao fato de que o governo recebe por cada preso que está ali, é praticamente conveniente que estejam superlotados para justificar o dinheiro que vai ser liberado para aquele presídio e vai ser desviado. É um cenário complicado. Para ele ser alterado é preciso mudar uma cultura inteira sobre o sistema prisional no Brasil”. 

O artista fala sobre sua nova pela “Paraíso Invisível” (Foto: Letícia Godoy)

Sobre a peça “Paraíso – O Invisível”, que tem como narrativa a história de um médico cirurgião que entra em um embate quando vê seu próprio pai em uma mesa de cirurgia, Trassi comentou sobre a experiência de assinar o texto e atuar. Ele explica que o processo é muito interessante, porque a medida que interpreta, absorve as experiências pessoais e experimentos cênicos e troca experiências com o diretor. “Entro com o argumento, com as potências dos temas, histórias pessoais, a minha biografia, meus anseios e meus desejos e o diretor dramaturgo organiza isso na trama”, conta.

O artista explica que a peça começou a ser idealizada através de um trabalho de coach que fez com a assistente de direção Tabata Correia e no meio desse processo eles descobriram que o que iria ser feito seria um monólogo. “Essa peça começou a ser elaborada a partir da foto de um mendigo que cobria a cara com o feltro. Nós não sabíamos a origem dela, mas sabíamos que aquele personagem era invisível nos grandes centros. Ao invés de trabalharmos a invisibilidade dos excluídos, resolvemos trabalhar a invisibilidade dos que estão hiper incluídos, como um médico de alto status, um cirurgião bem sucedido”, pontua.

O ator conta a importância de estar conectado com trabalhos sociais (Foto: Letícia Godoy)

Presente em inúmeras frentes artísticas, Trassi analisa que quem vive da arte sobre muitos abusos muitas vezes. “No Brasil, dependemos das leis de incentivo para mostrar algo que mais vale no mundo: a energia, o tempo e a criatividade humana. O mundo inteiro só funciona por isso e no Brasil é  desvalorizado. Os brasileiros criam projetos maravilhosos e não têm nenhum incentivo para tirar do papel. Diferente de tantos países que valorizam a criatividade humana, mas, não têm esse calor do brasileiro. Se olharmos para a África então… Um povo que cria, que ama as cores, a alegria da vida e é um continente que sofre. O que eu quero dizer com isso é que a arte resiste no lugar em que o sofrimento e a violência predominam. Ela vem como respiro, como incentivo de viver e continuar sendo humano. Não é à toa que o samba veio do morro, que a flor nasce no lixo. O mercado de arte no Brasil é muito rico, subutilizado, abusado e abusador”, analisa.

Trassi nos conta ainda que suas maiores inspirações no mundo das artes são aquelas que cultivam as virtudes, pessoas que se transformam, são bem sucedidas e tem o sucesso no sentido completo da palavra, não só em um âmbito, mas sim em todos. “Conheço bons exemplos assim. Minhas maiores inspirações também são as artes que despertam reflexão, mudança de atitude, consciência. A natureza é uma grande inspiração. Eu busco levar para o meu público, com a minha arte, sempre a oportunidade de reflexão, do público criar ferramenta, para poder levar realidade. O ser humano aprende com o exemplo”. 

José Trassi está no elenco de “Carcereiros O Filme” (Foto: Ramón Vasconcellos)

Além de estar presente em inúmeras frentes artísticas, Trassi revela que gostaria muito de ter mais tempo para se dedicar cada vez mais a trabalhos sociais. Conta que, desde muito jovem, está conectado com essa prática.”Um trabalho social que eu faço há muito tempo é de doação de brinquedos para comunidades carentes na época do Natal. E, agora, estou entrando em uma fase de querer conversar com os jovens e levar para eles uma força, uma ideia de como que eles podem mudar a vida para melhor. Como podem ter mais força para, além de sobreviver, viver a potência que é o ser humano. Se uma pessoa acreditar que ela pode, ela vai fazer. Na adolescência, além dos hormônios, das dúvidas, os jovens têm a pressão da vida, da família e esse é o momento que eles mais precisam de ajuda”, frisa. O ator conclui que o trabalho social é capaz de conectar classes diferentes como se fosse um intercâmbio de experiências.