Direto da França, Orlando Caldeira fala do sucesso de projeto e da volta ao trabalho após acidente que o deixou em coma


O ator e diretor falou abertamente sobre o grave acidente de moto que sofreu no Carnaval de 2024, em Salvador, e o deixou entre a vida e a morte. O ator entrou em coma, teve traumatismo craniano, perfuração no pulmão, mas sobreviveu sem sequelas motoras. Durante a recuperação, retomou o trabalho na série Encantados e agora celebra a estreia de um espetáculo em cidades francesas, inspirado no pensamento anticolonial do mestre e filósofo quilombola Nego Bispo. E reforça a visão sobre a arte como resistência: “A vida continua, e eu sigo transformando cada recomeço em um novo espetáculo”.

*por Vítor Antunes

As mudanças que vêm das transformações. Orlando Caldeira estreou, na França, em grande estilo um espetáculo que envolve circo, dança, teatro, instalação e audiovisual, do qual é co-diretor ao lado da artista e pesquisadora Maïra. Porém, isso tudo ocorre depois de um gravíssimo acidente que quase o levou à morte. No carnaval do ano passado, em Salvador, ele estava em um mototáxi, quando um motorista de carro entrou na contramão da rua e bateu na moto. A fé na vida e o socorro dos médicos o ajudaram a perseverar. E, agora, Orlando está levando o saber e arte para o mundo. Esta é uma das primeiras vezes que Orlando fala abertamente a respeito do que guardou na memória sobre aquele dia. Até então, tudo era contado por amigos e parentes: “Eu estava em Salvador para o carnaval, quando recebi um convite para subir no trio elétrico onde estava Margareth Menezes. Aceitei. Esse foi um dos flashes que me lembro daquela noite. Quando acordei do coma, eu soube que sofri traumatismo craniano e uma lesão na cervical. Graças a Deus, foi longe da medula, então não comprometeu meus movimentos. Mas, perfurei o pulmão e tive transtorno tático. Uma amiga falou que quando chegou o socorro, eu estava muito mais próximo da morte que da vida. Fui entubado ainda na rua, porque não tinha resposta vital de nada”.

Direto de Paris, Orlando nos conta que o espetáculo “Macacada” tem rodado cidades da França. Foi inspirado no pensamento anticolonial do mestre e filósofo quilombola Nego Bispo. Maïra reivindica a identidade de macaca na Europa como uma provocação à separação entre natureza e cultura imposta pela epistemologia ocidental dominante. O projeto se constrói como um jogo de ideias, um ponto de encontro entre diversas formas artísticas e um manifesto vibrante em defesa da vida e de todos os seres. No período de convalescença do acidente, o ator também recebeu o convite para voltar a trabalhar, fazendo a direção de atores da série “Encantados”. “Fiquei morrendo de medo e me perguntando se conseguiria. Mas eu gosto de desafios. Topei. Foi muito importante fazer esse trabalho, pois me dei conta de que a vida continua”.

A arte sempre me trouxe muita vida e, nesse momento, eu celebrava o fato de estar vivo. Durante a recuperação do acidente, eu só pensava em voltar a trabalhar. Eu não pensava em ir à praia, não pensava em sair com meus amigos. Eu pensava apenas em voltar a trabalhar. Meu pensamento não era sobre morrer, mas sobre não interromper meu fluxo profissional. Mas eu descobri o quão resiliente eu sou. No final do ano, me dei conta de que tive um 2024  incrível, com relação aos aprendizados que passei – Orlando Caldeira

Orlando Caldeira: a consagração após estar entre a vida e a morte (Foto: Lucas Mavinga)

 

DA AVENIDA PARIS A PARIS

A Avenida Paris é uma das principais ruas de Bonsucesso, bairro da Zona Norte do Rio, vizinho de Olaria, também na mesma região. Orlando foi criado em Olaria e por muito tempo, a Paris mais próxima dele era a de Bonsucesso. Este é um espetáculo multidisciplinar que combina circo, dança, teatro, instalação e audiovisual, resultado de uma investigação conduzida pela artista e pesquisadora brasileira Maïra, que divide a direção com Orlando.

“Macacada” é um espetáculo de circo que propõe uma reflexão crítica sobre o olhar eurocêntrico sobre corpos latino-americanos na Europa. O projeto desafia a dicotomia entre natureza e cultura, questionando a visão que associa povos não europeus à selvageria. Em vez de reforçar estereótipos, a obra reivindica a conexão com a Terra e valoriza formas de conhecimento ancestrais, como a oralidade, destacando seu caráter dinâmico e vivo. Dirigido por Maïra e Orlando, o espetáculo se desenrola como uma verdadeira “acrobacia de ideias”, entrelaçando arte e filosofia.

Orlando Caldeira propõe uma discussão sobre o eurocentrismo através de “Macacada” (Foto: Lucas Mavinga)

O artista explica: “O espetáculo é uma verdadeira acrobacia de ideias. E eu começo a trazer várias referências sobre como somos vistos a partir de um olhar eurocêntrico sobre a nossa vida. Existe um problema em sermos enxergados como selvagens, mas, para começo de conversa, os macacos e os selvagens têm tecnologias que são muito incríveis, sobretudo no mundo animal. Eu e Maïra dividimos a direção, e está sendo incrível voltar para cá e começar o ano com esse pé direito. O texto é dela, e falamos também sobre o quão tecnológico é o saber oral. A tradição oral é tecnológica, o entendimento da oralidade é tão profundo, que, sempre que uma coisa é contada, ela ganha vida. Então, aquilo está sempre vivo na boca de quem fala. Diferente do que está escrito, a tradição escrita, a oral não engessa. E eu achava o contrário, achava que eternizava, mas não — você aprisiona algo que poderia estar vivo na boca das pessoas, mas que, no livro, está morto”. A ideia dos diretores é apresentar o projeto no Brasil.

Ainda que tenham muitas produções indo para a Europa, inclusive a nossa, acho importante popularizar as nossas narrativas, mas sempre com atenção e cuidado de não superdimensionar a experiência de ‘estar se apresentando na Europa’. Eu trago para cá muitas culturas, e assim como trago, levo para qualquer outros lugares – Orlando Caldeira

Muitas produções televisivas ainda retratam o subúrbio de forma estereotipada, associando-o a exageros, escândalos e falta de sofisticação. No entanto, Orlando Caldeira defende uma abordagem diferente, que valorize a complexidade e a riqueza desse universo. Para ele, é essencial evitar a “folclorização do subúrbio” e trazer representações mais autênticas para a televisão. Algo que ele propõe em “Encantados”. “A TV fala sobre o como é importante ter signos que sejam positivos para a gente poder ter um espelhamento, poder se entender como sociedade, enquanto potência. Eu tive muito orgulho, muita felicidade, muita honra e muita responsabilidade de estar fazendo a preparação de elenco de ‘Encantados’ com atores que eu acho geniais, incríveis fora e dentro de cena. E e tratando do subúrbio, e tratando de um lugar que para mim é muito caro e muito rico”.

Orlando Caldeira contesta a estereotipação do subúrbio em sua arte (Foto: Lucas Mavinga)

Orlando prossegue dizendo que “às vezes, a gente entende as nossas histórias como ordinárias e não percebe o quanto que elas são extraordinárias, como chamar a vizinha de tia. O quanto isso é rico, camadas e profundidade. Quando a arte olha para isso, ela consegue extrair daí coisas incríveis, e para a gente é uma coisa corriqueira. E a entender esse poder do ordinário, olhado pela arte, o quanto que ele é extraordinário”.

Além de questionar a forma como o subúrbio é retratado, Orlando destaca a necessidade de dar protagonismo às pessoas que vivem nesse espaço. Ele defende que personagens suburbanos sejam vistos como referências positivas, capazes de ocupar posições centrais nas narrativas audiovisuais. “Essas pessoas que precisam ser nossos heróis, que precisam ser nossas musas, nossos musos. Corpos que são dissidentes, podem ser potentes. Eu acho que esse é um propósito meu como artista, desde o começo da minha jornada. Sempre pensei, e essa sempre foi minha bandeira”.

Eu não saí de Olaria para morrer na praia! Eu eu confio muito na espiritualidade. A justiça ela vai ser feita e eu estou em paz com isso  – Orlando Caldeira

Orlando Caldeira: “Não saí de Olaria para morrer na praia” (Foto: Lucas Mavinga)

A vida se refaz nas encruzilhadas do destino, entre quedas e recomeços, entre sustos e conquistas. Orlando Caldeira, que já atravessou a tênue linha entre o efêmero e o eterno, celebra agora cada instante com a intensidade de quem viu a fragilidade da existência de perto. “Muita coisa me emociona, mas ultimamente é tudo que é vivo, a vida. E a vida, que está nas coisas mais simples. Às vezes um abraço, uma conexão verdadeira, às vezes uma sinceridade falada, tudo isso me emociona profundamente”. Do asfalto de Olaria ao palco europeu, das cicatrizes do corpo à resiliência da alma, sua jornada ecoa como um manifesto de resistência. Porque para ele, viver é seguir adiante — não para ser apenas visto, mas para ser ouvido, sentido, reconhecido. Afinal, a arte, como a vida, não se prende ao passado. Ela pulsa no agora, na voz de quem a carrega e na potência de quem transforma cada recomeço em um novo espetáculo.