Daphne Bozaski, a Dolores de Nos Tempos do Imperador: “Vivi relações tóxicas com agressões verbais”


Na trama das 18 horas, da Globo, sua personagem é a representação típica da submissão da mulher no século XIX. “Ela achava que tinha que obedecer primeiro ao pai, depois ao marido. Eu mesma me impressiono com esse lugar, com essa falta de voz da Dolores. É difícil, enquanto mulher, enquanto a gente ainda busca a nossa valorização nos dias de hoje, fazer uma personagem que não consegue ter nem um comecinho dessa coragem”, observa a atriz, que fala com propriedade sobre o machismo. “Já passei por relacionamento que a pessoa estava sempre me diminuindo, me desvalorizando. Na época, não achava que era um assédio, que era imoral. Mas é, muito”, relembra ela, que hoje vive relação saudável com o marido, o chef Gustavo Araújo, pai de seu filho Caetano

* Por Carlos Lima Costa

As mulheres conquistaram muitos espaços através dos tempos. Atualmente, o empoderamento feminino é real. Assistindo a novela Nos Tempos do Imperador, que se passa na segunda metade do século XIX, quando elas eram totalmente submissas aos homens, é possível analisar quantas transformações ocorreram. Intérprete de Dolores, a atriz Daphne Bozaski cita a própria personagem, que na trama se viu obrigada a casar com um homem mais velho escolhido pelo pai, como uma típica mulher daquela fase. “Ela foi privada de estudo, não tem conhecimento de vida, nem coragem de ir atrás dos seus desejos e sonhos. Aí vemos como a educação é importante no processo de construção de uma nova sociedade. Minha personagem passa um pouco sobre isso. Como uma menina, criada só com o pai, vai conseguir sair daquela situação. Ela achava que ela tinha que obedecer, primeiro o pai, depois o marido. O bonito do arco da personagem é ver esse processo de descoberta da coragem dela. Espero que inspire as mulheres nos dias de hoje, porque, às vezes, nos falta uma coragem de sair desse lugar que a gente acha que tem que estar”, analisa a atriz.

Daphne aponta o desafio de atuar em uma trama que remete à reflexão do quanto já se avançou. “Hoje, vivemos em um mundo com muita informação. As pessoas denunciam machismo, racismo, preconceitos, então, nessa trama a gente relembra uma época muito dura. Mas, ao mesmo tempo, de certa forma, ainda estão presentes, porque está tudo muito enraizado na nossa sociedade. Mesmo tendo avançado a luta por nossos direitos, ainda temos muito a dizer sobre o feminismo, sobre o lugar de valorização da mulher. Vemos situações que várias mulheres são silenciadas até hoje. Por que isso acontece? É porque fomos e somos criadas por um patriarcado”, avalia.

"Mesmo tendo avançado muito a luta por nossos direitos, ainda temos muito a dizer sobre o feminismo, sobre o lugar de valorização da mulher", acredita Daphne (Foto: Sérgio Baia)

“Mesmo tendo avançado muito a luta por nossos direitos, ainda temos muito a dizer sobre o feminismo, sobre o lugar de valorização da mulher”, acredita Daphne (Foto: Sérgio Baia)

E prossegue a reflexão: “Por ser mulher, eu mesma me impressionei com esse lugar, com essa falta de voz da Dolores. É difícil, enquanto mulher, enquanto a gente está buscando ainda a nossa valorização nos dias de hoje, fazer uma personagem que não consegue ter nem um comecinho dessa coragem. Saio das cenas sempre muito imbuída de tudo que ela está vivendo e são situações pesadas, porque sei que muitas mulheres hoje em dia ainda vivem isso em casa”.

Aos 29 anos, Daphne fala com propriedade sobre o tema, pois ela mesma já viveu relações machistas. “Eu vim de Curitiba (ela nasceu em São Paulo, mas foi criada no Sul do país). Na minha época, pouco se falava sobre o feminismo. Eu vivi machismos que hoje eu falo: ‘isso não era legal’. Eu já ouvi muito que: ‘homem é assim mesmo’. Ouvia muito isso de amigas, da família. A gente repete essas frases, deixa pra lá, não discute. É um pouco esse lugar da Dolores”, enfatiza.

Ao sair de casa indo para São Paulo, a atriz conheceu outras pessoas e universos, vendo o mundo mudando, falando mais sobre o feminismo e a luta das mulheres por seus direitos. “Aí percebi que era nova para passar por aquele machismo. Situações como ser agredida verbalmente. Uma agressão emocional, verbal dói muito, mexe com a sua cabeça. Eu já passei por relacionamento que a pessoa estava sempre me diminuindo, desvalorizando ou questionando onde e com quem eu estava, que roupa estava usando. A pessoa se coloca em um lugar onde acha que tem posse sobre você. Na época, não achava que era um assédio, que era imoral. Mas é, muito. Várias agressões são veladas, não deixam marcas aparentes, mas deixam internamente. E é horrível, porque você não tem provas. É importante conversarmos sobre esses assuntos. A arte tem esse lugar da gente mostrar como uma relação é ruim, mas como você consegue sair dela. Esse é o arco bonito da Dolores, o quanto ela vai atrás da coragem dela através dos estudos, porque ela vai aprender a ler, vai estudar e isso vai transformá-la”, frisa.

"Várias agressões são veladas, não deixam marcas aparentes, mas deixam internamente", aponta Daphne (Foto: Victor Pollak)

“Várias agressões são veladas, não deixam marcas aparentes, mas deixam internamente”, aponta Daphne (Foto: Victor Pollak)

Tanto Dolores quanto Benê, personagem de sucesso interpretada por ela em Malhação – Viva A Diferença e depois na série As Five, tem universos particulares. “Não sou uma pessoa retraída. O que poderia me familiarizar com elas é porque ambas as personagens em algum lugar eu já me encontrei a vida. Com a Benê foram as descobertas pelos sentimentos, pelo amor, sem saber como lidar. Passei por isso na adolescência. Com a Dolores, essas dores, como criar coragem para ir atrás do que eu quero. Mas saí de casa, fui embora de Curitiba com 17 anos. Minha mãe (Ivete Bozaski, que, hoje, é professora de teatro) falou ‘pode ir’. Ela também é atriz, saiu de casa com 13, não tinha como me negar. Aliás, quase nasci no palco. Ela estava grávida, fazendo peça com o Paulo Autran (1922-2007), quase que a bolsa estourou no palco, saíram correndo para a maternidade. Bom, mas, então, fui para São Paulo tentar carreira sem ter nada certo. Sempre fui atrás do que eu quis na profissão e na vida pessoal. Nessa questão, sou diferente delas. Também não tenho o lugar retraído, mas tenho grande dificuldade, às vezes, de me colocar em certas situações, por conta da criação patriarcal, do machismo enraizado”, pondera.

Casada com o chef Gustavo Araújo, Daphne é mãe de Caetano, que vai  festejar três anos em dezembro. A medida que o menino vai crescendo ela se questiona mais sobre a educação dele, para que no futuro não tenha atitudes machistas. “A melhor maneira de você educar, se você não deseja que algo se repita, por exemplo, nesta questão, é se policiar para não tomar atitudes machistas, porque a criança é uma esponja, principalmente nesses primeiros anos de vida, quando está absorvendo tudo do mundo. Então, acredito que é no exemplo mesmo no dia a dia, tentando não reproduzir nenhum tipo de comentário preconceituoso, racista, nem ter uma relação machista com seu parceiro. Eu e o Gustavo conversamos muito, falamos o que não é legal reproduzir. Acho que os pais da minha geração estão tendo a possibilidade de fazer diferente. O mais difícil é mudar as pessoas mais velhas. Talvez não consigam entender as mudanças. Precisamos nos atualizar sempre”, observa ela, que estreou na Globo, em Malhação – Viva a Diferença.

Gustavo Araújo e Daphne Bozaski com o filho, Caetano (Foto: Arquivo Pessoal)

Gustavo Araújo e Daphne Bozaski com o filho, Caetano (Foto: Arquivo Pessoal)

Em seguida, ela e as outras protagonistas da trama, Gabriela Medvedovski, Ana Hikari, Heslaine Vieira e Manoela Aliperti brilharam no spin-off As Five como as mesmas personagens. Depois do sucesso na Globoplay, a série vai poder ser vista na TV aberta, a partir do próximo dia 26, na Globo. E agora, ela, Heslaine e Gabriela, que interpreta Pilar, irmã de Dolores, estão juntas novamente na trama das 18 horas. “Malhação foi um ano de trabalho em que vivemos mais as personagens do que a gente mesma. Então, criamos uma cumplicidade cênica. Em qualquer trabalho que a gente se encontre, vamos nos acessar rápido”, explica.

Caminhando para as três décadas de vida, que vai completar em agosto de 2022, Daphne, hoje, se considera uma mulher empoderada. “Sinto. Por já ter vivido relações muito tóxicas desde a minha adolescência, ter conseguido sair delas e tendo conseguido construir uma relação mais construtivista, consegui seguir a minha carreira mesmo tendo tido um filho. Faço teatro desde os 11 anos. Mas na Globo, Malhação foi meu primeiro, trabalho em 2017, e o Caetano nasceu no final de 2018. Muita gente questionou: ‘Mas vai ter filho agora?’ Mas nunca deixei de trabalhar por ter sido mãe. Então, me sinto muito empoderada nesse sentido. Não é fácil conciliar, porque a maternidade muda tudo, mas nada é fácil na vida. Para mim é um grande desafio, mas uma grande conquista também. E, claro que me ajuda, o fato de ter o Gustavo, que assume e faz o papel do pai mesmo. Quando estou gravando muito, ele toma mais conta das funções da casa e do Caetano. Assumo também esse papel quando é preciso. Temos essa troca que é fundamental. Isso faz eu me sentir muito empoderada, porque consigo fazer as minhas coisas, tenho o meu dinheiro. Sou muito feliz pelas minhas escolhas e conquistas, como a vida vai trazendo coisas bacanas quando você vai atrás. Que bom que posso nesse momento da minha vida em que estou fortalecida poder falar dessa minha atual personagem que se submeteu a um casamento arranjado pelo pai. Na vida real, eu escolhi casar, eu pedi o Gustavo em casamento. São questões em que me sinto a frente. Sou criadora da minha própria história”, comenta.

"Nunca deixei de trabalhar por ter sido mãe. Me sinto empoderada nesse sentido. Não é fácil conciliar, porque a maternidade muda tudo, mas nada é fácil na vida", observa Daphne com o filho, Caetano (Foto: Arquivo Pessoal)

“Nunca deixei de trabalhar por ter sido mãe. Me sinto empoderada nesse sentido. Não é fácil conciliar, porque a maternidade muda tudo, mas nada é fácil na vida”, observa Daphne com o filho, Caetano (Foto: Arquivo Pessoal)

Daphne sabe cozinhar, mas em casa, no dia a dia, quem manda mais na cozinha é o marido. “Como ele trabalha com alimentos, isso já está na cabeça dele, pois tem que pensar nessas questões para a Casa do Araújo, o restaurante que funciona na casa onde morávamos. Abríamos a nossa casa para receber as pessoas. Como já tinha que fazer toda compra para lá, era mais fácil para ele esse lugar, então, ele sempre comandou mais a cozinha”, explica ela, que estreou na televisão, em 2014, no seriado Que Monstro Te Mordeu?, na TV Cultura, onde interpretou a personagem Lali Monstra.

“Tem gente que me acha hoje no Instagram e fala ‘você marcou a minha infância’ e eu penso:  ‘Meu Deus, estou ficando velha’, porque a pessoa já está adulta. Eu amava, foi muito legal. Até hoje tem uma repercussão muito forte. A TV Cultura passou muito, aí vendeu para o Netflix, agora entrou para o Globoplay, tudo isso ajudou a ter muitos públicos, não só o da TV aberta”, diz. Foi inclusive o primeiro produto que ela colocou o filho para assistir. “Não queria deixar o Caetano vendo televisão, nem nada com tela. Mas chegou a pandemia, não teve como, mas ai pensei que fosse algo de qualidade. Aí ele assistia o Que Monstro Te Mordeu?. E ele adorava os monstros”, conta.

"Quando peguei covid, tive sintomas leves, mesmo assim, vendo as pessoas morrendo, me deu um pânico. A gente não sabe o que pode acontecer", ressalta Daphne (Foto: Sérgio Baia)

“Quando peguei covid, tive sintomas leves, mesmo assim, vendo as pessoas morrendo, me deu um pânico. A gente não sabe o que pode acontecer”, ressalta Daphne (Foto: Sérgio Baia)

No dia que o isolamento social começou, Daphne estava de viagem marcada para o Rio. “Eu ia começar a preparação da Dolores, quando começou a quarentena. Achei que ia demorar uns três meses. Nunca nos piores pesadelos imaginei que a gente ia estar vivendo isso até hoje. Foi um choque. O Gustavo fechou o restaurante, que foi reaberto somente em dezembro, quando começou a dar uma melhorada. Nós já tínhamos saído de lá, fomos para um apartamento e gente ficou muito trancado, a gente não via ninguém. Levamos a sério, comprava tudo pela internet. Corria pouquíssimo risco, mas foi difícil com uma criança pequena, precisando de convívio, a gente querendo mostrar o mundo”, lembra.

Daphne começou a sair e se expor quando as gravações começaram e este ano, no final de junho, testou positivo para a covid-19. “Até hoje me pergunto como foi possível, pois ia da casa para a gravação, da gravação para casa. Mas foi super leve. Estava há duas semanas sem ver o Caetano e o Gustavo, então, eles não tiveram. Fiquei isolada no Rio, ainda não tinha tomado a vacina, porque não estava disponível para  a minha idade. Tive sintomas leves, mesmo assim, vendo as pessoas morrendo, me deu um pânico. A gente não sabe o que pode acontecer. Pior é o emocional. Como estava gravando, tive medo de ter contaminado alguém. Tinha gravado com o José Dumont chorando em cima dele no sábado e na terça eu testei positivo. Graças a tudo que é mais lindo no mundo, ninguém da novela pegou. Fiquei preocupada de não passar para ninguém. Acho que é um pouco dessa consciência que falta para as pessoas. É por isso que tudo está como está, as pessoas não pensam no outro. Pensam apenas na sua vida, no seu prazer. Um mês depois tomei a primeira dose e agora a pouco tempo tomei a segunda. Mas os cuidados são os mesmos. As pessoas estão cansadas, eu entendo, mas tem que vacinar e continuar tomando cuidado”, finaliza.