Com musicais vibrantes diluídos em trama repleta de panos quentes, filme sobre Whitney Houston estreou no Brasil


Detentora de títulos tão inalcançáveis quanto as notas que saíam da sua garganta em salto olímpico – ela derrubou o recorde dos Beatles ao emplacar sete hits consecutivos em primeiro lugar nas paradas, além de deter o título de artista feminina mais premiada de todos os tempos –, a cantora, que foi encontrada morta na banheira de uma suíte do hotel Beverly Hilton, em Los Angeles, no dia 12 de fevereiro de 2012, aos 48 anos, é retratada com excesso de licença poética, algumas dúzias de erros cronológicos e “passadas de pano” para certos vilões

*Por Allex Colontonio

“Whitney morreu com o coração partido”. A frase impactante abre o premiado – e por pouco não embargado pela Justiça – documentário “Whitney: Can I be me” (Inglaterra/EUA, 2017), dos diretores Nick Broomfield e Rudi Dolezal. Um ano depois, com autorização do espólio da cantora norte-americana, Kevin Macdonald, vencedor do Oscar por “One day in September” (EUA, 2009), subiu a carga emocional em “Whitney” (EUA, 2018), que arrebatou elogios de público e de crítica ao documentar um retrato ainda mais sofrido da estrela atormentada por inúmeros fantasmas, que começavam com o abuso sexual na infância e culminaram afogados em álcool e drogas, passando por sua implacável autocrítica. “O demônio sou eu mesma”, declarou em entrevista à apresentadora Diane Sawyer, em 2002, ao admitir o vício publicamente. Entre meia-dúzia de docs caça-níqueis feitos para a tevê e dois longas duros de entubar – “Whitney”, de 2014, dirigido por Angela Bassett e estrelado pela descendente de brasileiros Yaya DaCosta; e “Beauty” (EUA, 2022), com direção de Andrew Dosunmu, descaradamente inspirado em Houston sem mencionar Houston, dessa vez parecia que a cantora mais premiada de todos os tempos ganharia uma cinebiografia à altura de sua grandeza. Bateu na trave!

Nesta quinta-feira aterrissou nos cinemas de todo o país, pela Sony Pictures, a superprodução “I Wanna Dance With Somebody – a História de Whitney Houston”, com direção de Kasi Lemmons e roteiro de Anthony McCarten, e atuações brilhantes de Naomi Ackie no papel principal e de Stanley Tucci vivendo o seu mentor, Clive Davis.

Detentora de títulos tão inalcançáveis quanto as notas que saíam da sua garganta em salto olímpico – ela derrubou o recorde dos Beatles ao emplacar sete hits consecutivos em primeiro lugar nas paradas, além de deter o título de artista feminina mais premiada de todos os tempos –, a cantora, que foi encontrada morta na banheira de uma suíte do hotel Beverly Hilton, em Los Angeles, no dia 12 de fevereiro de 2012, aos 48 anos, é retratada com excesso de licença poética, algumas dúzias de erros cronológicos e “passadas de pano” para certos vilões.

I Wanna Dance With Somebody – a História de Whitney Houston

Não era preciso apelar para a ficção: acompanhada feito um reality show em tempo real, a vida de Whitney continha drama suficiente para superar qualquer enredo fatalista, sem passar pelo clichê das grandes divas negras americanas – tipo o drama da menina pobre que apanha na infância, passa fome e descobre o talento cantando na igreja. Exceto pela gênese no coral da New Baptist Church em New Jersey, sua cidade, Whitney nasceu, cresceu e viveu entre grandes estrelas. Filha de Cissy Houston, cantora famosa na era da Disco Music e uma das mais importantes do Gospel (com direito a Grammy na prateleira), afilhada de ninguém menos que Aretha Franklin e prima de Dee Dee Warwick (estrela do soul) e de sua irmã Dionne Warwick (uma das maiores vocalistas do mundo), foi carregada no colo por Elvis Presley, para quem a mãe fazia backing vocal no ápice do estrelato. Estudou em tradicional colégio particular, morava numa casa com piscina (onde a mãe recebia Roberta Flack, Chaka Khan, Patti Labelle, Gladys Knight, Luther Vandross e Stevie Wonder para o chá) e foi disputada por gigantes da indústria aos 18 anos, quando já era modelo profissional (Whitney foi a primeira negra a estampar a capa da revista Seventeen). Quem comprou o passe foi Clive Davis, diretor artístico que a catapultaria ao sucesso global no álbum de estreia de maior êxito de que se tem notícia.

“I Wanna Dance With Somebody – a História de Whitney Houston”

Interpretado por Tucci em atuação impressionante, Clive, aliás, é o produtor por trás do filme, o que talvez explique seu protagonismo e o absolva de algumas negligências. Um dos homens mais poderosos do showbusiness, ao longo das décadas, ele descobriu nomes como Barry Manilow e Carlos Santana. Além de Whitney, Davis também foi o responsável pelo surgimento de outra popstar que morreu ainda mais jovem, em circunstâncias parecidas: Janis Joplin. Ex-assessora de Clive, a então jornalista Myra Friedman, autora do best-seller sobre a roqueira, “Enterrada Viva” (1973), descreve o empresário como alguém obcecado pelo estrelato e excessivamente duro com seus artistas. O que se vê no filme, entretanto, é uma Whitney rebelde, bem diferente daquela que dizia “amém” para tudo o que o manager delegava – é só observar uma conversa filmada entre os dois no making of de “The Greatest Hits”, em 2000, que Whitney lançou antes de assinar o contrato mais caro até então – 100 milhões de dólares, superado apenas pelo que a britânica Adele carimbou recentemente com a Sony (117 milhões de euros).

Apesar da excelência dos figurinos, o filme ignora sumariamente o passado de modelo (e a própria beleza de Whitney, namoradinha da América), ao apelar para um make caricatural, que em alguns momentos lembra um episódio do Ru Paul Drag Race e por pouco não compromete a atuação brilhante de Naomi, que segura a peteca com classe.

Talvez por questões de direitos de uso de imagem, Bobby Brown, ex-marido e principal algoz de Whitney, é retratado mais como um sujeito omisso do que como o marido invejoso, violento e abusivo – papel este que o roteiro joga mais nas costas do pai, o agente que desviou rios de dinheiro da maior vendedora de discos da América. Cissy Houston, a mãe disciplinadora que esculpiu Whitney à sua imagem e semelhança e que tinha p-a-v-o-r do romance da caçula com a assistente Robyn Crawford, desaparece ao longo da trama, para só ressurgir quando despacha a filha, com força policial, para o rehab.

McCarten, roteirista do fantástico Bohemian Rhapsody, cinebiografia de Freddie Mercury (vocalista da banda Queen, que rendeu o Oscar de melhor ator a Rami Malek em 2019), repete a estrutura costurando a história com grandes apresentações musicais (e Lemmons se encarregou de reproduzi-los com pompa e circunstância em cenas nababescas, como quando Whitney cantou o Hino Nacional Americano no SuperBowl de 1991 ou nos bastidores dos clipes que chegaram ao topo da MTV). Mas se perde numa trama aguada que ignora a morte trágica de sua filha, Bobbi Kristina; pula um dos episódios mais bizarros da história das gravadoras (o fato da festa pré-Grammy, promovida por Clive Davis, ter sido mantida no mesmo dia e local da morte de sua artista mais rentável, com o corpo ainda à espera da remoção, quatro andares acima) e fracassa na construção da personagem e na enorme insegurança que ajudou a destruir Houston. “É irônico que a maior cantora do mundo não se considerasse boa o bastante”, disse Kevin Costner, que brigou para ter a estrela como Rachel Marron em “The Bodyguard” (EUA, 1992), não por acaso, a trilha sonora mais bem-sucedida do Cinema, só para citar outro recorde de Miss Houston.

Às lágrimas, Costner concluiu, no funeral de Whitney, quase onze anos atrás: “Acho que a primeira coisa que Deus vai lhe dizer ao se encontrar com ele agora é: você foi boa o bastante”. Pelo menos sob esse aspecto, “I Wanna Dance With Somebody” é mais do que eficaz. Com ou sem uma pré-opinião, você provavelmente vai sair da sessão com a certeza de que se trata, de fato, de uma das maiores cantoras que já existiram. Com um pouco mais de fé, talvez também concorde com o maestro Quincy Jones, que disse: “Se Deus tivesse uma voz, seria a de Whitney Houston”.

*Allex Colontonio é publisher da revista independente Pop-se e diretor de conteúdo da revista Forbes Life Design