Cannes 2015: “Mad Max – estrada da fúria” agrada a crítica, Charlize Theron causa e Miller se aproxima de Sebastião Salgado e dos zumbis


Tipo zombie movie ou registro de trabalho escravo: entre o delírio e a aprovação, o “bulldozer” (máquina-de-fazer-dinheiro, segundo os puristas) revela o quanto Hollywood sustenta o festival como circo do cinema

*Por Flávio Di Cola, diretamente de Cannes, e Alexandre Schnabl, do Rio

A eterna discussão sobre a natureza do cinema – se é arte ou indústria – parece não ter fim, mesmo depois de mais de cem anos de sua invenção como, literalmente, atração em feiras, parques de diversões e teatrinhos pulgueiros. A polêmica que vem atravessando décadas, sempre estaciona a cada ano no Festival de Cannes. Até por ser a maior e a mais midiatizada vitrine planetária da produção audiovisual, o evento é sistematicamente avaliado, patrulhado e cobrado, principalmente por aqueles que acham exagerado o desembarque massivo no balneário dos blockbusters produzidos na Fábrica de Sonhos de Hollywood – como “Mad Max – Estrada da Fúria” (Mad Max: Fury Road, Village Roadshow e Warner Bros, 2015, fora da competição oficial, , mas fazendo estardalhaço) que foi finalmente lançado e ovacionado nesta noite de quinta-feira (14/5) em Cannes para alívio dos seus bilhões de fãs – e que literalmente cobrem com ruidosa publicidade as fachadas dos grandes hotéis da orla ou ocupam cada espaço disponível do mobiliário urbano local.

Em nota divulgada nesta manhã pela organização do Festival de Cannes, segundo o site www.rottentomatoes.com o novo filme produzido e dirigido por George Miller teve 99% de aprovação da crítica americana. Tal recepção, inclusive, credencia o longa ao Oscar 2016.

Por outro lado, também milita pelo evento o entusiasmado time daqueles que acreditam que as relações de Cannes com Hollywood já se tornaram irreversíveis e interdependentes por conta das estrelas que o cinema americano despeja a cada ano no red carpet, dos títulos artisticamente qualificados que a produção mainstream eventualmente coloca em competição, e – principalmente – por conta da realidade incontornável de que Cannes também se transformou num gigantesco entreposto de mercadorias audiovisuais.

Com "Mad Max: estrada da fúria" como um dos principais produtos dessa temporada, Hollywood invade Cannes no festival e nas ruas (Foto: Flávio Di Cola)

O mitológico Hotel Carlton – que inspirou o nosso Copacabana Palace – vira verdadeiro outdoor para as novidades hollywoodianas, com”Mad Max: Fury Road” (Foto: Flávio Di Cola)

A viabilidade econômica deste mastodôntico festival não é possível apenas através do apoio das dezenas de instituições públicas francesas que dela participam. Uma teia extensa e complexa envolve centenas de outras organizações como representações diplomáticas, sindicatos de profissionais do cinema, federações de filmes e cinematecas; associações de realizadores, produtores, técnicos e críticos, etc. Para não falarmos das poderosíssimas corporações transnacionais que buscam uma visibilidade qualificada através de variados tipos de patrocínios e parceria, como a Air France, HP, L’Oréal, LG, Mastercard, Nestlé ou Renault, entre outras.

Desta forma, tolerar, festejar ou tripudiar sobre títulos como a quarta sequência de “Mad Max” – que, aliás, iniciou a sua inscrição na história do cinema como um filme materialmente pobre de um país cinematograficamente periférico como a Austrália – é tão irrelevante como reclamar do excesso de sol na linda, doce e próspera Riviera.

Trinta anos depois de lançar o último filme da trilogia, Mad Max e a cúpula do trovão” (Mad Max Beyond the Thunderdome, Warner Bros, 1985), o diretor George Miller aproveita as facilidades do atual aparato digital para atualizar o personagem que lançou Mel Gibson no cinema, agora sob a pele de Tom Hardy. Mas, se nesse episódio da saga Tom apenas dá conta do recado – já que não é munido do mesmo par de olhos azuis que revelam aquele misto de ódio com indignação que ajudou a catapultar o primeiro à fama –, por outro lado, ele tem o providencial reforço de uma atriz de primeiríssimo time, Charlize Theron, que já deu provas suficientes de que não mede esforços (inclusive físicos) para cair de cabeça num papel.

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Avassaladora, é a atriz quem realmente comanda a ação, engolindo o elenco inteiro no papel de Furiosa. E mais: seu olhar 43 – esse sim, muito próximo daquele que imortalizou o protagonista da trilogia original – hipnotiza o público do início ao fim, se encarregando até de driblar o incômodo provocado na plateia pelo fato de, na tela, ela ser mutilada de um braço. Se, com seu physique du rôle “hard”, Tom Hardy consegue apenas se manter decentemente na linha do personagem vivido anteriormente por Gibson, cabe a Theron dar vazão à devida fúria do título, inserindo Mad Max em uma inesperada porção mulher, possivelmente intenção tanto do cineasta quanto de Eve Ensler (“Os monólogos da vagina”), sua consultora no longa. O filme é inteiramente dela, motivo pelo qual já se cogita até uma produção spin off somente com a estrela sul africana!

Nesta quinta-feira (14/3), Charlize deu provas do quanto é versátil, deixando de lado o visual hecatombe usado na realização para se transformar em dália negra, na coletiva de imprensa diurna, ou na sensual sereia de vestido amarelo que pisou o tapis rouge nesta noite passada.

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Nesta continuação tardia (mas bem vinda), George Miller se mostra elegante, oferecendo um cardápio violentíssimo, mas nada gratuito. Ele poderia ter abusado da escatologia nas cenas de ação, mas prefere se render à pirotecnia com significados subliminares, sem investir em imagens de corpos dilacerados. Mesmo nas sequências mais perturbadoras, o diretor é comedido na hora de lançar pedaços de carne ao léu, preferindo se concentrar no incômodo que é saber que a natureza humana – diante de situações limítrofes – pode ser tão ou mais danosa que a falta d’água em um futuro apocalíptico.

Confira o trailer oficial (Divulgação)

E, o mais aterrador: as cenas da volumosa população em comunidade no árido deserto australiano (filmadas na Namíbia) revelam ao público que, no fundo, esse futuro pode já ser o ser presente. A semelhança entre as tomadas com essa turba de sobreviventes que depende de um vilão que controla a água, Immortan Joe (Hugh Keaya-Byrne), são tão indigestas quando as imagens eternizadas pelo fotógrafo Sebastião Salgado em Serra Pelada e na série “Trabalhadores rurais”, tanto na exposição da crueldade humana quanto na estetização da miséria.

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"Mad Max: estrada da fúria": estreia mundial a partir da exibição em Cannes (Foto: Divulgação)

“Mad Max: estrada da fúria”: estreia mundial a partir da exibição em Cannes (Foto: Divulgação)

Se, ao lançar “Mad Max” em 1979, Miller tinha como pano de fundo a crise do petróleo e a recessão mundial, agora, nesta continuação ele faz uso do medo implícito que a humanidade tem da possibilidade de que a desordem geral leve a um colapso de proporções astronômicas, amplificada pelo receio de que os recursos do planeta se esgotem, sobretudo a água.

Provavelmente, ele lida com o mesmo tipo de pavor que acabou por tornar espetáculo os filmes de apocalipse zumbi depois do 11 de setembro. E, para isso, ele até conta com um grupo de jovens fanáticos com cabeça careca, bocas ressequidas e corpo coberto de cal que se constitui na horda que Immortan Joe usa para fazer o serviço sujo. Assim como os walking dead de produções como “Madrugada dos mortos” (Dawn of the Dead, Zack Snyder, Universal Studios, 2004), eles agem descerebradamente e, como formiguinhas impossíveis de se controlar, subvertem tudo em prol do caos.

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Curioso perceber que Miller, assim como outro George, o Romero – criador do gênero “filme de zumbi” – sabem tirar proveito daqueles temores que rondam a cabeça dos espectadores em períodos de ameaça global à ordem.

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