“Caminhos da floresta”: furacão Meryl Streep encanta o público com sua poção mágica, mas filme se perde na escuridão do bosque


The sound of music: caprichadíssima produção da Disney tem argumento valioso e sabe brincar com a irrealidade dos contos de fada, mas faltam o ritmo e a magia da melodia

Depois do sucesso avassalador de “Chicago” (idem, Miramax, 2002) – seis Oscars, inclusive o de melhor filme, e responsável por catapultar o gênero musical novamente nas telas –, coube a Rob Marshall a difícil tarefa de adaptar para o cinema “Caminhos da floresta” (Into the Woods, Walt Disney Pictures, 2014), a peça de James Lapine com música de Stephen Sondheim que procura adicionar forte dose de realidade a personagens de contos de fada conhecidos como Chapeuzinho Vermelho (Lilla Crawford), João (Daniel Huttlestone) – o do pé de feijão –, Cinderella (Anna Kendrick), Rapunzel (Mackenzie Mauzy) e os príncipes destas duas (Chris Pine e Billy Magnussen, respectivamente). Missão quase impossível, ainda mais considerando que quem está por trás do projeto é a Disney, a quintessência da fantasia dos fairy tales no imaginário geral. Tentar desvendar o que aconteceria de verdade após o clássico final feliz é quase dar um tiro no pé para um conglomerado que fatura em diversas áreas do entretenimento justamente por estimular a porção lúdica que existe nos pobres mortais, sintetizados neste argumento nas figuras centrais de um padeiro e sua mulher que querem desesperadamente ter um filho, bem interpretados por James Corden e Emily Blunt.

"Caminhos da floresta": para um argumento que procura imprimir pitada de realidade na fantasia dos contos de fada, nada como uma boa dose de... Fantasia! (Foto: Divulgação)

“Caminhos da floresta”: para um argumento que procura imprimir pitada de realidade nos contos de fada, nada como uma boa dose de… Fantasia! (Foto: Divulgação)

Apesar do visual deslumbrante que confere a dose de espetáculo à produção – com figurino, caracterização, efeitos especiais e cenografia que nada devem ao maravilhoso mundo da Disney – a história é sombria o suficiente para se afastar do padrão Walt de fantasia e a música de Sondheim – cerebral, excessivamente operística e pouco melódica – não contribui para o devido envolvimento da plateia com o filme. O longa é bem feito, o argumento é ótimo, o diretor tem boa mão, a realização é caprichadíssima e, bem… No meio daquilo tudo tem Meryl Streep no papel de um amálgama de todas as bruxas, roubando cena, fazendo valer o ingresso, carregando a produção nas costas e provando que continua sendo possível fazer outra megera de verdade mesmo depois do estigma de Miranda Pristley. Afinal, ela é Meryl Streep, ué!

Bruxa da telona: na ausência de uma música contudente e no excesso de teor operístico, Streep é quem segura o longa e vale o ingresso (Foto: Divulgação)

Bruxa da telona: na ausência de uma música contudente e no excesso de teor operístico, Streep é quem segura o longa e vale cada centavo do ingresso (Foto: Divulgação)

Entretanto, o que atrapalha não é a crueza do tema (afinal, os próprios contos de fada originais são sombrios para danado), nem a adoçada que o estúdio faz do roteiro para torná-lo palatável ao seu público dentro do tal jeito Disney de ser. Falta ritmo e isso se dá sobretudo pela ausência de uma melodia contundente que fique chocalhando na cabeça do público para valer nestes 125 minutos de projeção quase toda cantada, com pouquíssimas cenas faladas e nenhum número de dança. Apesar de fofo, acaba cansando e Marshall agora não tem na manga as composições saracoteantes da dupla de John Kander e Fred Ebb, nem as coreografias inspiradíssimas de Bob Fosse que marcaram gerações de bailarinos de jazz. E, por exemplo: “Os Miseráveis” (Les Misérables, de Tom Hooper, Universal Pictures, 2012) também não tem coreografias, é bem mais longo (158 minutos) e inteiramente cantado, sem uma frase falada sequer, mas a música de Claude-Michel Schönberg pega que é um beleza e é impossível sair do teatro ou do cinema sem tê-la martelando na cachola. Coisa de compositor europeu, que sabe conquistar o público pelo ouvido.

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Fotos (Divulgação)

Não é o caso de Stephen Joshua Sondheim, novaiorquino de quase 85 anos, orgulho da colônia judaica, bom para cacete, que já levou para casa sete prêmios Tony (mais do que qualquer outro compositor), uma penca de Grammys, um prêmio Pulitzer e até um Oscar de ‘Melhor Canção Original’ por “Sooner or Later (I Always Get My Man)”, clássico na voz de Madonna e uma das cinco músicas que escreveu para “Dick Tracy” (idem, de Warren Beatty, Touchstone Pictures, 1990). Tudo isso, contudo, não é suficiente para fazê-lo incorporar o suprassumo daquele showbizz que torna um sucesso dos palcos imediato blockbuster em Hollywood. Não adianta ser meticulosamente genial se não tiver na veia aquela dose exata de certa injeçãozinha feérica, quase uma insulina que torna as bochechas novamente coradas. O que não deixa o filme decolar não é fato de a Disney adoçar a pitada de realidade do argumento, mas a falta de açúcar necessário para tirar o público de uma hipoglicemia musical.

Madonna na cena em que desfia "Sooner or Later": a canção é do mesmo Sondheim, mas tem mojo. Além disso, o diretor Beatty soube imprimir ritmo ao filme e só deixou o compositor criar cinco músicas de todo o filme, dosando o resultado (Foto: Reprodução)

Madonna na cena em que desfia “Sooner or Later” em “Dick Tracy”: canção é do mesmo Sondheim, mas tem mojo. Além disso, o diretor Beatty soube imprimir o devido ritmo ao filme e só deixou o compositor por a mão em cinco músicas de toda a produção, dosando o resultado (Foto: Reprodução)

De alguma forma, a estrutura narrativa e formal de “Caminhos da floresta” segue o tipo de musical que os franceses tentaram fazer nos anos 1960, como “Os Guarda-chuvas do amor” (Les parapluies de Cherbourg”, de Jacques Demy, Parc Film e outros, 1964), um clássico, inteiramente cantado também, mas que tem sérios problemas de ritmo. Afinal, é sabido que a rapaziada da Nouvelle Vague, por mais pensante que fosse, no íntimo tinha o profundo desejo de flertar com as grandes produções comerciais de Hollywood e não é à toa que Jerry Lewis é mais reconhecido na França do que em sua terra natal. A magia do cinemão musical americano sempre encantou essa turma que sentava num bar para fumar, beber e falar de Jean-Paul Sartre. Jacques Demy tentou investir nesse mesmo tipo de musical em que Sondheim se especializou e só foi encontrar a mão certa três anos depois de sua primeira investida no gênero, quando percebeu que precisava dosar a verve intelectualoide com o devido espetáculo e pôs no mapa “Duas garotas românticas” (Les Demoiselles de Rochefort, Parc Film, 1967), mantendo algum pique cerebral, mas aditivando tudo com Gene Kelly, George Chakiris e, principalmente, melodia.

Catherine Deneuve em "Os Guarda-chuvas do amor": tentativa da Nouvelle Vague de cerebralizar demais o gênero musical (Foto: Reprodução)

Catherine Deneuve em “Os Guarda-chuvas do amor”: tentativa do cinema francês de cerebralizar demais o gênero musical (Foto: Reprodução)

Felizmente agora, além de Meryl, a produção caprichou no personagem principal: a própria floresta que dá nome à obra, sombria, enorme, composta por um emaranhado de caules, troncos e raízes. É nesse ambiente soturno onde os personagens o tempo todo vão e vêm que se passa a maioria das cenas, com ela representando os rumos podemos dar às nossas vidas. No fundo, ter a possibilidade da escolha certa é a grande magia de viver, não se deixando levar por qualquer desejo, e não há poção encantada que substitua o autoconhecimento e o livre-arbítrio. Fica a lição.

Como a Madrasta de Cinderella, Baranksi  entre Tammy Blanchard (Florinda) e Lucy Punch (Lucinda): trio se reveza nas funções de personagens cômicos e daqueles que resgatam a crueldade original dos contos de fada originais pré-Disney (Foto: Divulgação)

Como a Madrasta de Cinderella, Baranski entre Tammy Blanchard (Florinda) e Lucy Punch (Lucinda): trio se reveza na função de contrapontos cômicos e de personagens que resgatam a crueldade original dos contos de fada pré-Disney (Foto: Divulgação)

No mais, vale mencionar a deliciosa presença-relâmpago de Johnny Depp em plena forma como o Lobo Mau, em papel dentro de sua zona de conforto, além das sempre ótimas Tracey Ullman (mãe de João), Christine Baranski (Madrasta) e Frances de la Tour (Giganta), coadjuvantes que sempre dão conta do recado. Mas é o agora adolescente Daniel Huttlestone – que já tinha sido visto em “Os Miseráveis” como o menino de rua Gavroche – que engole os colegas, depois de Meryl. Para os aficionados em cinema, é bom mencionar que ele tem a energia de dois outros atores-mirins dos 1960/1970: Mark Lester (“Oliver!”) e Peter Ostrum (“A Fantástica Fábrica de Chocolate).

Huttlestone e sua vaca, com quem contracena em boa parte da história: como outros atores mirins, sua força é incontestável, além de cantar bem (Foto: Divulgação)

Huttlestone e sua vaca, com quem contracena em boa parte da história: como outros atores mirins, seu talento é incontestável e, além disso, o pirralho sabe cantar bem (Foto: Divulgação)

Trailer oficial de “Caminhos da Floresta”