Bernardo de Assis: ator trans e falta de representatividade no audiovisual: Queremos trabalho e contar nossa história


O ator interpreta o personagem Catatau, em ‘Salve-se Quem Puder’. O personagem, assim como ele, é um homem trans. Bernardo aborda na entrevista que as representações midiáticas da transexualidade não são fiéis à realidade e podem ser problemáticas: “Quando colocam uma pessoa cis para fazer uma pessoa trans, por mais que seja ficção, estamos trabalhando com formação de opinião. O público que está assistindo pode associar, sim, o personagem ao ator ou atriz”

*Com Bell Magalhães

No ar em ‘Salve-se Quem Puder’, da Globo, o ator Bernardo de Assis é Catatau, um office boy apaixonado por Renatinha, vivida por  Juliana Alves. O personagem tem uma ligação íntima com a própria história do ator. Como Bernardo, ele também é um homem trans. O impacto dessa atuação conversa diretamente com a representatividade. “Eu, sendo na vida real e interpretando na ficção o papel de uma pessoa transexual em uma emissora com repercussão nacional, mostra que, sim, nós somos capazes de fazer nossas histórias, mas podemos ser múltiplos em nossos trabalhos”. 

De volta às telas depois da interrupção das gravações por conta da pandemia do Covid-19, o ator fala que Catatau é um ponto fora da curva, pois mostra outras facetas do personagem fora do estereótipo imposto sobre corpos trans: “Ele tem várias características, entre elas, o fato de ser trans. Isso naturaliza o olhar, porque se fala de transexualidade sempre na perspectiva da violência e da marginalização. Nós não aguentamos mais, porque parece que esse é o único caminho a ser seguido”, comenta. Além do folhetim, Bernardo dividiu a rotina de gravações com a direção dos curtas ‘Bhoreal’, sobre uma drag queen que participa de projetos sociais com moradores em vulnerabilidade nas rua de São Paulo durante a pandemia, e ‘Filho Homem’, no qual aborda as diferenças e as proximidades entre dois irmãos – um criado para ser homem e outro para ser mulher -, ambos rodados em 2020.

Bernardo de Assis vive o personagem Catatau, um office boy que, assim como ele, é um homem transgênero (Foto: Oseias Barbosa)

Bernardo de Assis vive o personagem Catatau, um office boy que, assim como ele, é um homem trans (Foto: Oseias Barbosa)

O primeiro contato de Bernardo com as artes cênicas foi ainda na escola, frequentando cursos e atividades extracurriculares. Mais tarde, escolheu seguir a carreira e cursou duas graduações: interpretação e direção teatral. Foi nesse período que o ator se entendeu como um trans-homem ao participar da peça ‘BIRD’, de Livs Ataíde, no qual interpretou Maria Elisa, uma menina que, em um dia comum, acordava com barba. Ele conta que foi um momento decisivo, pois percebeu que a história da personagem conversava com a inquietude de sentimentos que levou a vida inteira. Segundo o ator, essa ressignificação surgiu no momento ideal para que tomasse uma atitude que iria mudar a sua vida por completo: “Nessa época, já estava formado e trabalhando, então teria a autonomia para arcar com as consequências de qualquer decisão que tomasse. Na adolescência, não pude expressar a minha identidade, pois morava com os meus pais e não tinha a liberdade de fazer as minhas escolhas”.

"Na adolescência eu não podia expressar a minha identidade porque morava com os meus pais e não tinha a liberdade de fazer as minhas escolhas" (Foto: Oseias Barbosa)

“Na adolescência, não pude expressar a minha identidade pois morava com os meus pais e não tinha a liberdade de fazer as minhas escolhas” (Foto: Oseias Barbosa)

Nascido em Madureira e criado em Inhaúma, bairros da Zona Norte do Rio, Bernardo diz que a informação é escassa nos subúrbios e periferias, e reflete que isso dificulta o contato de jovens à cultura e, principalmente, ao debate de questões sobre sexualidade e gênero. “O que não é apresentado para a gente é uma parcela muito grande do conhecimento. Apesar de estudar teatro na minha infância, eu não frequentava o teatro porque não existia nenhum perto de onde eu morava. Quando falamos de questões LGBTQIA +, é ainda mais forte, porque é como se não existissem referências ou possibilidades”, explica. 

E Bernardo acrescenta: “A criança que não tem acesso à informação não pode levar as indagações para a família e para a escola por medo ou angústia de represálias. Então, essa pessoa cresce amedrontada e com dúvidas, além do próprio preconceito”, afirma. As limitações o fizeram ter um conhecimento tardio do que hoje faz parte da própria identidade e compara o avanço do entendimentos dessas pautas pela nova geração: “Eu não me lembro de ter tido referências transexuais na minha infância. Só fui saber com 16 anos, enquanto a minha sobrinha, Tina, de 6 anos, já sabe o que é porque convive comigo. As crianças agora têm muito mais oportunidades de aprender e cabe a elas buscarem e pesquisarem, mas o acesso está um pouco mais democrático. Quando olho para a minha adolescência, há 10 anos, esse acesso era mais restrito. Hoje, a informação está mais evidente. E ainda bem”. 

Bernardo e a sobrinha, Tina: "As crianças de agora tem muito mais oportunidade de aprender. O acesso está um pouco mais democrático" (Reprodução Instagram)

Bernardo e a sobrinha, Tina: “As crianças de agora tem muito mais oportunidade de aprender. O acesso está um pouco mais democrático” (Reprodução Instagram)

A jornada em busca da individualidade acabou limitando o artista. Bernardo conta que, quando se entendeu enquanto homem trans e decidiu se assumir, as portas começaram a se fechar: “O espaço que eu tinha conquistado aos poucos sumiu. Como eu estava no início da minha transição, as pessoas não me enxergavam enquanto homem, nem como mulher. Não tinha mais trabalho para mim”. Em uma fuga para encontrar novas oportunidades foi protagonizar a série ‘Transviar’, da Eparrêi Filmes. Nos três episódios iniciais, existia uma cena da ‘pré-transição’ do personagem Pedro, mas da época que ele ainda era visto como Eduarda. 

Para a equipe criativa, nunca houve dúvida de que o ator faria os episódios. “Eu iria fazer tudo, porque se tratava de um personagem trans e, se houvesse a necessidade de fazer um período pré-transição, daria conta tranquilamente”. Para assumir o papel, precisou usar aplique no cabelo, raspar a barba, usar roupas femininas, abandonar temporariamente o seu binder (faixa de compressão para os seios). Por mais doloroso que possa ser para alguns, Bernardo encarou que era seu dever enquanto ator. “Ficavam me perguntando toda a hora se eu estava bem e confortável, e eu respondia ‘sim, estou plenamente confortável’. Na minha vida, eu posso fazer outras escolhas, mas esse é o meu trabalho. É uma opinião minha, porque podem existir pessoas que não irão se sentir bem fazendo esse tipo de trabalho”, afirma.

"No início da minha transição, as pessoas não me enxergavam enquanto homem, nem como mulher. Não tinha mais trabalho para mim" (Reprodução Instagram)

“No início da minha transição, as pessoas não me enxergavam enquanto homem, nem como mulher. Não tinha mais trabalho para mim” (Reprodução Instagram/Sergio Santoian)

As representações midiáticas da transexualidade muitas vezes não são fiéis à realidade e estão repletas de visões caricatas, como Hilary Swank interpretando Brandon em ‘Homens Não Choram’ (1999), e Eddie Redmayne em ‘A Garota Dinamarquesa’ (2013), no qual ambos ganharam o Oscar na categoria de Melhor Ator/Atriz. Um dos personagens da televisão brasileira que mais se fixaram no imaginário do público foi Ivan, na novela ‘A Força do Querer’, interpretado por Carol Duarte. A atriz mostrou as fases antes e depois da transição e teve que recorrer à caracterização para ganhar traços masculinos. Para Bernardo, esse tipo de inserção é perigosa: “Quando colocam uma pessoa cis para fazer alguém trans, por mais que seja ficção, estamos trabalhando com formação de opinião. O público que está assistindo pode associar, sim, o personagem ao ator ou atriz”. 

Segundo ele, a vivência deve ser contada por pessoas que, de fato, estão inseridas nesse contexto. “Por mais que, enquanto artistas, tenhamos a liberdade de encenar histórias, ter profissões e tudo mais, estamos falando da vivência da identidade de gênero. A ideia de pensar que um trans não atuaria em um período anterior à transição não existe. Escutei muito que a escolha de selecionar um cisgênero para interpretar um personagem transgênero era por conta da ideia pré-concebida de que o ator trans não faria papel por desconforto. Você se deu ao trabalho de ouvir um indivíduo transexual ou você, que é cis, tem esse olhar sem saber ao certo o que ele tem a dizer? O que queremos é trabalhar e ter a oportunidade de contar a nossa própria história”, desabafa.

"A ideia de pensar que uma pessoa trans não atuaria em um período anterior à transição não existe" (Reprodução Instagram)

“A ideia de pensar que uma pessoa trans não atuaria em um período anterior à transição não existe” (Reprodução Instagram)

Em produções que falam sobre diversidade, a inclusão não é tão contundente. Na maior parte das vezes, a equipe é formada por homens brancos, cisgêneros e gays. Bernardo diz que não devemos negar a luta de nenhuma dessas ‘letras’ dessa sigla, mas é importante refletirmos qual a importância e de quem ocupa esse espaço: “Geralmente ele é protagonizado por pessoas que são parecidas, o que não é saudável. Cada vez que eu vejo mulheres negras, lésbicas e periféricas e gays afeminados fazendo parte dessa revolução, vejo o quanto a internet possibilitou que esses corpos começassem a ser protagonistas das próprias histórias”. Aos poucos o cenário vai se modificando.

Quando viu Gilberto Nogueira na manhã seguinte à eliminação do ‘BBB21‘ no ‘Mais Você‘, de Ana Maria Braga, Bernardo conta que ficou emocionado pelas falas e a importância de ‘Gil do Vigor’ para a comunidade LGBTQIA +: “Fiquei imensamente feliz em ver Gil, de origem humilde, com ancestralidade negra, gay e afeminado, prestes a entrar no doutorado nos Estados Unidos. Mesmo com pouco espaço, começamos a dominar essas narrativas. Agora, a nossa luta é de ampliar esse espaço porque ele ainda é muito pequeno, e somos muito maiores que isso”, conclui.