“As pessoas acham que o corpo negro, o feminino, é de propriedade pública”, pontua Mariana Nunes


Com dois filmes no Festival do Rio e mais de 15 longas no currículo, a atriz segue construindo uma promissora carreira cinematográfica, revela o desejo de fazer uma novela e se diz cansada da caretice do mundo: “Têm coisas que estou tentando evitar, como essa necessidade de associar uma pessoa à outra, determinar estado civil: é casada? Solteira? Outra questão, também, é essa definição por gênero: sou menina, sou menino. Ou orientação sexual: se é hétero, se é gay. Muitas “caixinhas” para enquadrarem a gente, enquanto isso é o que menos importa”

*Por Brunna Condini

Mariana Nunes é uma atriz que empresta sua multiplicidade para dar voz às mulheres que interpreta. Aos 39 anos, ela não é adepta de rótulos e vem ocupando várias produções no cinema e nas séries de TV. “Todo personagem traz alguma questão. Minha condição para aceitar um papel, é que seja um trabalho interessante em diversos níveis: assuntos que desejo falar, direção que quero trabalhar, são muitos fatores”.

“Já passamos por tempos difíceis e o cinema se reinventou. Não adianta, nós artistas não vamos parar” (Crédito: Adriano Reis)

No Festival do Rio com dois filmes na mostra competitiva, “Pureza”, de Renato Barbiere, e “M8 – Quando a morte socorre a vida”, de Jeferson De, Mariana comenta sobre a força dos temas nos dois longas. “O “M8”, conta a história de um cotista de medicina, que percebe que todos os cadáveres estudados são negros, e que além disso, ele é o único negro ali fazendo medicina. Isso faz com que o personagem busque entender essa situação. Faço a mãe dele, a Cida, uma auxiliar de enfermagem. No filme, somos umbandistas, então tem uma questão religiosa também. De todos os últimos longas que fiz, é o que mais fez sentido, é um assunto que é atual há muito tempo: a realidade dos cotistas que ingressam nas universidades”, analisa. “Já o “Pureza”, conta a história da dona Pureza, uma mulher real e que ainda está viva, e teve seu filho capturado para o trabalho escravo. Ela faz de tudo para encontrar esse filho. Neste, faço uma auditora fiscal do trabalho, em Brasília”.

Mariana, com o diretor Jeferson De, em cena de M-8 (crédito: Vantoen)

Como a maioria dos artistas, Mariana exalta a importância do Festival do Rio para a cidade: “Ele estar acontecendo só mostra que o cinema sempre resistiu e sempre resistirá. Já passamos por tempos difíceis, nublados e o cinema se reinventou. Não adianta. Nós, artistas, não vamos parar”.

Com Dira Paes, que protagoniza “Pureza” (crédito: divulgação)

Com mais de 15 longas no currículo (“Não sei se o cinema se apaixonou por mim ou eu por ele”), a atriz que mal saiu da série “Carcereiros” na Globo e já integrava os elencos de “Segunda Chamada”, na mesma emissora, e de “Vítimas Digitais”, no GNT, se diz cansada da caretice do mundo. “Têm coisas que estou tentando evitar, como por exemplo, essa necessidade de associar uma pessoa à outra, determinar estado civil: é casada? Solteira?”, aponta a atriz, que é reservada em relação à sua vida privada. “Não curto falar sobre a parte mais pessoal, não acho interessante. Outra coisa também, é essa definição por gênero: sou menina, sou menino. Ou orientação sexual: se é hétero, se é gay. Muitas “caixinhas” para enquadrarem a gente, enquanto isso é o que menos importa. Isso nada tem a ver com a essência do que se é, mas as pessoas estão sempre nessa busca de entender onde é que podem te encaixar. Isso eu acho careta demais. Mas nada contra quem quer levantar uma bandeira, se definir, mas quando isso vem de outra pessoa, aí acho complexo, careta”.

Em cena de “Vítimas Digitais”: “O que mais me afetou foi o silenciamento que acontece com a personagem” (Crédito: divulgação)

Em “Vítimas Digitais”, que apresenta histórias femininas baseadas em fatos reais, Teresa, personagem de Mariana, é uma atriz que conhece um rapaz pelas redes sociais e é estuprada por ele. Ao expor o caso nas redes, é atacada e perseguida. Como te afetou viver essa personagem, que não é personagem? “Sei que foi um caso que ficou público nas redes sociais na época, mas não acompanhei e não conheci essa mulher. Também não senti necessidade, porque saber da história, já bastou. A maioria das mulheres, já passou por algo deste tipo ou próxima disso. Acho que não é difícil a conexão com essa história. O que mais me afetou foi o silenciamento que acontece com a personagem da Tereza quando ela resolve denunciar o que aconteceu com ela. Ela é criticada, ridicularizada, ofendida, culpabilizada por uma situação onde ela é a vítima”, constata. “A maioria das mulheres sabe o que é ser silenciada em diversos níveis sociais, em diversas escalas e situações. Acho que boa parte das mulheres já passou por alguma situação onde sua fala teve menos valia ou foi duvidada. Mulheres negras, corpos negros, mais ainda, porque são vozes com pouco peso e pouca escuta. Então, foi neste lugar que eu me conectei com a Teresa, que não foi ouvida e acolhida quando precisava ser. Isso é muito comum de acontecer com as vozes das mulheres negras”.

“Acho que aquela menina que saiu de Brasília hoje é uma mulher mais segura de si e das suas vontades” (Crédito: Adriano Reis)

E a atriz já sofreu assédio ou teve sua intimidade invadida assim? “Acho que muita gente entende assédio, agressão ou a invasão da intimidade, como uma coisa necessariamente violenta ou fisicamente invasiva. Mas acho que toda mulher já sofreu assédio ou sofre, percebendo ou não”, diz Mariana. “Sempre sinto essa coisa da invasão da intimidade, porque as pessoas acham que o corpo negro, o corpo feminino, é um corpo de propriedade pública. Então todo mundo se sente no direito de te tocar, pegar no seu cabelo para ver como é, por exemplo. De encostar, dar tapa na sua bunda de ‘brincadeira”, porque é uma coisa, que vem sendo naturalizada desde os remotos tempos da escravidão, porque um corpo negro sempre foi objetificado. E resquícios disso, ainda sobram, por mais que seja na melhor das intenções, com carinho, as pessoas se sentem muito a vontade de te tocar. E só pode me tocar quem eu permito, né? Essa questão da invasão acontece sempre e eu reajo dizendo que não curto, não quero que faça”.

E revela o desejo de fazer uma novela: “Tenho muita vontade, mas ainda não surgiu a oportunidade” (Crédito: Adriano Reis)

A atriz também lamenta que no cenário atual, século 21, quase 2020, mulheres ainda sejam agredidas, diminuídas e mortas.E também acho que falta um recorte racial nesta questão. Tem um estudo, que nos últimos 10 anos, o assassinato de mulheres negras aumentou, 15%, enquanto entre as mulheres não-negras, aconteceu a queda de 8%. Então, acho importante ressaltar esse recorte racial que acontece neste tipo de agressão às mulheres. Mas as mulheres têm tido cada vez mais coragem e mais estímulo para denunciar o seu agressor”.

 Com 23 anos de carreira, ela planeja rodar mais dois filmes no início do 2020, produzir um monólogo e escrever um livro sobre relações interraciais. E revela o desejo de fazer uma novela: “Tenho muita vontade, mas ainda não surgiu a oportunidade”.

E faz um balanço do caminho até aqui: “Acho que aquela menina que saiu de Brasília, hoje é uma mulher bem mais segura de si e das suas vontades. Mas ainda em processo, porque quanto mais o tempo passa, você percebe que a opinião dos outros é bem menos importante do que achamos que é. Entendo mais como funciono no mundo e acho que isso é o fundamental. Porque as vezes ficamos querendo agradar, no esforço para sermos aceitas, ter a aprovação do outro e isso tem que partir de nós. Acho que isso demora mesmo para entender. Para algumas pessoas isso chega mais cedo, para mim chegou mais tarde”.