“Ainda nos tratam como se não fôssemos capazes. É o machismo”, desabafa feminista lusitana em doc premiado


‘Lusófonas’, longa recém-premiado no Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa, trata das questões femininas mais urgentes em quatro países de três continentes

*Por Jeff Lessa

Raramente voltamos nosso olhar para o universo lusófono. De certa forma, o Brasil mantém com os países onde se fala o português uma relação parecida com a dos países da América Latina, de relativo desconhecimento de seus hábitos, de sua cultura, seus problemas, suas políticas. Aos poucos, de maneira vagarosa, degrau por degrau, a situação vem mudando. Com a crise e a descoberta de Portugal como “paraíso”, nós, brasileiros, passamos a prestar mais atenção ao países-irmãos. Agora subimos mais um degrau com a premiação do documentário “Lusófonas”, considerado o Melhor Filme no Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa (Festin) esta semana.

Produzido pela Flora Filmes, com direção e roteiro da cineasta Carolina Paiva, o longa fez sua estreia mundial há duas semanas, no cinema Alvalade, em Lisboa. A ideia do documentário é mostrar o que aproxima as mulheres lusófonas. Para isso, a equipe percorreu quatro países (Portugal, Moçambique, Angola e Brasil) em três continente. Em todos esses lugares, questões como a violência doméstica, a desigualdade no mercado de trabalho, o machismo, a necessidade de criar os filhos sozinhas aparecem como temas em comum.

O doc 'Lusófonas' mostra que a realidade das mulheres que falam português na África é semelhante com a das brasileiras e portuguesas

O doc ‘Lusófonas’ mostra que a realidade das mulheres que falam português na África é semelhante com a das brasileiras e portuguesas

Os depoimentos são fortes. Ao longo de 70 minutos, diversas mulheres debatem as questões femininas mais urgentes. Entre elas, líderes como Marisa Matias, candidata à presidência de Portugal em 2015, atualmente deputada europeia, e Natividade Bule, empresária moçambicana criadora da Caixa Econômica Poupança Mulher.

Estudantes, donas de casa, pesquisadoras, representantes da Justiça e do meio acadêmico também ganham voz para discutir os temas de interesse das mulheres, falar de seus problemas e sugerir soluções. “Eu brinco com minhas amigas que somos as bruxas que não conseguiram queimar” diz, no filme, a guia de turismo Ana Rita, de 26 anos, que organizou um pequeno coletivo feminista no Norte de Portugal. “Ainda nos tratam como se não fôssemos capazes ou competentes. É o que chamo de machismo nosso de cada dia”.

Portugal avançou em muitas áreas, mas o machismo persiste no país europeu

Portugal avançou em muitas áreas, mas o machismo persiste no país europeu

Esse machismo a que se refere a feminista portuguesa é comum, não importa onde se esteja. A diretora Carolina Paiva encontrou mulheres lutando para ter seus direitos respeitados, ajudar outras mulheres ou apenas para sobreviver em sociedades muito machistas em todas as cidades onde esteve. Não foram poucas. Em Portugal, Carolina visitou Lisboa, Évora, Porto e Gaia. Em Moçambique fez entrevistas nas cidades de Maputo e Matola, ao passo que escolheu Luanda e Zango 3 em Angola. No Brasil, a equipe do documentário passou por Rio de Janeiro, Barra do Piraí e Canoa Quebrada (CE).
Independentemente do tamanho ou do grau de cosmopolitismo da cidade, é incrível perceber como as histórias se assemelham. Em Lisboa, a assessora política Helga Calçada lembra que a pobreza afeta principalmente as mulheres. Em Angola, a babá Zita João enfrenta um cotidiano similar ao de milhares de brasileiras: precisou abandonar a própria casa, comprada com o esforço de anos de trabalho, por conta da violência doméstica. E em Barra do Piraí a jongueira Adriane mostra como o problema da opressão é secular, herança viva do tempo das fazendas de café da região.

Em Moçambique, até poucos anos atrás uma mulher precisava da assinatura do marido para ter conta em banco

Em Moçambique, até poucos anos atrás uma mulher precisava da assinatura do marido para ter conta em banco

O doc não trata essas questões difíceis com um tom pessimista, pelo contrário. Mostra que são assuntos que devem ser discutidos por todos e que exigem criatividade para serem resolvidos. “Há alguns anos, as moçambicanas não podiam abrir contas bancárias sem a assinatura do marido. Hoje, elas têm seus próprios negócios, com financiamento da Caixa Econômica Poupança Mulher”, lembra Natividade Bule. Já em Angola, a estilista Nadir Tati constrói uma carreira sólida e bem-sucedida, abrindo espaço em uma profissão tradicionalmente dominada por homens.

E, claro, não há como esquecer uma importante conquista brasileira na área: a Lei Maria da Penha, ratificada em agosto de 2006. A iniciativa conquistou respeito internacional: “O Brasil vem recebendo reconhecimento em muitos tribunais internacionais graças à Lei Maria da Penha. É um avanço importantíssimo para as mulheres”, afirma, em entrevista, a doutora em economia Hildete Pereira, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

“Lusófonas” será exibido no CineBrasil TV (emissora de televisão brasileira dedicada à produção audiovisual independente nacional) em setembro e tem previsão de lançamento nos cinemas no primeiro semestre de 2020. Outro lançamento da Flora Filmes para se ficar atento é “Foliar Brasil Doc” que, em sua segunda temporada, percorre 13 festas populares, de Norte a Sul, mostrando danças, pratos e trajes típicos que formam a diversidade cultura do país. Trata-se de uma série em 13 episódios de 26 minutos que também será exibida no CineBrasilTV.