*Por Jeff Lessa
Lá no começo do ano, a conhecida atleta olímpica inglesa Sharron Davies afirmou que permitir que mulheres trans competissem com garotas e “mulheres de verdade” arruinaria os esportes femininos. A ex-nadadora, que levou a medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Moscou em 1980 para a Inglaterra, disse ao jornal “Daily Telegraph” que os atletas transgêneros tinham vantagens físicas naturais sobre as mulheres nas competições. “Mais que classificar por gênero, precisamos classificar por sexo. E se a comunidade transgênero não estiver satisfeita, vamos buscar uma alternativa, jogos transgêneros ou algo assim. Como isso pode ser justo com as mulheres?” disse, na ocasião. Foi chamada de tudo, com ênfase em transfóbica. Não pegou nada bem.
Agora, Sharron, de 57 anos, voltou a atacar. Ela tuitou o seguinte comentário: “Será que só eu estou farta de shows de drag queens? Uma paródia da verdadeira mulher, igual ao blackface (prática de atores brancos pintarem o rosto e os braços de preto com carvão para representar personagens afro-americanos de forma exagerada, reforçando estereótipos com intenções pretensamente cômicas.). As mulheres estão correndo para preparar uma refeição saudável, lavando roupa & fazendo a faxina, se segurando no emprego com as dores da menstruação & peitos que vazam leite, caso estejam amamentando. Chega de estereótipos”.
Os usuários das redes sociais não perdoaram e acusaram Ms. Davies de promover seus próprios estereótipos femininos – afinal, caracterizar mulheres como mães que criam filhos, cozinham, lavam roupa e fazem faxina não passa de um belo de um clichê – e de minimizar o racismo, já que a prática do blackface é considerada absurdamente ofensiva e não tem comparação com shows de drag queens. O tuíte teve mais de 12.500 curtidas e sete mil comentários. É claro que alguns seguidores concordaram com a ex-atleta, mas a maioria não engoliu a definição estereotipada de mulher e a comparação de shows de drag com blackface.
Entre as muitas celebridades que caíram em cima de Sharron Davies está a cantora Michelle Visage, famosa por ter sido coapresentadora do talk show “The RuPaul Show” e, desde janeiro de 2011, atuar como jurada no reality “RuPaul’s Drag Race”, concurso em que as concorrentes precisam esbanjar charme e glamour para ganhar o título de Drag Queen Superstar. “OU… você pode ver isso pelo que a drag realmente É, uma celebração e uma homenagem de tudo que é feminino, dando força para as que precisam de força! Mulheres fortes não são ameaçadas por drag queens, antes são empoderadas pela audácia delas. BOAS FESTAS!!”, disse Visage, no Twitter.
A importante apresentadora da TV britânica Lorraine Kelly também não aceitou muito bem os pitacos da conterrânea: “Oh, Sharron. Você não pode subestimar a força das drags e como isso empodera pessoas que frequentemente se sentem excluídas – elas podem encontrar uma família, ganhar confiança, aprender a se amar e ser quem realmente são. Isso pode, literalmente, salvar vidas. E é muito DIVERTIDO!”.
Outras drags ficaram mais que chateadas. Vinegar Strokes, nome artístico de Daniel Jacob, famosa por ter participado da primeira edição do RuPaul’s Drag Race britânico, mandou o seguinte recado: “ACABEM COM TODOS OS SHOWS DE DRAG! @sharron62 está de saco cheio e sofrendo de ‘Drag Fatigue’! Meu amor, você nunca pensou que a maioria das Drag Queens estão celebrando a mulher e as fantásticas conquistas que a mulher obteve para modelar o mundo? VOCÊ não fez nada além de dar forma a um estereótipo! LIXO!”.
Trinity “The Tuck” Taylor (ou Ryan Taylor), drag queen americana de 34 anos mais conhecida pela vitória na quarta temporada da Drag Race All Stars de RuPaul, escancarou toda a sua decepção no Twitter: “Só pessoas de cabeça fraca veem dessa forma. Se você é uma mulher/mãe TÃO forte, um homem vestido de mulher para dublar uma canção não deveria sequer estar no seu radar. Isso me soa como ignorância de branco hétero privilegiado… Mas o que sei eu?? Sou apenas um homem usando um vestido”.
Todo esse quiproquó começou há coisa de cinco dias, quando a escritora J.K. Rowling, autora da série de livros sobre o bruxo Harry Potter, resolveu apoiar a pesquisadora Maya Forstater, que, em março, declarou via Twitter ser contra as propostas do governo para reformar o Gender Recognition Act 2004 (Ato de Reconhecimento de Gênero 2004, em tradução livre) a fim de facilitar o processo de reconhecimento legal de pessoas transgênero. Especialista do Global Development, um think tank internacional que se propõe a ter ideias contra a pobreza e a desigualdade, ela perdeu o emprego por conta da exposição de sua opinião. A sentença, desfavorável à pesquisadora, saiu agora e a escritora resolveu apoiá-la. O juiz considerou a decisão do Global Development correta e afirmou que Maya Forstater foi “absolutista em sua visão do sexo” e “incompatível com a dignidade humana e com os direitos fundamentais dos outros”.
Respondendo à decisão, a criadora de Harry Potter tuitou: “Vista-se como lhe agradar. Chame-se pelo nome de que gostar. Durma com qualquer adulto que concorde em ficar com você. Viva a melhor vida em paz e segurança. Mas empurrar mulheres para fora de seus empregos por afirmarem que sexo é real?”. Sharron Davies correu para apoiar a posição de J.K., que, por sua vez, se recusa a voltar atrás. A ex-nadadora já havia criado marolas nesse ano, quando a halterofilista trans neozelandesa Laurel Hubbard, de 41 anos, ganhou duas medalhas de ouro nos Jogos do Pacífico. A preocupação agora é com as Olimpíadas do Japão em 2020.
Em 2016, o Comitê Olímpico Internacional (COI) modificou a resolução sobre transexuais em competições oficiais, determinando, entre outras coisas, o fim da obrigatoriedade de cirurgia de mudança de sexo e que tomem supressores de testosterona por pelo menos 12 meses antes de uma competição.
Atletas conhecidos estão exigindo, porém, que o COI pesquise mais a fundo o impacto da participação de transgêneros no esporte feminino. No entanto, Sharron Davie acredita que vai ser necessário que uma mulher de grande destaque e visibilidade seja derrotada para chamar a atenção do órgão. “De qualquer forma, tenho certeza de que vai haver mudanças”, afirma.
Por enquanto, o que se tem é uma grande confusão, muito radicalismo e pouca informação. Para se ter uma ideia, a primeira atleta transgênero americana a competir na primeira divisão de provas de cross-country foi Juniper Eastwood, de 22 anos, em agosto passado. Muita água ainda vai rolar. Certo mesmo é que a discussão é válida e ainda está no começo. E que shows de drag queens não têm absolutamente nada a ver com atletas trans. E menos ainda com blackface.
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