Com tiro que saiu pela culatra, Vuitton se transmuta literalmente em mala na Rússia pós-socialista. Sinal de que as grifes precisam cultivar humildade.


Com a gigantesca mala-pirâmide-disco voador sendo desmontada na Praça Vermelha e a expô adiada, a corporação de luxo se rende ao povo, precisando rever seus conceitos.

“Em terra de cego quem tem um olho é rei?” Bom, em se tratando de realeza, a Louis Vuitton fez a (rainha) egípcia e colocou uma enorme réplica de sua tradicional mala-ícone na Praça Vermelha, no coração de Moscou, Rússia, como instalação para exibir “The Soul of Travel”, a expô que começaria hoje e iria até 19 de janeiro, com 30 malas icônicas da grife associadas a famosos que representam a fina flor das celebridades, como Greta Garbo e Catherine Deneuve. Só que, de bem intencionado, o inferno fashion está lotado, e nem as iniciais P.W.O. – uma homenagem ao príncipe russo Vladimir Orloff, que inspirou o seu design no século 19 – foram capazes de livrar a maison francesa da confusão que estaria por vir. Como já foi noticiado, a rocambolesca atração foi colocada bem pertinho do mausoléu de outro Vladimir, o líder bolchevique Lênin, e isso bastou para irritar os moradores moscovitas, que se sentiram agredidos. Só para começar, a parafernália bloqueia a visão da Catedral de São Basílio, famosíssimo ponto turístico russo e ícone supremo de católicos ortodoxos do mundo todo. Além disso, a loja de departamentos Gum, que chancelava o evento – o último das comemorações dos 120 anos  desse centro de consumo – ficou tão receosa com a reação do público que logo tirou o corpo fora, soltando um comunicado que garante que a opinião popular é uma diretriz dominante na sua concepção, pedindo, em seguida, a retirada do pavilhão em forma de mala, que já começou a ser desmontado. Traduzindo: não importa o quanto se é poderoso no contexto do consumo global. Se for para não entender como funciona a cabeça do público local em cada parte do globo, melhor não fazer gracinha, baixar a bola e evitar megalomanias napoleônicas, correndo o risco de queimar o filme, caso contrário. “A construção desse pavilhão não foi estipulada com a Presidência da Rússia”, disse um funcionário do Kremlin citado pela agência “Interfax”. Pouco depois das declarações do integrante do Kremlin, o escritório de imprensa responsável por atender a Gum informou que entrou em contato com a marca francesa para falar sobre a “necessidade de desmontar de maneira urgente” a criticada mala. “A companhia Louis Vuitton constrói um baú em pleno centro de Moscou, em nossa praça mais importante. Isto não pode ser!”, declarou o líder do ultranacionalista do Partido Liberal Democrático Vladimir Jirinovski, em entrevista ao WWD.  E não foi só este terceiro Vladimir envolvido no estresse que abriu a boca. Konstantín Mikhailov, membro da Câmara Pública da Rússia, completou: “Milhares de pessoas vão ali para ver precisamente a Praça Vermelha, e não um pavilhão de uma empresa famosa”. Entretanto, uma estrutura construída em tal escala macro, com nove metros de altura e 30 metros de comprimento não poderia passar despercebida por ocasião da sua construção. Nenhum mastodonte aporta de paraquedas em praça pública sem chamar atenção e sem autorização prévia.  Obviamente, a chancela para construir tal baú no meio da Praça Vermelha não surgiu do nada, sem que as autoridades locais conhecessem a empreitada. O que ninguém deve ter desconfiado, naturalmente, é que, embora a Rússia tenha deixado de lado o socialismo da época de Lênin, Stálin e Krushev, ninguém tem o direito de afrontar um povo em sua própria casa, sem consultar primeiro o que cada um pensa. E, infelizmente, os marqueteiros de plantão nas corporações – assim como nos governos locais – ainda têm muito a aprender sobre como marcar território. Nesse caso, o tiro saiu pela culatra e, ao invés de fincar a bandeira da Vuitton em uma praça onde a clientela em potencial transborda pelas imediações, a grife francesa deveria ter sido mais cautelosa. Afinal, não é de hoje que a arrogância descabida causa a ruína de uma penca de déspotas e instituições. De acordo com a GUM, esta decisão foi adotada por conta da reação de parte da sociedade pela irritante presença desse elefante branco na Praça Vermelha, além de o fato de seu tamanho ter excedido os parâmetros que tinham sido acordados inicialmente. O projeto nasceu da proposta da grife francesa de realizar, com fins beneficentes, uma exposição retrospectiva de viagens com artigos da Louis Vuitton. Era para ser uma viagem mesmo, no bom sentido. Os lucros da exposição seriam destinados a uma organização que ajuda crianças carentes criada pela top russa Natalia Vodianova, a Naked Heart Foundation. E Natalia é praticamente parte da realeza que rege o grupo LVMH: está grávida de Antoine Arnault, o filho do CEO Bernard Arnault. Ainda assim, é difícil acreditar que um projeto desse porte seria construído pela LVMH sem que houvesse absoluta segurança de que cada centímetro cúbico de argamassa e compensado estivesse documentado em atas de aprovação do governo russo. Isso, claro, leva todos a crer que, diante do clamor popular, as autoridades locais tenham tirado o corpo fora e só restou à Vuitton assumir sozinha o descuido, sob risco de aumentar ainda mais a polêmica. Parece até aqueles acordos entre antigas potências europeias que naufragavam, justamente porque, diante de ocorrência inesperadas, um dos participantes era obrigado a roer a corda. RIAN_02325888.LR.en Foto: divulgação A Louis Vuitton está mais do que acostumada a fazer mega exposições, algumas manjadíssimas como a “Louis Vuitton Marc Jacobs”, em 2012, no Museu de Artes Decorativas, no Louvre, que traçou um panorama entre o fundador da marca e o diretor criativo à frente da marca na época, Marc Jacobs, estabelecendo um paralelo entre a história da cidade, a evolução do vestuário desde o século XIX e o papel dos dois estilistas nessa evolução. Os painéis de referência de Marc Jacobs (incluindo Dorothy de “O mágico de OZ” , Brigitte Bardot e Audrey Hepburn) fomaram uma exposição à parte. Além disso, teve também uma mostra com as coleções outono-inverno, desde 1988/89 até a primavera-verão 2012. Tudo um primor, além de importante registro iconográfico do comportamento ocidental, valioso para a posteridade. Ainda assim, o evento aconteceu em casa, na mesma Paris que inventou a moda e onde a Louis Vuitton se fez. Este tipo de ação deveria ser sempre bemvinda, desde que se respeite todo mundo, onde quer que se planeje montar ações desse calibre. Tomara que, com o que ocorreu agora, não somente a LVMH, mas todos os conglomerados, aprendam a lição. *Colaborou Rafael Moura