“Saúde mental é um assunto que precisa deixar de ser tabu”, diz a cantora Kell Smith


Em meio à pandemia, Kell Smith lança o álbum “O velho e bom novo”, que é totalmente autoral e trata de temas como depressão, autoconhecimento, vulnerabilidade e ressignificar o luto. “Nenhum problema é novo, a não ser o vírus. Tudo que o vírus evidenciou, seja a desigualdade ou a falta de saúde mental, já existia. Estamos dentro de nossas casas – quem pode, está isolado – e ninguém estava preparado para a própria companhia”, afirma a artista.

*Por Simone Gondim

A quarentena da cantora e compositora Kell Smith tem sido produtiva, mas também um período de olhar para dentro. Lançando o álbum autoral “O velho e bom novo”, produzido em meio ao isolamento social, a artista aproveita as letras para tocar em temas delicados, como depressão, vulnerabilidade, manter a calma e ressignifcar o luto. “A primeira ideia que nasceu foi o título. A intenção era falar de assuntos já conhecidos, mas importantes de continuarmos reverberando. Muitos deles são mal resolvidos, como a saúde mental, que precisa deixar de ser tabu. A gente deve entender para se cuidar”, afirma.

As músicas, curiosamente, foram compostas antes da pandemia causada pelo novo coronavírus atingir o Brasil, mas se encaixaram perfeitamente com a situação atual. “Fiz as canções em 20 dias de estúdio. Dei uma sumida e entrei em processo de imersão para compor o álbum. Estávamos na fase de pré-produção e produção quando tudo começou a acontecer”, conta a artista. “Nenhum problema citado nas letras é novo. Tudo que o vírus evidenciou, seja a desigualdade ou a falta de saúde mental, já existia. Estamos dentro de nossas casas – quem pode, está isolado – e ninguém estava preparado para a própria companhia”, ressalta. “Tudo do dia a dia que é feito na rua e funciona como distração ou muleta nos leva a empurrar, um pouco mais, a conversa que temos que ter com nós mesmos. Com a quarentena, não temos mais fugas. Quando a fuga é para dentro, você precisa tocar nesses assuntos”, acrescenta.

(Foto: Gustavo Arrais – Na Moral Produções)

Kell chegou a ficar na dúvida se valeria a pena lançar um álbum falando de temas tão profundos em uma época de polarização e ódio fácil. Mas, depois de uma boa reflexão, decidiu seguir em frente, porque o momento pede mais afeto. “O isolamento mexeu com todo mundo porque assusta, muda a rotina e provoca insegurança. É o momento de a gente aprender que está tudo bem não estar bem todos os dias”, observa. “Atualmente, com certeza, o que mais me afeta é a saudade da minha família, porque meus pais são grupo de risco e minha filha está com eles. Vamos suprindo essa ausência com tudo de bom que a gente tem de sentimento um pelo outro. Vai conversando por vídeo e se mantendo presente. É hora de cuidarmos uns dos outros. Está todo mundo precisando”, completa.

A preocupação com quem está vulnerável também não sai da cabeça da artista. “Não estamos no mesmo barco. Tem gente que está nadando e gente que está no navio, essa é a realidade. Saber que existem pessoas que não têm o mesmo privilégio que eu me deixa muito aflita. Procuro ajudar e me inteirar de projetos que façam isso, como o ‘Favelas esquecidas’, de São Paulo, e o do Raull Santiago e o pessoal do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro”, diz. “É hora de usar nossa criatividade para entender como enfrentar esse momento. Nosso inimigo não necessariamente é o vírus, mas sim como vamos reagir a tudo isso”, acredita.

(Foto: Gustavo Arrais – Na Moral Produções)

Mesmo tendo lançado o álbum, Kell reconhece que o coronavírus a fez mudar alguns planos. “Estávamos prontos para sair com a turnê do novo trabalho e não deu”, lamenta. “Buscamos alternativas para tudo continuar fluindo de maneira digital. A produção do álbum, por exemplo, foi feita a distância, cada um na sua casa. Ainda não saiu live porque quero que a gente faça isso em segurança e não seja só uma maneira de divulgar, tendo uma aglomeração de pessoas e colocando todo mundo em risco. Espero o momento certo, a estrutura adequada e a maneira certa para que tudo corra da melhor forma possível”, explica.

Para a cantora e compositora, a música é maior do que o artista. Ela também considera a arte é uma ferramenta importante, a fim de manter a mente saudável em meio ao isolamento social. “A arte é a companhia de todo mundo que está nessa situação e tem papel fundamental. As pessoas estão em casa consumindo séries, filmes e lives de artistas, por exemplo. Por isso, decidi encarar as dificuldades e lançar o álbum novo. Senti que minhas canções poderiam ser úteis de alguma forma”, pondera.

A capa do disco “O velho e bom novo” (Foto: Gustavo Arrais – Na Moral Produções)

Ao recordar o burburinho em torno do álbum de estreia, “Girassol”, lançado em 2018, Kell ainda se surpreende com o sucesso alcançado. A música “Era uma vez” ultrapassou a marca de 250 milhões de visualizações no YouTube e foi gravada pela dupla Chitãozinho e Xororó. “Nem nos meus melhores sonhos eu imaginava isso. Quando o Xororó me ligou dizendo que queria gravar comigo eu joguei o celular e falei ‘ah, tá bom’, pensei que fosse trote. Aí ele começou a rir e por um segundo eu lembrei que era artista e talvez fosse verdade o telefonema”, diverte-se. “Tive oportunidades incríveis e paguei todos os micos que podia. Recentemente, gravei com Amado Batista, fazendo uma releitura de ‘Separação’. Isso significa muito para quem escutou as músicas dele em todos os churrascos da família. É uma realização pessoal. A voz desperta uma memória afetiva”, revela. “Ficaria muito feliz se pudesse gravar com Ney Matogrosso ou Roberto Carlos, mas talvez nem conseguisse cantar, de tão emocionada”, confessa.

Kell garante que não esconde a admiração quando se apresenta ao lado de ídolos. “São momentos que a gente tem vontade de guardar em um pote. Fico em êxtase, meio boba, como quando cantei com Elza Soares no ‘Rock in Rio’, em 2019. Foi tão lindo que me senti livre para improvisar no começo da música. Eu e Elza temos uma relação ótima. Esse tipo de encontro é um intercâmbio mais do que musical, é como se a outra pessoa deixasse um pouquinho dela com você”, emociona-se.

Mas será que essa troca se estende a outras pessoas e influencia as composições de Kell? Aparentemente, não. Ela assegura que nem todas as canções têm um lado autobiográfico. “Já me separei várias vezes, por exemplo, e nunca fiz música sobre isso. Mas sempre que componho alguma coisa que se refere a um amor de casal, penso no meu relacionamento. Costumo dizer que parte das músicas são sobre histórias minhas e parte sobre acontecimentos que não vivi, mas sei que são reais”, resume. “A música ‘Eu vou conseguir’ nasceu de uma escolha dos fãs. Sempre procuro essa proximidade para ser a voz de pessoas reais. O tema mais pedido era a depressão, então me dispus a pesquisar sobre o assunto e conversar com quem vive isso para falar desse assunto”, descreve.

Quando o assunto é fã, Kell fala que são todos muito carinhosos e, no geral, a internet não permite a proximidade que pode levar um deles a passar dos limites. O que não significa que ela esteja imune às loucuras dos admiradores mais empolgados. “Já me trancaram no banheiro e até me derrubaram no chão de um aeroporto. Também levei um mata-leão quando gravava o programa do Rodrigo Faro, dado por uma fã que gritava que me amava. Eu tentava explicar a ela que estava me matando. É um amor estilo Felícia”, lembra, às gargalhadas. “Mas não sinto a pressão dos haters na internet. Se uma pessoa me trata com ódio, ofereço ajuda. Até porque já estive nesse lugar de falar besteira para alguém e não sou mais assim. As pessoas costumam voltar com um pedido de desculpas”, diz.