Nego do Borel: “Quando nós, pretos, favelados e pobres, sonhamos, a sociedade zomba dos nossos sonhos”


Sinônimo de sucesso e superação, afinal apesar das dificuldades inerentes à realidade social na qual foi criado, se tornou vitorioso através de sua arte, o cantor, hoje, vivendo em outro patamar, não esqueceu, nem fechou os olhos para os que vem de origem semelhante a dele. “Eu sou preto, vim de comunidade e canto funk. Infelizmente no Brasil, isso é motivo de muito preconceito. Mas não deixo que o preconceito me defina. Sempre sonhei com o dia em que iria chegar a minha vez, não só de mostrar o meu trabalho, como também dar voz a outras pessoas que passam pela mesma dificuldade de mostrar seu talento. Talvez seja a minha verdadeira missão aqui na terra”, assegura nesta entrevista exclusiva. Ele não se furta a falar sobre nada e dá um alerta aos homens sobre a questão do empoderamento feminino. “Troquem mais ideias com as companheiras, amigas, colegas de trabalho. Dar voz a quem de fato pode nos falar sobre suas dores e causas, não faz da gente menos homem! Tento aprender cada dia mais sobre diferentes bandeiras e tem sido enriquecedor”, observa

* Por Carlos Lima Costa

Vivemos em um país onde o preconceito racial existe e muitas vezes é velado. Por tudo isso e pela realidade social que conheceu de perto em sua origem, o cantor e compositor Nego do Borel, uma verdadeira máquina de fazer sucessos, se considera vitorioso por ter conquistado seu espaço nas artes brasileiras. “Não tem como não me sentir. De onde eu venho, o caminho mais provável é o tráfico. É triste reconhecer que, mesmo em 2020, as oportunidades para as pessoas de comunidade são bem menores. O preconceito é grande. E quando nós, pretos, favelados e pobres, sonhamos, a sociedade zomba dos nossos sonhos. Então, hoje, conseguir viver da minha arte e através dela ajudar a minha família e outras pessoas que como eu tem um sonho e acreditam nele, é sim para me considerar um vitorioso”, pontua, ele, que, hoje, é um dos principais nomes do funk carioca.

E realça que ainda, hoje, sendo famoso e tendo sucesso nacional, percebe situações esquisitas com relação a ele. “Eu sou preto, vim de comunidade e canto funk. Infelizmente no Brasil isso tudo é sempre motivo de muito preconceito. As pessoas estão sempre querendo julgar umas às outras. Mas não deixo que o preconceito me defina. Sou preto, sou cantor, e tenho muito orgulho da minha origem, da minha música e da história do meu povo. Precisamos levantar mais discussões sobre esse assunto, e não se limitar só ao Novembro Preto, mês da consciência negra, ou a casos que repercutiram muito como o de George Floyd, ou do menino João Pedro, aqui no Brasil. Precisamos parar de ver casos como esses, como um caso. É mais um no meio de muitos que acontecem todos os dias com nós pessoas pretas, que não são vistos pela sociedade. Me sinto aliviado por ver meus irmãos de cor finalmente reagindo, mas ainda é pouco. Temos feridas que carregamos por muitos anos sozinhos, precisamos cada vez mais levantar nossa voz. Também fico feliz em ver outras pessoas somando ao nosso movimento, ao mesmo tempo que me preocupo sobre o tempo que isso vai durar. Torço para que não seja só uma semana, duas, um mês, ou só um movimento da internet”, observa.

O cantor vibra com o novo sucesso, Não Foi Sorte (Foto: Márcio Farias)

O cantor vibra com o novo sucesso, Não Foi Sorte (Foto: Márcio Farias)

E aponta que ajudar na luta da raça negra, não significa que as pessoas tenham que se tornar militantes. “Nada disso. Mas se puderem ao menos continuar dando voz às nossas dores, talvez tenhamos uma chance a mais de conseguir mudar um pouco essa história. Não sei se isso é possível, hoje, já. Temos feridas na nossa história e cultura que ainda precisam de um certo tempo para serem entendidas e transformadas. Mas tenho esperança de que isso seja uma realidade no futuro em que os meus filhos vão viver. Ficaria feliz em vê-los tendo o privilégio de saber que nenhuma dificuldade que vão passar, tenha a ver com a cor da sua pele”, sonha.

Nego do Borel, que saiu de uma comunidade e alcançou o sucesso, não vira as costas para a sua história e está sempre atento a tentar transformar a vida de pessoas, que, à princípio não vislumbram um futuro melhor por conta da dura realidade social. De sua parte, faz o que pode para dar voz e alegria aos necessitados. Enquanto comemorava o sucesso da recém lançada Não Foi Sorte, com quase cem mil acessos em dois dias, convidou jovens que trabalham nos semáforos, no Rio, para passear de barco.

“Eu nunca vendi nada no sinal, mas, por um tempo, fui mototáxi, cobrador de Kombi…conheço de perto os sacrifícios que muitas vezes fazemos para ajudar no sustento de nossa casa. Essa é a realidade da maioria desses jovens que estão lá no sinal. Por isso tento sempre demonstrar o meu respeito e levar um pouco de alegria para eles. Pode ser pouco perto do que ainda sonho pela galera das comunidades em geral, mas tenho certeza que para esses meninos já faz a diferença. Eles poderiam estar se perdendo no tráfico, mas estão ali vendendo seus doces, fazendo malabarismo sem perder a esperança de que dias melhores virão. Eu sei que virão, porque se eu consegui, eles também podem mudar suas realidades”, acredita o artista de sucessos como Você Partiu Meu Coração (em parceria com Wesley Safadão Anitta), Janela AbertaBonde dos Brabos Diamante da Lama.

O cantor espera dar voz aos que tem talento, mas não tem oportunidades (Foto: Márcio Farias)

Nego do Borel espera dar voz aos que tem talento, mas não tem oportunidades (Foto: Márcio Farias)

Nego do Borel, então, fala com orgulho de Não Foi Sorte. “Este é um projeto em que me senti muito feliz fazendo, porque além de ter uma melodia gostosa, flerta com o rap, e traz uma forte mensagem, cujo objetivo é provocar reflexões sobre a guerra social que vivemos. A música levanta discussões pertinentes e chega como uma forma de protesto contra os diversos males que enfrentamos, hoje, na sociedade. Apostamos muito nela, e o público vem reagindo bem. Acredito que isto se deve, porque colocamos muito carinho em cada detalhe, desde a produção até a gravação do clipe. Fiquei emocionado com o resultado final, principalmente porque traz um Nego do Borel mais consciente com o próximo e com tudo que está acontecendo com o planeta. Quero que as pessoas assistam esse vídeo e possam repensar suas atitudes e que isso possa inspirá-las a querer e chegar realmente a transformação, que se tornem pessoas diferentes”, torce.

Nego do Borel conta que mesmo famoso ainda percebe o preconceito (Foto: Márcio Farias)

Mesmo famoso, o cantor ainda percebe o preconceito (Foto: Márcio Farias)

O que ele tem a falar sobre o streaming em relação a competitividade de se lançar uma música a cada semana? “O consumo da música, hoje, está muito diferente de quando eu era criança, por exemplo. A internet e o imediatismo que ela traz contribui para isso. De uma certa forma, acho muito legal, porque democratiza um pouco mais a área. Artistas independentes conseguem mostrar com mais facilidade os seus trabalhos, o que é maravilhoso”, realça o cantor, que em meio a tantas conquistas foi o primeiro artista de funk a alcançar a marca de 40 milhões de visualizações no YouTube.

Assim como você teve a mão de tanta gente para alcançar seu espaço, estende a mão para que outras pessoas conquistem também? “Agradeço todos os dias ao Papai do Céu e peço para que Ele continue me abençoando para que eu possa através da minha arte também ajudar. Sinto orgulho da minha história e de poder contá-la para que outras pessoas, que assim como eu são de comunidade, mas têm um sonho no coração, possam acreditar que é possível. Mesmo que, às vezes, pareça impossível. Se a gente tiver fé e correr atrás, a gente consegue chegar lá. O segredo é acreditar. Quando comecei tudo era muito difícil para mim. As pessoas não acreditavam e não davam muitas oportunidades, mas nunca desisti. Sempre sonhei com o dia em que iria chegar a minha vez não só de mostrar o meu trabalho como também dar voz a outras pessoas que passam pela mesma dificuldade de mostrar seu talento. Existem muitos talentos nas comunidades. Ajudar essas pessoas, como venho sempre tentando, talvez seja a minha verdadeira missão aqui na terra. Com a minha realidade e as condições em que eu vivia talvez para muitos não desse mesmo para acreditar que eu conseguiria estar vivendo do meu sonho e ajudando toda a minha família. Então, se, hoje, posso ajudar uma pessoa que seja, farei isso da melhor maneira possível. Por isso, estou me unindo com a Stillus, uma grande produtora de São Paulo, para procurar novos talentos pelo Brasil”, explica.

No elenco da série A Divisão, o artista está feliz em voltar a atuar (Foto: Márcio Farias)

No elenco da série A Divisão, o artista está feliz em voltar a atuar (Foto: Márcio Farias)

A ligação com a arte vai além da música. Nego do Borel, por exemplo, interpretou o emblemático personagem de Tião Macalé (1926 – 1993) na nova versão de Os Trapalhões, em 2017, ao lado de Renato Aragão. Agora, está na série A Divisão, da Globoplay. O convite surgiu através do José Júnior.

“É um cara que ajuda muito as pessoas, que eu sempre acompanhei pela televisão e tinha vontade de conhecer. De minha parte, sempre gostei muito de atuar! Antes mesmo de me tornar o Nego do Borel, ficava brincando com a minha mãe lá em casa. Fiz Malhação, Os Trapalhões, e algumas outras participações. É bom, depois de algum tempo, voltar a atuar, principalmente em uma série com o peso que A Divisão tem, com tema importante e atual, que conheço de perto. Por mais que eu não seja, nem tenha sido um criminoso, graças à Deus, entendo desse universo. Não tem como não entender, principalmente por ter morado no Borel e até hoje ter uma relação próxima com a minha favela. Tinha muita vontade de fazer esse personagem, que por mais que seja próximo da realidade que vivi no morro, me faz sair da minha zona de conforto. Estou estudando, me preparando. Tem sido um processo prazeroso”, explica.

Com a proximidade das eleições para prefeito e vereador, Nego do Borel joga luz sobre a importância do voto. “É uma arma que temos na mão, mas infelizmente, acho que o nosso país não tem educação suficiente, no sentido de conhecimento, para saber usar da melhor forma. A maioria não sabe nem qual é o papel de cada setor da política, quais são os nossos direitos e quais são os deveres de um prefeito, um vereador, e por aí vai. E aí, nossos políticos corruptos se aproveitam disso para alienar ainda mais a população e conseguir seus objetivos. Se todos soubessem o quanto o nosso voto é valioso, conseguiríamos mudar muita coisa no Brasil”, aponta.

E ele prossegue: “Dos meus candidatos a prefeito e vereador, espero, em primeiro lugar, que pensem mais no povo do que no seu próprio bolso, que não só elaborem, mas coloquem em prática projetos conscientes e de utilidade para a população, porque os brasileiros, principalmente os que moram na periferia, nas comunidades, estão cansados de promessas. Ficaria muito feliz, por exemplo, se criassem mais projetos profissionalizantes, se dessem mais oportunidades para o povo das comunidades. Nelas, existem muitos talentos esperando apenas uma chance”, discursa.

Ele conta que vive fase madura com Duda Reis (Foto: Márcio Farias)

Ele conta que vive fase madura com Duda Reis (Foto: Márcio Farias)

As realizações positivas de Nego do Borel não se restringem as artes. O lado afetivo também vai muito bem, ao lado de Duda Reis. “Ela é muito importante na vida. Me sinto mais completo com a Duda ao meu lado. Estamos em uma fase bem madura do relacionamento. Sempre apoiamos muito um ao outro, agora mais ainda. Sempre fomos felizes e agora estamos alinhados com Deus e buscando sempre ser melhor um para o outro. Assim, tudo flui melhor”, garante.

Vivemos uma época em que se fala muito sobre empoderamento feminino. Nego do Borel entende bem do assunto, pois viu exemplos disso em sua criação. “Passar por tudo que minha avó e minha mãe passaram na vida, cuidar de uma família e se manterem fortes, é com certeza um verdadeiro exemplo de mulheres empoderadas. Admiro muito isso. Talvez elas não tenham tanto conhecimento quanto às mais militantes, mas com certeza são exemplos de empoderamento feminino que tenho na minha vida. Como homem, tenho que respeitar e incentivar cada vez mais esse movimento”, pontua.

E manda um recado à ala masculina: “Homens, troquem mais ideias com as companheiras, amigas, colegas de trabalho e tudo mais. Estejam prontos e dispostos a embarcar em uma jornada superenriquecedora. Pode parecer estranho em um primeiro momento, mas é necessário cada vez mais estar disposto a passar por todos os processos de desconstrução. Dar voz a quem de fato pode nos falar sobre suas dores e suas causas, não faz da gente menos homem ou delas mais mulheres, mas nos torna pessoas mais conscientes. A vida é assim, crescemos e evoluímos! Tenho tentado aprender cada dia mais sobre diferentes bandeiras, e tem sido enriquecedor.”

Apesar do patamar em que se encontra, ele ainda sonha. “Eu me considero feliz com tudo o que já conquistei. Mas tenho muitos sonhos ainda para realizar. É isso o que nos move a estar sempre buscando melhorar. Alguns deles já estão sendo trabalhados, e logo, logo meus fãs ficarão sabendo. Graças à Deus, tenho conseguido ajudar a minha família com a minha arte, com o meu trabalho. Agora, com certeza, um dos meus maiores sonhos é poder fazer mais pela minha comunidade, pelo pessoal do farol e por muitas outras pessoas que precisam da nossa ajuda”, finaliza.