*por Vítor Antunes
Músicas de cantores que morreram ou estão doentes e de compositores que possivelmente não existem. Este é o caso de “Arrasta“, “A Voz do Bloco“, e “Datalhes” [sic], músicas atribuídas aos cantores Dalto, Eduardo Dussek, Nana Caymmi e Emílio Santiago (1946-2013). Dos três, Dalto e Eduardo Dussek são cantores e compositores. Já Nana é intérprete, assim com foi Emílio. A estranheza do fato se dá pelo seguinte: nenhuma das músicas é cantada por eles. Porém, foram lançadas entre dezembro de 2024 e janeiro deste ano, tendo-os como “intérpretes”. Nana e Dussek estão adoentados. Emílio, morto há 12 anos, não teria músicas póstumas. Dalto desconhece o autor da música a qual foi creditado como cantor.
Há características em comum entre essas músicas: são atribuídas a artistas conhecidos que não participam das faixas; têm, em sua maioria, menos de dois minutos de duração (com exceção de “Arrasta“, que tem 2min40seg); e pertencem ao estilo easy listening.
Com mais de 50 anos de carreira, Nana Caymmi se firmou como um dos maiores nomes da MPB, sendo reconhecida por sua voz marcante e interpretações emocionantes. A família Caymmi é uma das mais importantes no cenário musical brasileiro, e o legado de seu pai, Dorival Caymmi, segue sendo celebrado em sua obra. A cantora Nana Caymmi, que está em tratamento fisioterápico e fonoaudiológico, tem apresentado progressos na saúde. Contudo, seria impossível ela lançar uma música no dia 2 de janeiro de 2025, conforme alegado. Em dezembro de 2024, o site Heloisa Tolipan publicou uma reportagem na qual informava que Nana estava internada desde agosto, entre idas e vindas para casa, devido a uma arritmia cardíaca e implantação de marca-passo. Conversamos com o irmão Danilo Caymmi que, à época, informou que a cantora vinha apresentando melhora e respondendo bem aos tratamentos, mas continuava internada.
A tal música “Voz do Bloco“, atribuída à Nana, contraditoriamente, não contém sua voz. Trata-se de uma faixa no estilo easy listening, destoando completamente do repertório da cantora. Um dos produtores de Nana contactados por esta reportagem disse desconhecer a gravação de “A Voz do Bloco“. Outro, Guto Burgos, braço direito de Nana, disse não saber desta gravação também. Segundo ele, o último lançamento da cantora foi feito em julho de 2024, antes de sua internação, e trata-se de uma parceria dela com Renato Braz, numa composição de Cassiano (1943-2021), “A Lua e Eu“. Nana só tem uma composição sua, “Bom Dia“, em dupla com Gilberto Gil.
Essa música [A Voz do Bloco] não tem nada a ver com Nana – Guto Burgos, assessor de Nana Caymmi
Outro caso estranho envolve a música “Datalhes” [sic], lançada em 3 de janeiro de 2025 e creditada a Emílio Santiago, que morreu em 2013. A faixa, que também não contém sua voz, é instrumental e, novamente, no estilo easy listening, destoando do estilo característico tanto de Emílio quanto de Nana. Além disso, a palavra “Datalhes” não existe, e os compositores das músicas “Voz do Bloco” e “Datalhes” – Oscar Batista e Juan Lucho – não foram localizados, o que levanta suspeitas sobre sua existência.
Eduardo Dussek, que há anos não lança novas músicas devido à Doença de Parkinson, está atualmente dedicado às artes plásticas. Ainda assim, aparece creditado na música instrumental “Fim de Caso“, cuja autoria é atribuída a João Oliveira, um compositor que nunca gravou com Dussek. Inclusive, Eduardo costuma gravar as suas próprias músicas. O artista e seu staff foram contactados, mas não responderam às nossas solicitações.
O ator, cantor e compositor Eduardo Dussek tem investido na verve artista plástico, que tem sido também uma das terapias a qual o cantor lançou mão ao descobrir a doença. Sobre a terapia que vem trabalhando para lidar com o Parkinson, Dussek ressaltou em entrevista exclusiva aqui que, “na pandemia, eu fazia shows, mas me faltou saúde e começou a degenerar as células, a me dar cansaço. Quando tive o diagnóstico do Parkinson, eu decidi que não iria dialogar com doença. Optei por compreender que ela para mim seria um fator de iluminação. Um dos médicos que me acompanham me trouxe uma informação que me fez diferença que fazer algo que me trouxesse prazer faria regenerar minhas células. Voltei a pintar, desenvolvi meu estilo e isso me faz bem”
Na mesma entrevista, ele criticou a arrecadação de direitos autorais – “entrei com uma representação pelo ECAD por cerca de R$ 200.000,00 e o que recebi não chegou a um quinto disto – e à música que chega ao público com pouca curadoria: “Vivemos um grande brechó pop. O que o Google classifica com milhões de acessos é tido como um sucesso e não há mais discussão artística. Toda arte tem que ter uma discussão, um propósito, uma vivacidade, uma vitalidade de filosofia de vida”
O cantor Dalto, conhecido por sucessos como “Muito Estranho“, também figura em uma situação parecida com o lançamento de “Arrasta”. Segundo sua equipe, Dalto não lançou nenhuma música com esse nome e desconhece o compositor creditado: Ricardo Cocha. A música atribuída a Dalto, em particular, apresenta influências da guitarra havaiana, estilo que não condiz com o produzido por Dalto.
Uma produtora ligada a uma grande gravadora, que preferiu não se identificar, comentou que o Spotify é mais “flexível” que outras plataformas, pois não exige que músicas sejam vinculadas a selos ou gravadoras para serem disponibilizadas no aplicativo. Essa facilidade, segundo ela, abre margem para fraudes. Ela também destacou que a comunicação com o Spotify é difícil: a empresa não possui assessoria de imprensa nem representantes disponíveis para contato direto. As músicas são frequentemente enviadas por plataformas intermediárias, que atuam como pontes para a inclusão no player. Essa falta de comunicação entre o Spotify, os selos e as gravadoras, e a ausência de canais diretos com jornalistas, contribuem para a complexidade do problema. Naturalmente, em face da razão explicada acima, o Spotify não foi localizado por esta reportagem.
Além da falta de transparência sobre as músicas que sobem à plataforma, outra queixa relacionada ao Spotify diz respeito à remuneração. Embora ele não divulgue valores exatos de royalties, estima-se que o pagamento por reprodução seja de aproximadamente US$ 0,003 (quatro milésimos de dólar). A empresa não se manifestou sobre o caso até o momento, mas o espaço segue aberto.
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