Marisa Monte: “O momento é de animosidade. Politicamente, para construção da sociedade, isso é nocivo”


A cantora, que lançou ‘Portas’, primeiro álbum de inéditas em dez anos, explicou que quis fazer um disco que propusesse esperança. “A gente está em uma fase de retração conservadora, democrática. Temos que estar atentos”, pontuou ela em entrevista ao Conversa Com Bial. “E que conectasse as pessoas em valores positivos, comuns a todos, de afirmação e não de negação. Então, é sim para a democracia, para a ciência, educação, cultura, para o meio ambiente, amor, afeto, gentileza, arte. Tudo que sabemos ser fundamental. Quis fazer o disco como ação amorosa, afirmativa e como uma resistência”, acrescentou

* Por Carlos Lima Costa

Após dez anos sem lançar álbum de inéditas, a cantora Marisa Monte lançou Portas, com repertório que ela já tinha em mãos, mas totalmente gravado em plena pandemia. Para ela, o novo trabalho reflete o momento pelo qual todos passam em meio a crise sanitária. “Queria fazer um disco que conectasse com algo que está meio que faltando no momento, uma esperança no futuro, uma assertividade em relação ao que vem, porque o progresso é em zigue zague, às vezes. A gente está em uma fase de retração conservadora, democrática. Temos que estar atentos. Mas isso impulsiona também as pessoas para um novo progresso”, pontuou ela, em entrevista ao programa Conversa Com Bial.

Marisa tem essa fé de acordo com análise histórica. “Em 100 anos, o mundo melhorou muito para as mulheres, para minorias, a ciência evoluiu bastante. O meio ambiente piorou, mas existe uma conscientização enorme com essa discussão no mundo, sobre como fazer novos acordos para que não evolua mal. Olhando para trás, vejo que está difícil, mas a gente vai sair desse momento de retração e vai ter um impulso de novo, com uma reação de todas as forças de progresso, as civilizatórias, humanistas nas quais acreditamos e sabemos serem importantes à construção de uma sociedade mais justa e menos desigual”, prosseguiu.

Daí a inspiração para Portas. “Quis fazer um disco que propusesse essa certeza e esperança, e que conectasse as pessoas em valores positivos, comuns a todos nós, de afirmação e não de negação. Então, é sim para a democracia, para a ciência, educação, cultura, para o meio ambiente, amor, afeto, gentileza, arte. Tudo que nós sabemos que é fundamental, e até pelo amor como força política poderosa, que tem que ser cultuada. O momento é de muita animosidade. Politicamente, para a construção da sociedade isso é nocivo. Então, quis fazer o disco como ação amorosa, afirmativa e como uma resistência a isso tudo. É importante todo mundo, a sua maneira, fazer a sua resistência”, acrescentou ela ao jornalista Pedro Bial, que logo no início do programa havia destacado que em um ano e meio, a entrevista com Marisa era a primeira entrevista presencial. Desde desde dezembro de 2019, o apresentador estava apresentando o programa com entrevistas feitas online. Para as gravações do programa e do especial, que aconteceram em dois dias, todos os presentes no set foram testados e respeitaram os devidos cuidados estabelecidos no protocolo de segurança da TV Globo.

O álbum, disponível nas plataformas digitais, já faz sucesso entre os fãs da cantora, que lamenta ainda não poder estar nos palcos para encontrá-los. “Sinto falta de não poder fazer show. Talvez isso só aconteça em 2022. Depende de coisas que vão além do nosso desejo”, reflete.

Marisa Monte lança seu primeiro álbum de inéditas em dez anos e acredita que só vai sair em turnê com show em 2022 (Foto: Divulgação/Globo)

Marisa Monte lança seu primeiro álbum de inéditas em dez anos e acredita que só vai sair em turnê com show em 2022 (Foto: Divulgação/Globo)

Neste novo álbum, Marisa reencontra nas composições antigos parceiros como Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes e Dadi, mas também se renova ao surgir em parcerias com os herdeiros de amigos: Chico Brown, filho de Carlinhos, e Flor, filha de Seu Jorge. “Poder estar viva para ver uma pessoa que eu vi nascer e crescer se tornar meu parceiro é um dos encantos da vida. O Chico é formado em produção musical, fez faculdade, mas tem talento nato, bem lapidado, com referências ricas, é muito culto, um compositor de mão cheia. Flor também sempre foi extremamente musical. Quando tinha 13 anos, mostrei para ela essa música (Pra Melhorar) e ela já começou a riscar uma letra. No dia seguinte nos encontramos e além dessa, fizemos outra. Me alegrou ter uma parceira de 13 (atualmente está com 18 anos). É sempre gostoso trabalhar com pessoas de várias gerações. Isso reflete um pouco no público. Sempre tive trânsito com a Velha Guarda e com a galera jovem”, ressalta.

A forte ligação com a música desde cedo, veio através do pai, Carlos Monte, diretor da Portela na década de 70. O que acabou sendo decisivo em sua formação. “Lembro do Monarco que ia na minha casa, quando eu tinha 5, 6 anos. Meu pai tinha discos de Nelson Cavaquinho (1911-1986), Candeia (1935-1978), Paulinho da Viola, Clara Nunes (1942-1983), Cartola (1908-1980). Eram as músicas que tocavam na minha infância”, recorda. Quando a irmã começou a aprender a tocar piano, ela também teve aulas. Com sete anos, pediu para a mãe, uma bateria. Na adolescência, foi tocar violão, quase uma autodidata.

Durante o programa, além da faixa título do novo disco, parceria dela com Dadi e Arnaldo Antunes, a estrela da MPB cantou Quanto Tempo (Marisa/Pretinho da Serrinha/Pedro Baby), Calma (Marisa Monte-Carlinhos Brown) e Pra Melhorar (Marisa/Seu Jorge/Flor). E explicou qual seu maior aprendizado durante a pandemia. “Conseguir me reinventar com o que se apresentou. De transformar, lidar com as dificuldades com criatividade, como que a gente pode inventar uma maneira diferente. Foi uma experiência bastante interessante, por exemplo, que esse foi o meu disco com mais colaborações internacionais sem sair do Rio de Janeiro. Eu tive gente trabalhando em Lisboa, Madri, Barcelona, Nova York, Seattle, Los Angeles. Tinha dias que a gente tinha sessão com Lisboa de manhã, gravando uma orquestra, e de noite com um engenheiro de som, mixando em Los Angeles. E, com cuidado, durante todo o processo do disco, ninguém adoeceu”, informou.

Com Marisa Monte, o jornalista realiza a primeira entrevista para o Conversa Com Bial em um ano e meio (Foto: Divulgação/TV Globo)

Com Marisa Monte, o jornalista realiza a primeira entrevista para o Conversa Com Bial em um ano e meio (Foto: Divulgação/TV Globo)

E observou como o isolamento social mexeu com as relações em família. “Posso dizer que a família virou um núcleo um pouco mais fechado em casa, eu com meus filhos (Mano e Helena). Uma convivência muito mais intensa. Isso pra mim foi um privilégio, porque realmente viajo e trabalho muito fora de casa. Poder estar disponível ali para a relação com eles de forma integral foi uma coisa única na minha vida, teve um grande aprendizado, foi um momento de grande crescimento para todos nós’, relatou também no programa, onde relembrou o momento em que começou a chamar atenção do público e ouviu um conselho que segue até hoje.

Era 1987, quando se apresentou no Jazzmania, produzida por Nelson Motta. Tinha grande admiração por Maria Bethânia pela forma como levava a vida e a carreira. “Ela coloca a arte em primeiro plano. Isso é algo que eu admiro na relação com o público. É como eu enxergo. Como pessoa a minha vida é normal igual a de todo mundo. O que a torna mais interessante é o fato de que tenho a música como forma de expressão. Ela está em primeiro plano. Sou uma pessoa pública por causa da música, o resto todo é secundário. Ela deixa isso claro, é um respeito pela arte, pela música e por si própria. Quando comecei a cantar lá no Jazzmania, Bethânia foi lá assistir. Sempre generosa, carinhosa, me disse: ‘siga seu coração, faça do jeito que você sente, dê a sua verdade, não mude nada. A verdade é o mais importante. É, inclusive, o que tenho a dizer aos jovens, sigam o coração, o que acreditam”, ressaltou ainda no Conversa com Bial.

E destacou ainda encontros importantes em sua vida. Com Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes formou os Tribalistas. “Somos tão diferentes e como a gente harmoniza tão bem. Nós três somos compositores de letras e músicas, a gente faz tudo junto, funções semelhantes e complementares. Um baiano, um paulista e uma carioca, uma soma que deu algo muito brasileiro”, frisou. Com Roberto Carlos participou de dois de seus especiais na Globo. “Na minha infância, tinha foto dele no meu quarto, na casa inteira, as babás também o amavam. Ele tem uma qualidade como cantor que eu acho admirável que é a clareza ao cantar. Ele tem uma consciência da palavra, da mensagem, até talvez na maneira dele escolher as músicas. Faz dele um grande cantor essa propriedade que tem ao articular as palavras. Cantar com ele é sempre uma emoção enorme, com o Erasmo (Carlos), também. Eles fizeram um cancioneiro incrível, de uma grandeza inquestionável”, observou.

Tim Maia (1942-1998) é outro artista de quem sempre foi fã. “Eu sempre o achei um gigante e cantei suas músicas em todos os meus shows desde a adolescência. Quando gravei Chocolate, ele me ligou para agradecer, foi um fofo. Disse que estava feliz, que tinha gostado. A gente nunca trabalhou, mas foi meu amigo muitos anos até sua morte. Eu ia na casa dele, a gente tocava piano e cantava junto. Uma vez, me convidou para ir no seu aniversário. Não pude ir e liguei no dia seguinte pedindo desculpa, perguntando como tinha sido a festa e ele disse: ‘Foi legal, quer dizer, eu também não fui’”, revelou, rindo.