Maria Bethânia: ‘É direito das pessoas gostarem ou não. Meu trabalho é de cantora, de criação e de entrega’


A cantora comemora 75 anos com o novo disco Noturno, da gravadora Biscoito Fino, com produção musical de Jorge Helder, produção artística de Ana Basbaum, direção musical e arranjos de Letieres Leite e direção geral de Kati Almeida Braga. A expectativa dos fãs eram tão altas que formou-se uma polêmica, mesmo antes do lançamento, por conta da capa minimalista. “Final dos tempos’, rebate a diva

O disco Noturno, de Maria Bethânia chega comemorando os 75 anos de vida e os 55 como cantora.(Foto: Jorge Bispo)

*Por Rafael Moura

Maria Bethânia depois de ser reverenciada em live, em fevereiro, no Globoplay que foi um acalanto em meio a essa pandemia, e de lançar os singles ‘A Flor Encarnada’ e ‘Lapa Santa’, presenteia seus fãs com o álbum ‘Noturno’, gravado entre setembro e outubro de 2020 e maio deste ano. O disco tem produção musical de Jorge Helder, produção artística de Ana Basbaum, direção musical e arranjos de Letieres Leite e direção-geral de Kati Almeida Braga. Mesmo não sendo um disco físico, Bethânia fez questão de exibir outro dos seus talentos, ao bordar um coração para o encarte. O trabalho é o primeiro projeto de inéditas da Abelha Rainha, desde ‘Meus quintais’, de 2014, embora com duas regravações.

Adriana Calcanhotto está presente em mais uma faixa desse trabalho comemorativo: ‘Dois de Junho’. Na gravação, a interpretação dramática e crua da baiana é aquecida pela força dos arranjos do maestro Letieres e pela guitarra de Pedro Sá, em uma narrativa, descritiva, e quase cinematográfica/ televisiva de uma tragédia que chocou todo o país.

E como a artista ‘não anda só’, para esse palco iluminado ela traz ‘Bar da noite’, faixa que dá o play nesse trabalho, uma pérola do repertório de Nora Ney que aciona a mística e o clima da vida boêmia noturna. De seu sobrinho Zeca Veloso vem a inédita ‘O Sopro do Fole’, uma canção de exílio nordestina. Mayte Martín entrega a diva a faixa ‘Vidalita’, uma canção no estilo flamenco. Tem ainda ‘Prudência’, um lindo bolero de Tim Bernardes, compositor da nova geração paulista, que se confunde perfeitamente com os clássicos do gênero. Um primoroso, alegre e cadenciado samba de Xande de Pilares ‘Cria da comunidade’, cantado por Bethânia junto com o sambista que assina a letra com Serginho Meriti. Essa noite se encerra com a leitura de fragmentos do poema ‘Uma Pequenina Luz’, de Jorge de Sena – um dos grandes poetas portugueses do século XX. Mostrando o eterno desejo da cantora de mesclar a música a outras artes.

Noturno, o novo disco de Maria Bethânia é um trabalho mais sóbrio e reflete o atual momento (Foto: Jorge Bispo)

A expectativa dos fãs era tão alta que toda uma polêmica se formou, mesmo antes do lançamento e da audição do disco. Tudo por conta de uma capa considerada “minimalista” por alguns que foram ara as redes sociais comentar o fato. “Final dos tempos. Você faz um trabalho como cantora, cheio de emoção e acontece isso… Não sou artista plástica. Realmente minhas capas são sempre lindíssimas, verdadeiras obras de artes, mas essa é sóbria, elegantíssima. Reflete o atual momento”, justifica, Bethânia sobre as críticas negativas, em entrevista ao jornal baiano Correio 24 Horas.

Se para alguns a capa foi simplória, a sonoridade arrebatou os corações dos fãs que exaltaram a Deusa no Twitter, parabenizando, por essa grande luz em meio a esse momento de trevas que o mundo atravessa. Alguns já consideram o disco um grande patrimônio da cultura nacional, por sua beleza e emoção rasgada. Ah, o nome da artista e do disco chegou ao Trending Topics da plataforma.

‘O que queríamos com essa claridade era exaltar e pedir luz, claridade, luminosidade, força’, conta Maria Bethânia.

O minimalismo apresentado na capa foi transportado para os arranjos de seu conterrâneo, o maestro Letieres Leite, que usou poucos instrumentos e muito rigor para garantir o distanciamento social. As melodias mais sóbrias estão em total sintonia com este momento da pandemia da Covid-19, emanando suavidade e força. “É um direito das pessoas gostarem, não gostarem. Meu trabalho é de cantora, de ideia, de criação, de entrega. Então a mim não cabe dizer absolutamente nada. O que queríamos com essa claridade do branco era exaltar e pedir luz, claridade, luminosidade, força”, pontua.

Muitos artistas brasileiros e gringos aproveitaram a pandemia para lançar novos trabalhos, o que nos ajudou muito a manter a sanidade durante o isolamento social. Nortuno foi um desses trabalhos, que teve um novo processo de construção dentro desses novos tempos, trazendo um grande peso em tudo o que se apresenta ao público, com respeito e entrega. “Esse disco foi feito no auge da pandemia, por isso tivemos que fazer tudo com muito rigor. E poder realizar esse novo trabalho era uma necessidade minha de estar mais perto das pessoas que me acompanham, me aplaudem. Por causa de toda essa crise sanitária, eu parei em 13 de março de 2020. Tinha um show à noite, que foi cancelado, vim para minha casa no Rio e não saí mais”, conta.

‘Esse disco foi feito no auge da pandemia, tivemos que fazer com muito rigor’, diz Maria Bethânia (Foto: Jorge Bispo)

Bethânia revelou que sentiu muita falta de um maior contato com os músicos, que gravaram as bases sem a presença da cantora. “Era uma necessidade, mas foi muito difícil: distanciamento, protocolo, distanciamento e muitos testes, porque todo mundo tem juízo”, frisa. Uma uma solução encontrada para a realização, um pouco mais segura. “Esse disco foi um dos mais rápidos de toda a minha carreira, durou apenas duas semanas e meia, o processo de gravação. Eu tinha todo o repertório, ideias e as músicas, que chegaram e me carregaram”, revela. E completa. “Esse disco é muito expressivo e cheio de emoções, esses pontos podem ser sentidos por muitas faixas com apenas voz e violão e voz e piano. “Conseguimos, dentro de todas dificuldades, por conta da pandemia, fazermos um trabalho elegante, limpo, honesto e justo, que traduz os meus sentimentos neste no momento, o que penso, dentro de todas essas suas nuances”, explica.

Trazendo a singularidade desse trabalho, a artista resolveu fazer uma dedicatória em cada música, mostrando o quão especial é esse disco. A aguerrida ‘Dois de Junho’, de Adriana Calcanhotto, é “para os indiferentes”; a delicada ‘Música Música’, de Roque Ferreira, é “para os sobreviventes”; e a envolvente ‘Prudência’, composta por Tim Bernardes, foi pensada “para os corações inquietos”. O resultado é um trabalho afetivo que oscila crítica e versos de esperança, como quem busca luz na escuridão. “No roteiro construído por Maria Bethânia, assistimos – vivemos com ela – a um complexo jogo de luz e sombra. A primeira dá cor e forma à alegria, à esperança, ao amor, à paz, à amizade, à fé. A segunda imprime os contornos ásperos da solidão, da tristeza, do abandono, da traição, do terror”, explica o poeta Eucanaã Ferraz, na apresentação do disco.

(Foto: Jorge Bispo)

Em todos os seus discos, Bethânia traz sempre um subtexto, uma entrelinhas na escolha na hora de compor seu repertório. Lembrando que que a diva fez sua estreia aos 17 anos, em um espetáculo de teatro. Seu jeito de cantar e se expressar tem bases na dramaturgia, isso fica nítido em todos os seus shows, o seu último foi Claros Breus, 2019. “Eu acabei trazendo muita inspiração de lá. Claros Breus fechava no escuro, com o Bar da Noite, e aqui no disco essa música abre, para poder fechar com a luz (o poema Uma Pequena Luz, de Jorge Sena). Para a musa de todas as gerações é sempre uma enorme alegria e euforia lançar um novo trabalho. “Tenho 75 anos de idade, 55 de carreira, e fico muito comovida com todos. Isso é muito forte, é o que sustenta minha vida. E é lindo que venham mais e mais”, agradece.