“Hoje é fácil ser artista. No meu tempo não”, diz Xande de Pilares que fez live domingo, no Morro do Turano


Com 30 anos de carreira e 350 músicas gravadas, Xande de Pilares comemora a data em seu endereço de infância e fala sobre relacionamentos, família e polêmica na música popular brasileira: “Samba é música popular brasileira e ponto. Não gosto dessa mania que as pessoas têm de dizer que eu faço samba e o Gil MPB. Eu faço samba e o Sorriso Maroto pagode. É tudo uma coisa só”, queixa-se o artista, acrescentando que “distinção de valor entre os gêneros não é coisa de artista”

'Xande no Morro'
'Xande no Morro'

Xande de Pilares fará nesse domingo, a partir das 14h, live solidária em homenagem ao Dia dos Pais/Foto: Washington Possato

*Por Elisa Torres

A laje da casa de um primo no Morro do Turano, com vista para a Marquês de Sapucaí e o Cristo Redentor, foi o lugar escolhido pelo sambista Xande de Pilares como cenário para a live solidária “Xande no morro”, que ele comandou domingo, Dia dos Pais, com transmissão pelo seu canal no YouTube. O sobrenome artístico de  Alexandre Silva de Assis, o Xande, é uma homenagem ao bairro onde o músico, de 50 anos, passou a adolescência e aperfeiçoou a sua arte. Mas, como dizem os versos de “Esse menino sou eu”, composição em parceria com Helinho do Salgueiro e Gilson Bernini, é a localidade do Rio Comprido que guarda a história “que o menino nunca esqueceu”: 

“Tenho um orgulho imenso da minha trajetória. E ela começa exatamente no Morro do Turano. É o lugar onde eu nasci e vivi a minha infância, as minhas histórias de sonho, onde ouvi bons conselhos, para que eu seguisse o caminho do bem, que me ensinou a nunca passar por cima de ninguém para chegar a lugar nenhum. É preciso saber esperar o momento de Deus”, filosofa. 

É justamente a intimidade com essa trajetória cercada de gente humilde e influências musicais dos mais diversos gêneros que guia o roteiro apresentado em  “Xande no morro”. O ponto de partida do repertório é a infância do artista, em meados dos anos 70, e seus primeiros contatos com a música, vendo a mãe cantar, ao lado de uma banda repleta de instrumentistas da família, seguindo pela passagem por um Cacique de Ramos histórico, com Zeca Pagodinho, Camunguelo, Almir Guineto, Beto Sem Braço, Jovelina Pérola Negra, Nei Lopes, entre outros;  a chegada ao Salgueiro, a sua escola de coração, e o alcance de uma maturidade artística no momento atual, no qual o formato das transmissões ao vivo pela Internet surgiu como saída para suavizar um cotidiano de confinamento e isolamento social. 

 “Quando eu comecei a ouvir música, eu escutava de tudo. O samba de Martinho da Vila, o soul de James Brown, Ray Charles e seu piano incomparável, Benito de Paula, Elizeth Cardoso, Julio Iglesias, Agepê, Miltinho, Fevers, Roberto Carlos, Odair José. Eu não tenho culpa de ter tido o privilégio de ver Cazuza, Lulu Santos, Kid Abelha, Engenheros do Havaí, Titãs. Vi todos eles  começando”, diz.

Filho de Seu Custódio e pai de Alexandre Lucas, de 21 anos, e de Alexandre Junior, de 20, Xande é do tipo “família”, palavra a qual ele atribui o adjetivo “sagrado”. “O pessoal do Revelação brincava comigo, dizia que eu tinha parente em tudo que é lugar. E realmente a minha família é muito grande. Família é a base de tudo, o ponto de partida, por mais que você tenha muitos amigos”, define o músico, que também rejeita o rótulo de “pegador”: “Eu? Claro que não. Tenho fama de boêmio, brincalhão, romântico. Eu tive quatro ou cinco relacionamentos duradouros e isso confirma que a história não é bem assim, pelo contrário. Eu simplesmente retribuo o carinho e o afeto que eu recebo, da melhor forma possível” .

 O artista se emociona ao falar do pai, um incentivador da ideia de viver de musica antes dele pensar na possibilidade.  “Meu pai era andarilho, viajava muito e quando eu comecei a ter mais contato, ele se foi. Já estava debilitado, com a saúde comprometida. Quando ele descobriu que eu tocava cavaquinho, violão, sempre pedia para eu tocar para os amigos dele. Chegou a acompanhar o início da minha carreira, mas depois vieram os problemas com o alcoolismo. Quando eu tocava, ele sempre dizia: “Toma um guaraná aí”. Por isso eu fiquei 40 anos sem beber. Fiquei com esse ensinamento. Ele não queria que os filhos cometessem os mesmos erros dele”.  

Influências: Eu escutava de tudo.  Martinho,  James Brown, Ray Charles,  Elizeth Cardoso/ Foto: Washington Possato

Apesar de não conseguir cultivar muita proximidade também com os filhos (o caçula, Alexandre Junior, mora em Belém, e o mais velho, Alexandre Lucas, mora no Rio, mas não com ele), Xande cultiva uma relação de amor e respeito com os meninos. “Eu sou meio rigoroso nessa coisa de dar limites e não curto videogame direto. Quero que leiam livros. Mas eu respeito muito o mundo deles, que é o mundo digital, e tem muitas possibilidades. Agora, o digital para mim é “embrulha e manda”, né? Hoje é fácil ser artista. No meu tempo não era, não. A gente tinha que ficar um tempão no botequim até o cara que manda lá em cima resolver apertar o botão e dizer “tá na tua hora”. Quem determina o momento de você brilhar é Deus. 

Com 30 anos de carreira e 350 músicas gravadas, Xande de Pilares apresentará na live canções da época do grupo Revelação, sucessos da carreira solo e composições suas gravadas por artistas como Zeca Pagodinho, Beth Carvalho e Caetano Veloso, além de sambas que fazem parte do novo DVD,  previsto para ser lançado em setembro,  “Nos braços do povo”. Um entusiasta da liberdade poética do artista, que, segundo ele, tem obrigação de “dizer o que o coração manda” na hora de fazer letra ou melodia, ele implica com outro rótulo,  o que atribui ao samba a qualidade de patrimônio cultural.   

“Samba é música popular brasileira e ponto. Em qualquer lugar onde se vá, a música que representa o nosso país é o samba. Mas não há distinção. Capoeira, frevo, maracatu, ijexá, forró, carimbó. Isso tudo é Brasil, isso tudo é música popular brasileira. O único país do mundo com mais de dez estilos musicais. Não gosto dessa mania que as pessoas têm de dizer que eu faço samba e o Gil MPB. Eu faço samba e o Sorriso Maroto pagode. É tudo uma coisa só”, queixa-se o artista, acrescentando que “distinção de valor entre os gêneros não é coisa de artista”:

'Xande no Morro'

Filho de Seu Custódio e pai de Alexandre Lucas, de 21 anos, e de Alexandre Junior, de 20/ Foto: Washington Possato

“Isso quem faz são empresários, tanto do samba, quanto do sertanejo ou do pop rock. Produtores que se acham mais artistas do que os artistas. São esses caras que tentam dividir quem é sertanejo, funk, samba, axé, forró.  É tudo a mesma coisa! A vaidade não é dos artistas, mas de quem administra. O pagodeiro frequenta o pagode que o sambista toca”, alfineta.

 Com relação à pandemia, Xande se queixa da falta de aglomeração com gente querida, mas transmite um recado carinhoso de esperança e fé. “Gosto de ver gente, de estar com as pessoas, bater papo, ouvir histórias, contar as minhas. No isolamento, procuro me ocupar, compor, ler, assistir TV, tomar um vinho, e tento me acostumar com essa coisa de ficar mais em casa do que na rua. Mas faz parte. É ter fé e paciência, para que tudo passe logo”, diz.

Fã de lives que têm sido feitas por artistas como Alexandre Pires, Seu Jorge, Raça Negra, Gilberto Gil e Zeca Pagodinho, Xande de Pilares afirma não ter nada contra as superproduções, mas confessa preferir o formato mais descontraído e informal. 

“Gosto de ligar a câmera e ficar cantando um monte de coisa com um instrumento só, produção mínima. Revejo as minhas e fico rindo dos erros nas letras”, diz o artista, que enxerga nessa “invasão à casa das pessoas com música” uma oportunidade para ajudar a quem precisa, principalmente no cenário da pandemia:

“A live tem essa função social e isso é muito bacana. E serve para nos manter conectados o tempo todo com o que mais gostamos de fazer, que é praticar música. Salve o artista brasileiro e suas  lives! O mais importante é estar conectado com a música, que faz tão bem! Principalmente na pandemia. O que seria do mundo se não fosse a música?”

 

Assista à live “Xande no morro” pelo canal do artista no YouTube:  https://www.youtube.com/channel/UC6Bct7Jf_s9BBMvreXel_6g