Já era quase 1h quando, com o rosto completamente coberto por um capuz que remetia a uma máscara africana, Emicida entrou no palco do Circo Voador e, sentado, foi ovacionado pelo público que lotava o interior da lona na Lapa. Da última vez que esteve no espaço, em uma apresentação gratuita, mais de 1 mil pessoas ficaram do lado de fora dos portões esperando por uma chance de ver o rapper e, na noite de ontem, foi reforçada a história e o motivo: o artista é uma das principais vozes da geração atual e seus fãs, não importa o gênero, a cor, a classe social ou o credo, conseguem não só se identificar com as músicas que ele canta, mas também se sentirem representados pelas mesmas.
Desde a primeira rima de “Boa esperança” que Emicida solta no palco, com uma energia explosiva que faz com que a lona se pareça pequena para tanta força já no início da apresentação, o público ergue os braços para o alto e entoa em uníssono cada sílaba da música. O vídeo para a faixa, dirigido por Katia Lund, mostra uma megaprodução em uma história de revolta dos empregados negros de uma mansão, acompanhada por letras que abordam a questão do racismo desde a escravatura. E eis um dos pontos mais fortes da carreira que o rapper construiu.
O primeiro ato do show é inteiramente dedicado às músicas de cunho político, que questionam tanto o racismo quanto a carência e a realidade das periferias, com uma sinceridade que espanta, mas, ao mesmo tempo, serve como prova da capacidade de Emicida como rapper. Suas letras não só revelam a realidade social que o país cisma em negar, mas também explicam seu contexto e ainda invertem o jogo, atacando de volta com uma fúria absurda e justificada. É como ele versa em “Mandume”: “Eles querem que alguém que vem de onde nós viemos seja mais humilde, abaixe a cabeça, nunca revide. Finja que esqueceu a coisa toda. Eu quero mais que eles se…”.
Essa característica engajada tem acompanhado Emicida desde o início de sua trajetória, mas parece que, em “Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa”, seu mais recente disco, lançado em agosto deste ano e que dá nome à turnê apresentada no Circo, o aprofundamento cultural foi ainda mais denso. Com referências que vão de Malcom X e Machado de Assis a Lady Gaga e Pablo Neruda, o álbum é fruto de uma imersão de 20 dias pela África. “O lugar onde toda a humanidade começou”, explicou o rapper, antes de declamar “Súplica”, poema da moçambicana Noémia de Sousa, com versos como “De joelhos, pedimos: tirem-nos tudo… mas não nos tirem a vida, não nos levem a música!”.
Em um dos momentos mais fortes da apresentação, antes de começar a cantar “Hoje cedo”, sua parceria com Pitty, o rapper concentra toda a luz do palco sobre si, dispensa qualquer artifício sonoro de banda ou música de fundo, e “só no gogó”, como se estivesse de volta à Batalha do Santa Cruz, em São Paulo, ele dispara os versos para um público que, extasiado, o assiste como em um ritual. O delírio aumenta ainda mais quando Inquérito aparece de surpresa no show, entregando um freestyle certeiro, repleto de flow e trocadilhos que fazem menção a preferir as folhas dos livros do que as de cocaína. O Circo aplaude.
Mas Emicida não se contenta em ser um dos principais representantes do rap socialmente engajado em todo o país e, ao longo das duas horas de show, também mostra a sua variedade de influências e toda a sua diversidade sonora, indo do samba ao funk, do hip hop ao rock e à MPB. Há o “Momento Viaduto de Madureira”, como o próprio declarou, no qual músicas como “Madagascar” e “Baiana” (sua parceria com Caetano Veloso) dão um toque romântico à noite. “Pega sua neguinha pela cintura e aperta”, incentivou o artista, com molejo. Na sequência, uma das faixas que mais levantaram o ânimo da galera na lona: “Passarinhos”, a colaboração com Vanessa da Mata que foi cantada em uma só voz por ele e pelo público.
Um dos pontos altos e mais comoventes da noite se deu durante a apresentação de “Mãe”, uma balada emocional, pessoal até a última vírgula, na qual o rapper narra as dificuldades vencidas por Dona Jacira e a força que ela teve ao criar os filhos. Pela lona, o público ouvia com a mão no peito e os olhos marejados e, ao final, Emicida declarou: “Muito obrigado, Rio de Janeiro. Como a Vanessa da Mata já dizia, ‘toda a humanidade veio de uma mulher’, e reverenciar isso nunca é demais. Essa história de costela de Adão é bobagem”. E, aqui, é preciso ainda dar destaque para o talento incrível da banda que o acompanha, principalmente para Anna Tréa, cuja energia no palco e a imersão ao se revezar entre instrumentos e vocais é contagiante.
Talvez o motivo pelo qual Emicida consiga se relacionar tão bem com o público seja a humildade que ele carrega até hoje, mesmo depois de ter sido eleito como um dos 30 homens mais influentes do Brasil pela Forbes, e de ser dono de um império do rap através do Laboratório Fantasma. No Circo Voador, quem estava no gargarejo certamente cumprimentou o rapper, que se abaixava constantemente para dar atenção aos fãs ao longo do set. Mas era mais do que isso: Emicida olhava nos olhos de cada um ali e, de alguma forma, catalisava todas aquelas emoções, mesclava às suas, e as imprimia em sua arte, criando algo tão forte quanto verdadeiro.
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