Davi Moraes: ‘Estou em pé por minha filha. Enfrentei a dor da morte de pai, mãe e avó em 2020, um efeito boliche’


Músico lança EP Todos Nós em homenagem ao pai, Moraes Moreira, com a participação de Marina Lima, Carlinhos Brown, Joyce Moreno e Dadi e Mú Carvalho. “A música é uma terapia poderosa para confortar nos momentos tristes. Enfim, a gente só pensava em fazer uma homenagem bonita e tiramos o melhor da nossa inspiração”, pontua. O cantor e compositor perdeu suas três referências em pouco mais de sete meses e sente até hoje o golpe. “Tive uma soma de sentimentos e entrei em parafuso. Acordava e não conseguia sair da cama. Graças a Deus, hoje, estou bem. De alguma forma, é preciso buscar reação. Tive que fazer a escolha de ser feliz”, ressalta. A filha, Alice, de 8 anos, foi fundamental nesse processo. “Se a vida perdeu algum sentido, toda vez que minha filha dá um sorriso, o sentido volta 100% na mesma hora. Sendo pai, pude entender melhor até esse amor todo que eles tinham pela gente. Isso nos faz levantar e aceitar. A saudade é gigantesca, mas preciso estar de pé para cuidar de uma filha que merece o melhor”, observa Davi

* Por Carlos Lima Costa

O ano de 2020 foi o mais difícil enfrentado pelo cantor e compositor Davi Moraes. Em pouco tempo, perdeu as principais referências familiares. Em abril, ainda vivia o luto da morte do pai, Moraes Moreira, quando 15 dias depois perdeu a avó materna, Cândida, aos 97 anos, por Covid-19. A saudade e a dor, ele foi extravasando de certa forma em processo catártico enquanto realizava homenagem ao pai com o EP Todos Nós, lançado este mês. Mas precisou ser forte diante de nova adversidade, em novembro. A repentina partida da mãe, Marília Mattos, aos 69 anos. Com tantas perdas, muitas pessoas travam em uma cama. Davi enfrentou essa dor.

“Tive uma soma de sentimentos que eu já vinha suportando há muito tempo. E entrei em parafuso. Acordava e não conseguia sair da cama. Desconhecia esse sentimento estranho e pedi ajuda a profissionais, Ninguém está livre de passar por isso, perder pai, a mãe e uma avó numa sequência de boliche como eu passei. Precisei de dias para ficar bem. É a tal da sabedoria de entender que por pior que seja, vai passar”, pontua.

Davi lançou este mês o EP Todos Nós, em homenagem ao pai, Moraes Moreira (Foto: Catarina Ribeiro)

Davi lançou este mês o EP Todos Nós, em homenagem ao pai, Moraes Moreira (Foto: Catarina Ribeiro)

A ideia de homenagear Moraes Moreira “não podia ser apenas em uma música, era pouco pelo gigante de pai que foi, uma pessoa ímpar que passou por esse planeta para fazer a diferença”, explica. Assim, decidiu gravar um EP com convidados. “Quando comecei a fazer esse trabalho foi naquele clima de pessoas assustadas, vidas limitadas, porque a partida do meu pai foi exatamente um mês após o lockdown. Ele fez um show novo dia 13 de março, estava animado com o projeto. Nesse dia, fui visitá-lo com minha filha (Alice, 8 anos, do casamento com a cantora Maria Rita, de quem se separou, em 2019), passamos a tarde, foi a última vez que estive junto com ele. Depois, nos falamos somente por telefone. A gente se acalmava, perante a situação cada vez mais grave da pandemia”, lembra.

A música também serviu de esteio para Davi. “Ela tem o dom de salvar, é uma terapia poderosa para se confortar nos momentos duros, tristes, felizes. Enfim, a gente só pensava em fazer uma homenagem bonita e tiramos o melhor da nossa inspiração. Até o jeito que eu toquei guitarra nesse trabalho foi diferente. Nesse momento do mundo, que virou dez vezes mais difícil com a partida do meu pai, poder tocar com os meus amigos, estar em um estúdio, foi bom. Tudo que o meu pai me passou eu tenho aí uma estrada pela frente para levar comigo e essa é uma forma muito incrível de senti-lo vivo no meu dia a dia”, observa.

Davi e Moraes Moreira agradecem o público durante um show (Foto: Mario Gatto)

Lembrança: Davi e Moraes Moreira agradecem o público durante um show (Foto: Mario Gatto)

O músico ainda desabafa: “É tanta coisa bonita que esse cara fez na minha vida, nunca faltou comigo, estava ali sempre. Foi generoso, me levava nos shows desde pequeno, me dava as oportunidades, mas nada de mão beijada. Ele me preparava, tanto que eu demorei para me tornar um guitarrista de sua banda, tive que mostrar que eu estava já capaz. Enfim, ficaram exemplos fortes na minha vida e na da minha irmã Ciça (Cecília).

E o EP? Produzido por Kassin, ele é composto por canções como Aquele Abraço do Gil (Moraes e Joyce Moreno), Aos Santos, parceria de Davi com Carlinhos Brown, O Cantor das Multidões, e a regravação de Davilicença (Moraes e Armandinho). “A primeira foi esse samba maravilhoso da Joyce, uma das maiores artistas do Brasil. A minha guitarra com o violão dela deu certo demais. Gravação inesquecível. Depois, em casa, peguei a guitarra e compus um bolero, mandei para o Carlinhos, e, à noite, no mesmo dia, me mandou uma letra linda. Depois gravou a percussão da música com a gente, eu toquei a guitarra num clima jazzístico. Tem tocado profundamente na emoção das pessoas que escutam”, conta.

Depois, ele ligou para Marina Lima, prima irmã de sua mãe, Marília. E com ela regravou Davilicença. “Ela quis essa música que tem uma memória afetiva muito grande pra mim e pra ela também. A última foi uma balada com Dadi e Mú Carvalho, com quem meu pai fez muitas músicas de sucesso de A Cor do Som. Estamos juntos em O Cantor das Multidões. Ficou aquele clima A Cor do Som”, observa.

Enquanto relembra o pai, ressalta também a importância da avó em sua vida. “Ela foi uma pessoa importantíssima na minha formação e na da minha irmã. Meus pais viajavam para as turnês, aí essa avó maravilhosa tinha disposição incrível para ir com a gente em tudo que era lugar. Foi muito difícil. Pegou uma pneumonia, chegou na clínica era Covid-19 e aí, na manhã seguinte, partiu. Tenho certeza de que está em um lugar maravilhoso, porque ela só fez o bem aqui”, pondera.

"Meu pai fez tanta coisa bonita na minha vida, nunca faltou comigo", diz Davi (Foto: Candé Salles)

“Meu pai fez tanta coisa bonita na minha vida, nunca faltou comigo”, diz Davi (Foto: Candé Salles)

Emocionado, conta o que vem na cabeça quando pensa nas referências que se foram. “Lembro deles com uma alegria danada, tiveram uma vida linda. Meu pai foi um cara que saiu do nada e conseguiu ser bem sucedido. É o tipo de pessoa que não merecia ter um fim de vida que pudesse apresentar algum tipo de limitação, por exemplo. A maior alegria dele era chegar o final de semana e a gente passar o dia juntos com minha filha Alice”, relembra.

E reflete sobre como encontrar forças para seguir em frente. “Primeiro a gente sente fisicamente. Tive dias de ficar deitado, me sentindo congelado. Dias difíceis com a morte de três referências na minha vida. A gente busca resignação nessas pessoas maravilhosas que foram, no tanto que acrescentaram para o mundo de luz e alegria”, comenta, acrescentando que a filha foi de grande importância nesses momentos: “Se a vida perdeu algum sentido, toda vez que minha filha dá um sorriso, o sentido volta 100% na mesma hora. É uma filha doce, carinhosa, companheira, inteligente, engraçada. Sendo pai, pude entender melhor até esse amor todo que eles tinham pela gente. Isso nos faz levantar e aceitar, não levar para um campo trágico. Preciso estar de pé para cuidar de uma filha”, reconhece.

A capa de Todos Nós. O título do EP é também o da primeira música que Davi compôs aos dez anos de idade

A capa de Todos Nós. O título do EP é também o da primeira música que Davi compôs aos dez anos de idade

Com Alice, muitas vezes se vê reproduzindo gestos, atitudes, ensinamentos que teve com Moraes. “Me sinto muito parecido com ele como pai. Me vejo em muitos momentos, inclusive, vejo na Alice, que é transparente e reta no que fala e pensa, nos sentimentos. E ressalta uma curiosidade. “Eu a levo em um loja de brinquedo, por exemplo, ela olha, olha e sai sem nada ou escolhe algo baratinho. Isso é um tapa de luva de pelica, porque sou um cara que sempre tive oportunidade de viajar muito para o exterior, sempre gostei dessa coisa de comprar, aí a vejo desse jeito e é um ensinamento para mim”, diverte-se.

E lembra da parceria dela com o avô. “Meu pai era completamente apaixonado pela Alice, ralou para conseguir que ela chegasse perto dele, porque era aquele cara grande. Ele mesmo falava: ‘Ela deve olhar pra mim e pensar esse cara é diferente, estranho’ (risos), mas na hora que ela sacou ele, entendeu aquele conforto de pai e avô, entendeu tudo dos Novos Baianos, era o maior xodó. Foi difícil falar sobre a morte do avô”, lembra.

"Se a vida perdeu algum sentido, toda vez que minha filha dá um sorriso, o sentido volta 100% na mesma hora", afirma Davi (Foto: Candé Salles)

“Se a vida perdeu algum sentido, toda vez que minha filha dá um sorriso, o sentido volta 100% na mesma hora”, afirma Davi (Foto: Candé Salles)

E lembra o principal ensinamento e influência de Moraes para o Davi artista. “Como músico e cantor, a primeira coisa que me impressionou desde pequeno foi ver que ele amava profundamente o que fazia. Ele passava o dia inteiro tocando, compondo, buscando novos caminhos. Eram os melhores momentos da vida. Ficar assistindo ele compor, depois tocar com ele, participar dos encontros dele com os parceiros, ir para o estúdio, começar a fazer as minhas participações nos shows”.

Hoje em dia, vemos cantores enriquecerem com pouco tempo de carreira. Não foi o caso de Moraes Moreira. Como ele explica o fato do pai ter saído sem dinheiro de um grupo de sucesso como os Novos Baianos? “Naquela época, era uma ralação absurda. Hoje, eles são considerados uma das bandas mais importantes de todos os tempos no Brasil. Era uma família, uma comunidade, todo mundo batalhando pela sobrevivência, pelo sonho deles. Em vários momentos, ganharam um dinheiro legal, a casa ficava cheia de comida, não faltava nada, mas tinha dias que passavam aperto, afinal de contas vivia-se um momento de ditadura, várias pessoas sendo exiladas, torturadas e eles estavam ali segurando a onda deles, correndo risco também”, relembra.

Moraes foi o primeiro a partir para uma carreira solo. “Meu pai enfrentou dificuldades no começo, mas depois se tornou um artista de sucesso em nível nacional. Sei lá, a gente não é cantor sertanejo, dono de fazenda de não sei quantas mil cabeças de gado, mas lá em casa a gente tinha tudo do bom e do melhor: Uma casa confortável, alegre, feliz, mas meu pai viveu muito sufoco na vida, morou em carro na rua, passou fome, mas teve uma hora que ele virou um artista do time A, foi uma vida bem sucedida”, diz, orgulhoso.

Davi conta que seu pai deixou muitas letras inéditas (Foto: Candé Salles)

Davi conta que o pai deixou muito material inédito. “No último telefonema dele comigo, ele falou que tinha feito 15 poemas sobre esse momento que a gente está passando. E queria que eu fizesse trilhas para ele declamar. Sei que tem muita letra inédita que a gente vai pegar e falar com artistas que ele gostaria que fizessem a música. Eu também vou fazer algumas, vai ser o maior barato”, vibra.

E traça um paralelo de quando Moraes inovou o Carnaval da Bahia com o Trio Elétrico em relação aos dias atuais. “O meu pai reinou no Carnaval da Bahia durante anos como o cara que tinha mais música tocada na rádio, foi o primeiro cantor do trio com Armandinho, e com Dodô e Osmar, que inventaram o trio elétrico. Eles arrastavam uma massa de povo atrás deles. Não era um monte de turistas com abadás comprados. A minha visão disso é que as coisas vão mudando, o capitalismo vai sendo muito selvagem e a força da grana muitas vezes destrói coisas belas”, aponta.

E prossegue: “Os patrocinadores, os empresários começaram a crescer o olho. O povo, de certa forma, foi excluído também do carnaval, quando começou aquela massificação de blocos, onde muitos artistas ficaram milionários usando a cultura afro. São competentes. Tiro o chapéu, espetáculos perfeitos.  Começou a fazer muito sucesso essa geração do axé. Meu pai não pertenceu a esse movimento. Virou uma indústria milionária, o povo começou a ficar de fora, encheram a avenida de camarotes, começou a rolar transmissão pela TV, colocaram uma celebridade para apresentar o carnaval. Outra coisa, esse puxa-saquismo de toda uma geração de artistas que ficam falando horas com os patrocinadores, com os políticos, fazendo média com a televisão, enquanto o povo lá embaixo está esperando para dançar. Amo o Carnaval da Bahia, é o lugar onde tenho mais amigos, mas tem coisas lá de ganâncias de empresários que querem se vangloriar de que descobriram a pólvora, que faz muito mal para a festa”, diz em longo desabafo.

Davi não vê a hora de grande parcela da população estar vacinada para que a pandemia seja controlada. Ele está com muita saudade dos palcos. “Minha filha me dá muita força, tá na boa, superando do jeito dela e graças a Deus eu estou com saúde. E como é incrível ter amigos maravilhosos nessa vida, pegar o telefone, ligar para um deles e conversar. Isso é mais poderoso do que qualquer coisa material que possa existir. Para viver feliz não precisa de dinheiro, propriedade. Viver feliz é você ter grandes amigos, é ter disposição para correr atrás do seu trabalho”, diz.

"Não quero dar uma de metido, filho coruja, mas meu pai foi um campeão, quem nem o nosso Flamengo, tem uma sala de troféus lotada”, afirma Davi (Foto: Clarissa Pivetta)

“Não quero dar uma de metido, filho coruja, mas meu pai foi um campeão, quem nem o nosso Flamengo, tem uma sala de troféus lotada”, afirma Davi (Foto: Clarissa Pivetta)

E ele gostaria de entender como tratar sua compulsão por comprar guitarras. “A gente brinca que ela se chama GAS, guitarra acquisition síndrome. Tenho todas as guitarras maravilhosas que sempre quis ter, mas abro a internet começo a olhar as lojas para procurar outras. Fui ao Japão, ía comprar uma, trouxe duas. A maior extravagância que já fiz, foi lá, uma Gibson, reedição de 1954, custou uns seis mil dólares. Minhas extravagancias são geralmente com guitarras. Uma realização é chegar em casa, olhar minha estante de guitarra e escolher qual eu vou tocar. É indescritível. Não sei como vou fazer para parar de comprar guitarra. Mas tem uns piores, Herbert Vianna e Frejat estão num grau mais grave da doença do que eu”, revela.

Por conta dos compromissos profissionais, a próxima viagem de Davi vai ser para Salvador. “Tenho trabalhos importantes para fazer lá, novidades boas que vão chegar referentes a minha carreira”, garante ele, que é fã do velho vinil (“É o melhor som que existe.”), anda com seus CDs empacotados e aceita bem a atual fase dos streamings. “Hoje, é tudo no computador. Temos que nos adaptar a tecnologia. Não precisa mais pegar o CD físico. Agora, sinto falta de ver a ficha técnica, saber quem são os músicos que tocaram. Essas plataformas deveriam ser obrigadas a digitalizar a ficha técnica. E um detalhe, olho meu spotify de artistas e vejo que tenho em média 81 mil pessoas ouvindo minhas músicas a cada 28 dias. Outro dia estava em 50 mil. Isso é interessante”, comenta.

“O meu pai reinou no Carnaval da Bahia durante anos", lembra Davi (Foto: Clarissa Piveta)

“O meu pai reinou no Carnaval da Bahia durante anos”, lembra Davi (Foto: Clarissa Piveta)