CLARA: cantora diz que sofreu assédio e preconceito, “mas feminismo me ensinou a não ‘passar pano’


A cantora e compositora do Rio Grande do Norte lançou o clipe da faixa ‘MESMO’, que celebra as próprias origens em uma mescla de ritmos brasileiros e música eletrônica. Nele, ela ressalta a importância de trazer o conhecimento afrocentrado e ancestral para a música, um pilar do trabalho da compositora. “Foi como retirar uma venda dos meus olhos’. Na entrevista, CLARA conta sobre o processo de se entender enquanto uma mulher negra na sociedade: “Ele foi longo, e digo até doloroso, mas de certa forma foi lindo. Do mesmo jeito que nasce uma força tremenda dentro de nós, nasce também uma dor misturada com agonia”

*Com Bell Magalhães

‘Mãe, periférica e mulher negra’. É dessa forma que Clara Pinheiro, ou apenas CLARA, cantora e compositora de Natal, no Rio Grande do Norte, se define. A nova promessa do cenário musical lançou recentemente o clipe para a faixa ‘MESMO’, que celebra as próprias origens em conversa com a ancestralidade. A música faz parte do EP ‘Volte e Pegue’, que mescla ritmos brasileiros e eletrônicos. Sobre a letra, a artista conta que as referências visuais do vídeo foram espelhadas na sua vivência: “Ela fala de se fortalecer com os seus no seu próprio lugar. Por esse motivo, as filmagens se dividiram entre a minha casa, a principal locação do clipe, e nos entornos do meu bairro”. Puras memórias afetivas.

Este é o segundo clipe do EP, após ‘Força’, gravado apenas com celular. Produzido em meio à pandemia, CLARA disse que teve que se adaptar ao desafio de não ter a troca física com a equipe, algo intrínseco à personalidade da cantora, algo que ressignificou a relação entre ela e os envolvidos: “Tivemos todos os cuidados e seguimos todos os protocolos, mas o mais difícil mesmo para mim é deixar de tocar e abraçar — e me manter distante é a maior dificuldade. Sou da turma que se encontra e se agarra, se cheira. Quando uma cena tinha sido boa no ‘antigo normal’ era uma festa, mas dessa vez foi só uma troca de olhares que dizia ‘foi incrível’, conta. 

CLARA lançou recentemente o clipe para a faixa ‘MESMO’, que celebra as próprias origens em conversa com a ancestralidade (Foto: Augusto Júnior)

CLARA lançou recentemente o clipe para a faixa ‘MESMO’, que celebra as próprias origens em conversa com a ancestralidade (Foto: Augusto Júnior)

A importância de trazer a sabedoria ancestral para a música é um pilar do trabalho da compositora. Pela acessibilidade, CLARA diz que foi o meio que ela encontrou de comunicar e empoderar seus pares: “Você ouve música em todos os lugares de graça. Não precisamos ir ao cinema ou às galerias para ouvi-la. O conhecimento afrocentrado diz que nós somos capazes e nos lembra que, antes de escravos, somos descendentes de reis e rainhas africanos. Ela também reforça que o povo negro é lindo e digno, que podemos e vamos chegar onde queremos”, e acrescenta: “O Brasil passa por um processo muito lindo de revolução racial e tenho muito orgulho de fazer parte e contribuir com ele, nem que seja minimamente”

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A escolha da equipe também foi um ponto chave do clipe. Composta em sua grande maioria de mulheres pretas, os profissionais envolvidos são amigos de longa data da cantora. “A minha turma se conhece antes de cada um ser o que é hoje. Acompanhamos o crescimento uns dos outros em seus segmentos artísticos e existe uma admiração mútua que é linda. É muito doido você ser fã de um amigo e poder trabalhar com ele”, afirma. CLARA diz não saber separar a vida artística da pessoal e por isso é ‘grata por ter uma gama de amigos incríveis’: “Poder trabalhar com eles e apresentar algo maravilhoso, tudo isso sem precisar me misturar com pessoas que não gosto ou que tem uma energia ruim, é a minha maior recompensa”. 

"O Brasil passa por um processo muito lindo de revolução racial e tenho muito orgulho de fazer parte e contribuir com ele" (Foto: Augusto Júnior)

“O Brasil passa por um processo muito lindo de revolução racial e tenho muito orgulho de fazer parte e contribuir com ele” (Foto: Augusto Júnior)

O caminho da compositora na música é longo. Após a passagem pelas bandas Pangaio e Orquestra Boca Seca em 2006, quatro anos depois formou a banda ‘Clara e a Noite’ e ganhou o prêmio de e júri popular do Festival de Música do Beco da Lama e tocou em diversos festivais do Rio Grande do Norte, chegando a fazer uma turnê pela Europa em 2014. Contudo, o ambiente musical é dominado por homens e, por consequência, é um meio que pode ser extremamente machista e, infelizmente, CLARA pode confirmar. Hoje, usa o conhecimento que adquiriu em leituras feministas para contornar os ataques: “Sofri assédio e preconceito muitas vezes, mas não deixo barato e muito menos me calo, principalmente para o racismo. O feminismo me ensinou muito, especialmente a não ‘passar pano’ ou diminuir a gravidade de certas atitudes”, diz.

"O feminismo me ensinou muita coisa, especialmente a não ‘passar pano’ ou diminuir a gravidade de certas atitudes" (Foto: Augusto Júnior)

“O feminismo me ensinou muita coisa, especialmente a não ‘passar pano’ ou diminuir a gravidade de certas atitudes” (Foto: Augusto Júnior)

O contato com o feminismo se apresentou de outras formas. Em 2016, a cantora se tornou mãe e começou a refletir sobre ser mulher e a sua negritude. Nesse período, pesquisou durante três anos buscando se conectar e encontrar o seu lugar na luta por equidade racial e de gênero. “Meu processo foi como retirar uma venda dos meus olhos. Ele foi longo, e digo até doloroso, mas de certa forma foi lindo. Do mesmo jeito que nasce uma força tremenda dentro de nós, nasce também uma dor misturada com agonia. Um ranço, não por ser negra, claro, mas por entender como funciona a estrutura racista da nossa sociedade”.

"Meu processo foi como retirar uma venda dos meus olhos. Ele foi longo, e digo até doloroso, mas de certa forma foi lindo" (Foto: Augusto Júnior)

“Meu processo foi como retirar uma venda dos meus olhos. Ele foi longo, e digo até doloroso, mas de certa forma foi lindo” (Foto: Augusto Júnior)

Nina Simone, Angela Davis, Elza Soares, Martin Luther King, Billie Holiday, Itamar Assumpção, Carolina Maria de Jesus, Jota Mombaça, Os Panteras Negras entre outros foram inspiração para a jornada de autoconhecimento. Por conta desses aprendizados, CLARA se agarrou às origens e sempre frisa que não pretende ‘perder o foco no que significa ser mulher negra, mãe e periférica no Brasil’ nas suas músicas: “Falo do que eu vivo e que estou ocupando o meu lugar no mundo da melhor maneira que posso. Sou quem eu quero ser e isso é possível. É difícil demais, mas uma mulher preta, mãe, pobre e moradora de periferia pode ser tudo o que ela quiser”, afirma. 

"Falo do que eu vivo e que estou ocupando o meu lugar no mundo da melhor maneira que posso. Sou quem eu quero ser e isso é possível" (Reprodução Instagram)

“Falo do que eu vivo e que estou ocupando o meu lugar no mundo da melhor maneira que posso. Sou quem eu quero ser” (Reprodução Instagram)

Não é uma tarefa fácil cultivar a autoestima em um país que condena quem não segue a normatividade imposta pela sociedade. Ao longo dos anos, mulheres negras foram forçadas a realizar procedimentos nos próprios corpos para se adequar a um padrão fomentado pelo racismo estrutural. Nessa luta, CLARA conta que se sente sortuda por ter apoio da família, que a ajudou a construir uma rede de acolhimento durante os anos de construção da identidade: “Minha mãe nunca me deixou alisar os cabelos, por exemplo. Ela sempre nos influenciou a nos cuidarmos desde pequenas, e isso era colocado como um momento de amar nós mesmas e umas às outras. Passávamos creme hidratante na pele, trançávamos os cabelos e trocávamos elogios durante esse processo”, conta. Hoje, ela pratica o mesmo ritual com a filha, Vida, de 5 anos: “A cada penteada no cabelo é um ‘você é linda’, ‘você pode’, ‘você é maravilhosa’, ‘ninguém é melhor que você’ e mais outras frases afirmativas para poder ajudá-la na solidificação da identidade dela. É importante fazer ela entender que as pessoas são diferentes e isso é maravilhoso”, frisa.