Bloco Cortejo Afro inicia mais uma temporada de ensaios: “Não temos amarras, só diversidade!”


O idealizador do grupo, Alberto Pitta, demonstrou muito amor por seu trabalho, mas reconhece a tensão do momento: “Por que querem destruir o Brasil?”

O bloco mais estético da Bahia deu início nessa segunda-feira (3) à temporada de ensaios, que vai até o carnaval de 2019. O Cortejo Afro, fundado há 20 anos pelo experiente e apaixonado Alberto Pitta, promete um verão memorável. Em conversa exclusiva com o site HT, Alberto nos fez sentir um pouquinho do gosto da Bahia. Vem ler!

O bloco Cortejo Afro, sucesso no carnaval da Bahia, celebra a diversidade.

Há mais de 30 anos desenvolvendo trabalhos de pesquisas e criações artísticas, Alberto Pitta se destaca no cenário artístico e cultural da Bahia, sobretudo no que se refere ao carnaval em Salvador. Em 1998, partindo da carência de representatividade da cultura negra, o artista fundou o bloco Cortejo Afro, caracterizado por uma estética diferenciada. “O carnaval tem uma outra lógica e eu não queria o carnaval por ele mesmo, fazer bloco por fazer. A ideia era contribuir para essa grande festa através da estética, que é uma forma de libertação e melhoria do povo. E esse é o Cortejo Afro, um bloco que prima pelas artes plásticas”, explicou o idealizador.

Nesses 20 anos de estrada, o artista acredita que a palavra-chave para o Cortejo é amadurecimento. Apesar de ter iniciado esse projeto depois de 15 anos como diretor artístico do Olodum, ele contou que seus parceiros não estavam habituados a produzir a festa anual: “Ninguém tinha a tradição do carnaval, ninguém nunca tinha participado da produção do bloco, de colocar na rua e organizar. E hoje são todos craques em fazer essas coisas. Somos um bloco que surge no final da década de 90, surpreendendo toda a cidade e lançando um conceito estético em cima das cores, símbolos e signos. Hoje, todos sabem o que é o Cortejo Afro. Então, com certeza, o que nos define nesse tempo todo é o amadurecimento”. Infelizmente, o que não mudou, para ele, é o inconveniente financeiro que surge todos os anos para colocar o bloco na rua. “Há uma dificuldade muito grande para captar recursos e conseguir apoio para fazer o bloco. No final, a gente consegue, mas deveria ser melhor”, explicou.

O idealizador Alberto Pitta e o cantor Saulo.

Quem conhece o ritmo da Bahia pode estranhar ao se deparar com a marcação dos ensaios, sempre às segundas-feiras. Porém, possuindo um público que o acompanha durante todos esses anos, o grupo foi responsável por anular essa e algumas outras convenções. “Era algo inimaginável. Não existia segunda-feira na Bahia. Então, eu inventei de ensaiar sempre nesse dia porque eu percebi que é quando os artistas estão de folga e por isso, ficam na cidade. Podendo, eventualmente, aceitar um convite nosso para fazer uma participação em algum ensaio. Isso acabou virando uma tradição e outros grupos começaram a entender que a segunda-feira também é possível”, admitiu o artista, que muito feliz fez da “Segunda do Cortejo” um evento aguardado.

Dentro desse público cativo, nota-se uma grande maioria pertencente à comunidade LGBTQ+. Comemorando a liberdade dos corpos, Alberto comentou que essa união aconteceu devido à similaridade de pensamentos entre à comunidade e o bloco: “O público LGBT vê no cortejo afro uma ambiência leal a sua forma de ser, de pensar, de liberdade e libertação. Não temos amarras, só diversidade”. E continuou, dando importância às transformações socias presenciadas pela sociedade ao longo dos anos: “Temos que perceber o movimento. Cultura é isso, é algo que se move, se transforma e vibra”.

Defendendo também a liberdade religiosa, Alberto contou que uma das grandes inspirações do cortejo é a religião, junto a artistas de referência na Bahia. “O cortejo foi fundado no terreiro da Mãe Santinha de Oiá, na comunidade de Pirajá, então para nós, a questão da religião é inspiração constante. Fora isso, temos os nossos grandes nomes, né?! Caetano Veloso, Gilberto Gil, Margareth Menezes, Daniela Mercury, Saulo”, enumerou ele sem conseguir dar fim à numerosa lista de referências. Ainda assim, o artista vê a musicalidade da Bahia como inspiração maior.

A temporada de ensaios começa hoje (3) e vai até o carnaval. (FOTO: Agência Edgar de Souza)

Homenageando, na temporada de 2019, uma lenda sobre Oxalá e Oxum, Alberto relembrou momentos felizes com o grupo, mas lamentou a situação da arte no Brasil: “Em 2017, por exemplo, depois de homenagearmos o [Gilberto] Gil, nós fomos com ele para uma turnê por seis países na Europa. Foi um dos momentos mais importantes, com certeza! Retornando, porém, a gente pensa: Por que querem destruir o Brasil?  Ameaçar as manifestações populares é ameaçar o nosso país literalmente”. E continuou demonstrando resistência: “É uma tentativa de transformar o povo em soldadinhos de chumbo. Não será assim! A arte é importante, traz autonomia, liberdade, atitude e princípios. Deixo claro que quem luta contra a arte está fadado ao fracasso”.

Sobre a agenda de 2019, o idealizador reforçou que as segundas-feiras da Bahia serão recheadas de muita alegria, estética e representatividade pelo Cortejo Afro, sem excluir outros possíveis dias de espetáculos a convite de parceiros: “A nossa agenda nesse sentido vai muito de acordo com os convites que vamos recebendo, mas fora isso vamos fazer em todas as segundas-feiras o nosso ensaio de verão. Isso já é algo que a cidade inteira conhece”. Muito orgulhoso do trabalho realizado, Alberto reforçou a relevância de um bloco como o Cortejo: “Em um Brasil que descortina tempos sombrios e que nós não sabemos, ou sabemos e não queremos acreditar, como será a partir de janeiro, grupos como o Cortejo Afro são muito importantes. De fato, nós somos um símbolo de resistência. Nossa importância agora é maior do que nunca!”. A pedido do site HT, ele deu ainda um recado àqueles que pretendem viver de arte no Brasil. “A nossa cultura é algo específico do Brasil, que está na gente, no nosso sangue, no sangue do povo. Precisamos trata-la com respeito. Persista, foque e resista. Posso usar vários verbos aqui, mas a luta é uma só”, finalizou