Adriana Calcanhotto: uma canção por dia, até a hora do almoço, para alimentar a alma na quarentena


Cantora e compositora lança o álbum “Só”, com músicas compostas em nove dias, durante o isolamento social imposto pela pandemia causada pelo novo coronavírus. “Comecei a acordar com disposição de meter a mão na massa, com vontade de fazer pão, preparar quentinhas para os outros. Mas eu não sei fazer isso, então coloquei essa energia em escrever canções”, diz

*Por Simone Gondim

Em vez de pão, canções. É isso que Adriana Calcanhotto anda fazendo durante o isolamento social imposto pela pandemia causada pelo novo coronavírus. O mais recente álbum da artista, “Só”, é resultado dessa preocupação em alimentar a alma das pessoas. “Comecei a acordar com disposição de meter a mão na massa, com vontade de fazer pão, preparar quentinhas para os outros. Mas eu não sei fazer isso, então coloquei essa energia em escrever canções”, explica. “Inventei, para mim, algo que se chamou ‘uma canção até o almoço’. Era uma maneira de acordar, sair da cama e ir fazer as coisas. Senti necessidade de ajudar, contribuir. Era como se eu estivesse fazendo pães, não música”, acrescenta.

Em 11 dias, Adriana se viu com um repertório de 30 minutos de música, que resultou nas nove faixas de “Só” – o disco anterior, “Margem”, também segue esse formato, mas levou dez anos para ser lançado. “Nunca pensei em fazer um disco da quarentena. A ideia era: vou fazer uma canção até a hora do almoço. Se até o almoço eu não tiver uma canção, não almoço”, conta, rindo. “Foi a primeira vez que lancei um trabalho nesse tempo e compus uma música atrás da outra, tão rápido. Encarei como um exercício de composição, mesmo. A criação gosta do fato de estar em casa, sem compromissos. Mesmo depois do disco pronto, continuei compondo, mas não com a mesma velocidade”, revela.

(Foto: Leo Aversa)

Em “Só”, Adriana nos oferece uma espécie de registro histórico desse período de quarentena, que ninguém sabe dizer ainda quando vai acabar. Estão nas músicas o som dos panelaços (em “O que temos”), a solidão e o estar em casa. “As canções têm essa urgência, o pano de fundo da quarentena, dos acontecimentos sanitários, políticos e sociais. Quando vi que tinha um pacote com nove músicas se comportando como uma safra, um grupo de canções que conversavam entre si, falei: ‘bom, não era a minha intenção, mas tenho um álbum. Vamos lançar'”, diz. “Se eu aprender a fazer pão, talvez não faça mais discos, mas esse foi necessário”, ressalta.

Uma das surpresas do novo disco é o funk “Bunda lê lê”, que tem a participação de Dennis DJ. Embora já tenha flertado com o ritmo ao gravar “Fico assim sem você”, sucesso da dupla Claudinho e Buchecha, para o álbum “Adriana Partimpim”, de 2004, foi a primeira vez que a artista compôs algo tão próximo dos pancadões tradicionais. Usando termos recorrentes no funk, como “senta”, “bunda”, e “vai”, o batidão da Calcanhotto tem um humor sutil. Para a pergunta que abre a música, “O que que faz na quarentena?”, a reposta vem nos versos como “senta a bunda e estuda”, “senta a bunda e lê lê” e “senta a bunda e vai à luta”. Já “Sol quadrado” pode ser encarada como um recado político, embora a artista não diga isso claramente. “Pode ser, sim. É a interpretação de cada um. Eu digo que essa canção é muito lei da gravidade, ação e reação”, desconversa.

A capa do álbum “Só”, de Adriana Calcanhotto (Imagem: Divulgação)

A saudade de Coimbra, em Portugal, aparece em “Corre o Munda” – Munda era como os romanos chamavam o rio Mondego, que banha a cidade. A pandemia, aliás, atrapalhou a volta de Adriana ao trabalho como professora convidada na Universidade de Coimbra. “Dar aulas em outro país é o tipo de coisa em que eu não tinha pensado, não sonharia, mas aconteceu e me faz muito bem”, confessa.

Cada faixa de “Só” tem os direitos autorais doados para um grupo diferente. Entre os beneficiados, Coletivo Papo Reto, Ação Cidadania, Amigos do Hospital do Fundão e Redes da Maré. Já a equipe de técnicos da artista vai receber o que for arrecadado com “Lembrando da estrada”. Segundo a artista, o desejo de dar um caráter beneficente ao trabalho surgiu em março. “Pensava em fazer um single a fim de oferecer os direitos autorais para a minha equipe, que infelizmente está parada. A partir daí, começou a ideia de fazer isso em cada música, favorecendo sempre uma instituição diferente”, afirma Adriana.

(Foto: Leo Aversa)

O disco é dedicado a Moraes Moreira, morto em abril, aos 72 anos, após sofrer um infarto em casa. “Sempre tive uma relação de admiração por ele, desde quando morava em Porto Alegre. Nossos encontros, mesmo que poucos, eram feitos de muito afeto. Ele era um ídolo, que me influenciou, sim, e infelizmente morreu em uma época em que a gente não pode se despedir de um homem que nos deu muita alegria. A homenagem foi minha maneira de dizer até logo”, conta.

A cantora e compositora frisa que produzir um trabalho a distância não é uma novidade em sua carreira. “Isso já tem sido feito há muito tempo, é normal para mim, meus músicos e os produtores com quem trabalho. Foi tudo muito diferente e atípico, mas achei bastante interessante. Consegui descobrir que é possível fazer um trabalho de uma maneira praticamente oposta ao que eu vinha fazendo. Talvez isso possa acontecer com outros artistas também”, imagina.

O recurso da live para mostrar todas as canções de “Só” é algo que agrada Adriana. “Gostei desse formato, achei bacana. É uma maneira muito nova de me apresentar, fico pensando em como fazer isso. Estou curiosa para saber como fazer uma turnê em casa”, garante. “Mas, claro, a catarse de uma plateia não pode ser substituída”, completa.

Os imprevistos das transmissões ao vivo não tiram o humor da artista. Durante uma live do Sesc, uma gata roubou a cena ao invadir a cozinha da casa de Adriana. “Sou gateira e os bichos sabem. Os gatos da vizinhança vêm para cá. A gata que invadiu a live está dando de mamar, então está desesperada de fome. Ela pulou a janela e destruiu a cozinha. Fico observando, cada felino reage de uma maneira durante essa quarentena”, diz.