Cult, o ABBA vira quarentão, fazendo o povo sacudir o esqueleto até hoje. Mas, será que foi sempre assim?


Grupo sueco, mesmo considerado cafona, comemora quatro décadas de sucesso e prepara reunião para uma breve turnê de clássicos

Quem nunca se sentiu uma “Dancing Queen” na pista da boate, seja hétero, homo ou o que quer que seja? Ou, naquele momento especial, teve vontade de abrir a boca e gritar “Mamma Mia” a ponto de rasgar o ar com potentes decibéis? É pouco provável que exista sequer uma criatura que já não tenha passado por isso. Afinal, o quarteto sueco Abba já estava dando pinta nas paradas, com seus inesquecíveis sucessos, desde meados dos anos setenta. Mas… será que esse sucesso todo foi sempre assim?

Em 2014, o grupo formado por Agnetha, Bjorn Ulvaeus, Benny Andersson e Anni-Frid Lyngstrad – os quatro integrantes que venceram um concurso de talentos na Suécia em 1974 e se tornaram um dos grupos pop de maior sucesso da história – completa 40 anos, colecionando hits. E, de todas as apostas do mercado fonográfico, entre talentos natos e pré-fabricados, é possível afirmar que o Abba é praticamente um precursor desse star system de bebês de proveta criados no porões da indústria do entretenimento.  Óbvio que, enquanto fazer sucesso no mercado significar o rendimento de alguns milhões – ou bilhões -, sempre existirá gente esperta pronta para fabricar produtos pasteurizados e pô-los à degustação do público, vendidos como saborosos acepipes. O processo dá trabalho a princípio, mas, depois da cobra criada e lançada, basta cuidar da prole e lamber a cria, contabilizando os tostões arrecadados e, de preferência, sentado em uma bela poltrona de couro. E, claro, dos anos setenta para cá, é notório o fato de os executivos da música gastarem muito mais tempo manufaturando esses sucessos pré-programados do que simplesmente burilar artistas de talento espontâneo. Estes últimos muitas vezes precisam somente de uma amaciada, mas, os primeiros, a despeito de todo o desgaste no preparo, se ajustam fácil às receitas de bolo e, quando saem do banho -maria e entram em ponto de ebulição, tornam-se uma iguaria bem passada, capaz de satisfazer os estômagos (ou ouvidos) de uma grande quantidade de pessoas. E, se considerarmos que as boy e girl bands representam a fina essência dessa prática, é cabivel afirmar, portanto, que o Abba é a versão-vovô dessa linha de produção e, assim, um de seus pioneiros.

ABBA

Em entrevista ao jornal alemão Welt am Sonntag, a cantora Agnetha Faltskog revela que existem planos para celebrar o niver de quarenta anos do grupo e não descarta a possibilidade de um reencontro dos quatro vovôs no palco, enquanto ainda há tempo. “Ficar pensando se devemos nos reunir ou não consome muita energia. Não fique pensando nisso, faça isso de uma vez”, brincou. “Estamos envelhecendo, e não imagino ninguém subindo no palco de bengala. “Parece que há planos para marcar esse aniversário de algum jeito, mas ainda não posso dizer com clareza o que acontecerá de fato”.

A última e histórica performance do ABBA foi na Inglaterra, em dezembro de 1982. Desde então, apesar de inúmeros tributos – como uma versão adolescente do grupo chamada de A-Teens – o quarteto nunca mais se reuniu. Agnetha e Bjorn foram casados, assim como Benny e Anni-Frid, mas, atualmente os dois casais estão divorciados. Os quatro ressurgiram juntos uma única vez, em 2008, na pré-estreia do filme “Mamma Mia”, musical protagonizado por Meryl Streep com as músicas do grupo.

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Ao que parece, a década de 1970 e seu espírito pop-tropicalista nunca vão desaparecer, principalmente quando o assunto é comportamento. Isso se credita, em boa parte, por conta da ideia de originalidade que surge quando se imagina este período recente da história. O antropólogo Ted Polhemus costuma dizer que “antigamente, o lugar onde você cresceu e a sua religião diziam tudo o que se precisava saber sobre você. Hoje não é mais assim, e as pessoas estão buscando novas formas de construir identidades”. Assim, revisitar outros momentos da história e esbarrar em suas característica de estilo é, sem dúvida, uma ótima opção para estabelecer sua própria identidade. E os anos setenta são pródigos em códigos estéticos que auxiliam nessa construção da auto-imagem.

O ABBA pode ser considerado um must have de sua época. Apesar de espelhar um lado kitsch, muito cafona, dos excessos da década a qual pertence, o quarteto sueco virou tão in que rendeu até inspiração para uma banda pop alemã criada em 1979, para competir no Festival Eurovisão da Canção, Genghis Khan. Igualmente cafonérrima, eles até tiveram dublagem brasileira escrita pelos The Fevers.  Quer coisa mais camp?

Obviamente, o mainstream disco nos anos setenta torcia o nariz empoado para o quarteto. Gente fina tipo Donna Summer, Diana Ross, Bee Gees, Chic e Santa Esmeralda, entre outros, fingia que não estava nem aí.  Mas fazer o quê? Os suecos competiam em pé de igualdade nas lojas de discos e nos programas de televisão. E mais: sempre souberam conversar com o público médio europeu que, no fundo, adora até hoje cafonices como Azúcar Moreno – na Espanha – ou aquelas musiquinhas saídas de programas de auditório, tipo ‘La Chanson du Canaire’ (aqui no Brasil, ‘Passarinho quer cantar’, estrondoso hit em programas do período tipo Gugu e Silvio Santos), capazes de fazer aquelas tias-avós velhinhas, de andador ou cadeira de rodas, se mexerem da cintura pra cima sem parar, sacolejando os dedinhos.

Os anos setenta foram um vulcão ativo que eclodiu lava comportamental que até hoje é prato cheio para os sociólogos, como a cultura das discotecas. Nesse mesmo período, houve espaço para o experimentalismo na música erudita e o florescer do minimalismo, surgido nos 1960, com Philip Glass e Michael Nyman. Aqui no Brasil foi o auge da música engajada de intelectual, representada pela MPB. Mas, o que marca esse período são aqueles movimentos que mexem com as grandes massas e se fazem valer de um aparato visual arrasador. Por isso, a década de 1970 será sempre marcada pela disco e pelo rock pauleira. E o Abba consegue transitar dentro desse conteúdo visualmente marcante, mesmo que seja musicalmente questionável, com a sutileza de um elefantinho atrás de um pé de amoras.

Assim, na contramão de experiências estilísticas mais sofisticadas – e de menor abrangência de público – a receita que incorpora uma pitada de ingredientes populares, como sonoridade ímpar e visual envolvente, foi seguida com rigor por todos os movimentos musicais capazes de atrair grandes massas de verdade, fossem ele simultâneos (ou anteriores) ao disco, como o glam rock, onde ser chique, andrógino e glamoroso fazia parte da cartilha de sucesso. Os executivos das gravadoras e produtores musicais tinham conhecimento deste fato de cor e salteado.

David Bowie, por exemplo, foi um dos que surgiu nessa vertente glam, quando entrou em cena com seu seminal The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders From Mars’. Elton John também,  com o álbum Goodbye Yellow Brick Road’. Os dois sabiam perfeitamente beber da fonte do espetáculo, chegando este último ao limiar do caricato, com sua marca registrada de óculos enormes, brilhos, boás, paetês e roupas ricamente enfeitadas e coloridas, além das botas de plataforma e das calças boca-de-sino. Ridículo? Sem dúvida! Mas, se Bowie e John nunca forma considerados cafonas, o mesmo não se pode dizer do Abba. A diferença, claro, está na capacidade de atingir ou não um público mais elitista e formador de opinião, capaz de considerar os excessos bacanas, acima do bem e do mal. E, ainda por cima, transformarem estes mesmos exageros em moda de gente bacana.

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O Abba representa a fina flor da intercessão européia do glam rock e a disco, composta pelos códigos visuais limítrofes dessas duas vertentes exageradas. A aparência do grupo sintetiza perfeitamente os códigos estéticos desses dois momentos da música pop e até a data de seu surgimento (1974) situa-se na transição de um para o outro. Por isso mesmo, por se alimentar dos maneirismos inseridos em duas correntes tão intensas – e, ainda por cima, exagerarem nos rococós, pecado mortal entre gente cool – a banda acabou sendo taxada logo de cara como o suprassumo do kitsch. Ainda assim, pode ter acabado, não dar as caras ao vivo há mais de 30 anos, mas esta aí, para quem quiser ver e ouvir, fazendo sucesso sem parar. Virou musical na Broadwayblockbuster no cinema e ainda anima festinhas, contagiando o povo das antigas e a galera novinha com o mesmo frescor de sua época. Outros concorrentes, apesar da sua pretensa sofisticação, viraram poeira. Prova de que o povo ama a cafonice incondicional, que tem a seu favor o tempo corrido como importante fator de reabilitação. Quem, em sã consciência, ousaria dizer, hoje em dia, dizer que não curte uma dancing queen?

*Por Rafael Moura

fotos: arquivo