A pasteurização das metrópoles e a moda que pode vir tanto da África, dos Andes ou de uma piscina pontuaram o terceiro dia da edição inverno 2015 da São Paulo Fashion Week, nesta quarta-feira (5/11), em São Paulo. A manhã já começa intensa, com dois desfiles externos realizados na Praça das Artes: o de Alexandre Herchcovitch e o da Ellus. O primeiro desfilou sua coleção feminina, trazendo apenas um modelo masculino no meio – o negro português Fernando Cabral, deus de ébano. Dessa vez, o estilista mergulha no mundo da jardinagem para trazer peças utilitárias como jardineiras, vestidos-avental, muitos vestidinhos faceiros e uma série de peças que interpretam os xadrezes e prints florais característicos desse universo, mas dentro de sua ótica inventiva. Entre flanelas típicas desse mundo e tecidos plastificados, surge o trabalho em texturas que, para Alexandre, deve lembrar folhas, pétalas e corolas, assim como as cercas que circundam os jardins. Como sempre ele faz algo nada óbvio, mas pleno das referências pesquisadas. E, assim como no desfile de sua Herchcovitch: Alexandre, apresentado mês passado no Minas Trend, o designer opta por uma moda que foca o comercial, sem abrir mão da sua habitual dose de conceito.
Além disso, mestre em desenvolver linhas assinadas junto com outras empresas, ele oferece no bolo mais óculos e relógios de sua parceria com a Chilli Beans, pontuando o conjunto da obra com a Flower Boot, o calçado desenvolvido com a Melissa, que acompanha a cor dos looks desfilados e que ele já se encarrega de prontamente dizer que estará à venda logo após o desfile. Uma graça, mas prático como jardinagem: plantado para vender muito e logo, sem precisar esperar. É plantinha de rápido desenvolvimento, daquelas que nem é preciso aguardar para vê-la crescer e dar muda. Já está ali no vaso, ops, na vitrine da Galeria Melissa São Paulo.
Se Herchcovitch estava singelo e de bem com a vida, a Ellus foi lá atrás, para fazer moda jovem inspirada pelo espírito de gangues de rua. A pesquisa foi em cima de “Warriors – Os Selvagens da noite (Warriors, de Walter Hill, Paramount), longa-metragem violento, povoado por uma turma da pesada. Não é a toa que os modelos desfilaram de carão fechado ao som de “Black Skinhead”, pancadão de Kanye West criado em cima de um batidão de Marilyn Manson, já ouvido na trilha de “O Lobo de Wall Street” (The Wolf of Wall Street, de Martin Scorcese, Paramount, 2013). Como o filme é de 1979, está explicada a referência das peças baseadas na virada das décadas de 1970/1980: com cartela de cores escura, mas com highlights de verde, rosa, caramelo e vermelho, surgem jeans em lavagem used com patches, bikers, bomber jackets, jardineiras, peças em couro e camisetas com símbolos dessas tribos urbanas. Nos acessórios, coturnos em verniz são amansados com cadarços coloridos e correntes de metal esmaltado arrematam as montagens. Aliás, por falar em correntes, bacana as peças transparentes com prints desse motivo. Cool.
Depois de apostar em um verão agreste com pegada western, Lilly Sarti vai para o outro extremo e investe em inverno com aroma very british, inspirado pela Swinging London dos anos 1960/1970. Ficou chique e “Blow Up” perde. Vestidinhos com levada dessa época, daqueles de fazer Twiggy estrebuchar de prazer, dividem a cena com blusas, saias e calças bem talhadas, algumas vezes arrematadas por belos casacos de astracã. E um chapéu de aba larga, um colar comprido, echarpe, bolsa ou um cinto largo se encarrega de finalizar o look, já que a mulher da marca gosta de acessórios. Mas o destaque vai para as ótimas estampas psicodélicas, daquelas que, na época, poderiam decorar tanto uma chemise quanto um papel de parede, uma cortina ou, quem sabe, até estofado de banco do underground, o metrô londrino. Ou, então, comparecerem sobre a pele de pêssego de Peggy Moffit, musa do estilista Ruddy Gernreich, o papa dos prints alucinógenos.
Após anos a fio com a bússola voltada para um Brasil folclórico, singelo e interiorano, Ronaldo Fraga se dirige agora para as grandes metrópoles do país com coleção conceitual e crítica, através da qual procura trazer à tona a reflexão sobre o quanto a urbe pode perder identidade. “Recife, Fortaleza, Salvador, Rio ou mesmo São Paulo, não importa. Todas as cidades sofrem perda de DNA na hora em que a especulação imobiliária torna tudo pasteurizado, igual, despido de particularidades”, conta o estilista no camarim, completando que inspiração veio do movimento Ocupe Estelita, na capital pernambucana, onde as pessoas ocuparam o antigo cais para evitar que ele viesse abaixo em função da goela larga das empreiteiras. “São cidades sonâmbulas, que fingem nunca dormir, mas que estão de pé, alheias àquilo que acontece à sua volta e perdendo constantemente suas características mais genuínas em prol de inexpressivos paredões de edifícios e paisagismo de maquete de arquitetura”, ele conta. Assim, o criador concebe um desfile de protesto, com roupas essencialmente em preto-asfalto, branco-gelo, cinza-cimento e o vermelho dos pingos de sangue, sendo que esta cor também é a da pele das modelos. Vermelhas de raiva? Talvez. Melhor seria dizer que é rubro de vergonha com aquilo que está acontecendo, ou ainda que se trata de um sinal fechado, que impede que os habitantes das regiões metropolitanas, fruto de sua própria história, reproduzam de verdade a cidade que existe dentro deles e que determina quem eles são.
Daí, aquela profusão de referências que vão dando significado a este novo trabalho de Ronaldo: estampas de cenas cotidianas das cidades, grafismos de texturas dos empenas de prédio, maxi brincos de arranha-céu e cinturões de skyline, elementos que ajudam a compor o styling e compreender do que fala o estilista, com peças bacanas em tecidos criados em parceria com a Innovativ.
Destaque também para os tricôs de linha aberta ou confeccionados com fitas magnéticas, aquelas dos antigos videocassetes. Ou ainda os looks de peças feitas com tecido emborrachado, que descasca conforme é lavado e vai se assemelhando aos muros antigos detonados pela pátina do tempo.
Dessa forma, o show prossegue, com trilha executada pela cantora Cida Moreira ao piano de cauda. Ela – com cabelos cor de fogo em visual que lembra a bruxa fashionista Mirtle Snow de “American Horror Story – Coven” (Balenciagaaaa!) – canta de “Geni”, de Chico Buarque, a “Back to Black”, de Amy Winehouse, sendo responsável por boa parte da forte dose de teatralidade vista em cena. No mais, o designer até surpreende pela falta de um cenário, já que comumente comunga suas roupas com recursos cênicos deslumbrantes, mas, logo no início (quando começa a projeção de rostos vermelhos com quatro olhos e a primeira modelo passa, fica claro que o visagismo utilizado nas modelos dá o tom. É possível que o que vem por aí não se trata de mais um bate-e-volta.
E, afinal, acaba ficando óbvio que a cenografia agora é substituída pela própria maquiagem, concebida por Marcos Costa, que conta ao HT: “Quando vi essa imagem desenhada nos croquis de Ronaldo, entendi que ela deveria ser exatamente aquilo que seria reproduzido nas modelos, recurso cênico para contar a sua viagem”.
A moda é como uma piscina: se o estilista não souber nadar, afunda. E Vitorino Campos, desde seu primeiro desfile, tem provado que sabe boiar, nadar de golfinho, dar braçada e fazer o diabo para se manter na superfície, apesar das marolas do mercado. Talvez seja por isso que o designer baiano escolhe agora como tema as piscinas e suas águas, em coleção que chama de “Translúcida”. A partir da poesia do filme “A liberdade é azul”, de Krysztof Kieslowski e com Juliette Binoche no elenco, ele vai construindo sua coleção, com muito azul, roxo, verde, vermelho, preto & branco. Sobretudos e casacos surgem a partir da observação dos roupões de banho, com faixas que são arrematadas em laçadas, enquanto blusas e maiôs de lycra compõem com calças e saias. E, pela primeira vez, o jeanswear comparece em composições clássicas, em itens confeccionados em materiais sofisticados como cetim duchesse, organza, jacquard e zibelina. Belo. E, no casting, a presença de Talytha Pugliesi, desfilando com exclusividade eem entrando com um único look, já vale um bônus extra.
Em sua estreia na passarela paulista, a carioca Sacada estiliza ao extremo a cultura andina dos incas, preferindo verter grafismos étnicos em interpretações urbanoides, bem de acordo com seu público cosmopolita. De fato, a influência da América Latina e dos povos pré-colombianos na moda está forte e continua na próxima temporada, bastando conferir aquilo que foi apresentado durante o Minas Trend há cerca de um mês. Mas, no desfile desta quarta-feira (5/11), a Sacada preferiu levar ao extremo a desconstrução folclórica do assunto em resultado minimalista ao extremo. Diluiu, mas as referências estão lá, sobressaindo formas enxutas, assimetrias, geometrismos e a alfaiataria sem rigidez, mas estruturada. Destaque para os maxi cardigãs e os tricôs, bem desejáveis.
Depois de lançar uma linha de camisetas inspiradas em “Star Wars”, eis que a Triton assume de vez sua porção nerd de carteirinha e traz para a passarela a saga espacial de George Lucas em coleção-conceito que Karen Fuke (feminino) e Igor de Barros (masculino) criaram, provavelmente fazendo o dever de casa ao assistir aos seis episódios da série. Está tudo lá: os uniformes dos soldados imperiais marcam presença em outfits em pretos & brancos com recortes e mix de materiais, peças com ombreiras e matelassados lembram as armaduras do exército do imperador, looks em preto total evocam Darth Vader, montagens esportivas em laranja e cáqui aludem aos uniformes dos rebeldes. Uma série de peças em azul e camelo obviamente remete ao céu e areia do ambiente inóspito de Tatooine, o planeta-deserto dos Jawas. E, lá no meio do desfile até rola uma taciturna figura com visual preto arrematado com hoodie. Deve ser provavelmente o resultado de uma epifania fashion em torno do vilanesco Senador Palpatine, convertido em Lord Sith, ou até de Darth Maul. E tem até uns casacos de pele bem felpuda que faz a plateia pensar nos Wookies liderados por Chewbacca.
Entre todas as sacações, as peças douradas com relevos que lembram o robô C-3PO são exercício criativo de primeira, que deveria ser transformado em estudo acadêmico para orientar devidamente alunos de escolas de moda, evitando que eles se percam em devaneios descabidos que acabam sempre virando maluquices ou variações de look de Lady Gaga.
No mais, vale ressaltar que muitas peças de inspiração esportiva, despidas das montagens apresentadas na passarela, viram itens usáveis como jaquetas, abrigos, suéters, hoodies, calças oversized da hora e calças skinny cheias de bossa. Divertido.
Em tempo: esta não é a primeira vez que se usa a franquia sci-fi mais famosa de Hollywood como fonte de criação de moda. Afinal, o assunto pode ser inesgotável e o apelo é inegável. No âmbito internacional, vale lembrar Balenciaga e, mais recentemente, Rodarte. E, no Brasil, em 2006 Marcela Virzi apresentou ótima coleção baseada no mesmo tema, durante um Fashion Rio.
Por fim, a Iódice dirige seu olhar para o aconchego da Mama África, pesquisando a tribo Woodabe, da Nigéria, e reproduzindo prints característicos dessa cultura em peças que nada têm de étnicas – o que seria de se esperar de uma coleção pensada no continente africano. Naturalmente, o enfoque é o universo urbano sexy da marca e daí os decotes em V exagerados, perfeitos para agradar aquela mulher que quer arrasar, torrando seu cartão de crédito nas lojas da grife. Mas, como é impossível pensar no berço da humanidade sem se entregar a algum apelo humanitário, o toque fica por conta dos bonitos tricôs feitos manualmente pelos presidiários da Penitenciária Professor Ariovaldo de Campos Pires, em Minas Gerais, em projeto de inclusão social. Nesta coleção estilizada, amarrações e drapeados evocam turbantes afro e os plissados são consequência da pesquisa na cestaria. Mas, entre bons vestidos e looks sensuais de blusa com calça, os acessórios ganham os holofotes, desde os óculos com armação de píton às sandálias de couro, passando pelas maxi bijus em resina com acabamento em couro e crochê. Ótimos para editoriais de moda, bons para serem absorvidos pela vida de verdade.
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