O negro e a construção da sociedade brasileira, a resistência, a identidade, o respeito à ancestralidade, às vozes que lutam dia a dia contra o preconceito racial ainda existente e por uma cultura com ações igualitárias em todos os âmbitos. O movimento Black Lives Matter fez o planeta parar este ano para questionar sobre pensamentos, sentimentos e atitudes racistas e causou uma revolução na forma de muitos verem o mundo, tirando muita gente da zona de conforto ao questionar a hegemonia da branquitude em todos os setores da vida. Um exemplo está na maneira como a História nos é contada. Afinal, quem pode dizer que conhece a trajetória dos negros afro-brasileiros, do momento em que foram arrancados do Continente Africano e trazidos como escravos para o Novo Mundo? Como se deu a adaptação desses povos de etnias tão diferentes em solo americano? Aliás, que povos eram esses? Infelizmente, as respostas para essas questões ainda são necessárias de serem repetidas mil vezes para que muitos respeitem o valor da vida independentemente da cor da pele.
A professora e figurinista Carla Costa, formada em Tecnologia de Produção do Vestuário pelo SENAI CETIQT e bacharel em Cenografia e Indumentária pela UniRio com mais de 15 anos de atuação na indústria do vestuário, é uma estudiosa do papel do negro no teatro brasileiro. Em suas pesquisas, Carla constatou a representação e o olhar estereotipado sobre o personagem negro sempre destacados pela condição de escravizado. “Eu queria estudar o personagem negro e a indumentária afro-brasileira e africana no palco do teatro brasileiro. Quando fiz um levantamento de pesquisas, encontrei um corpo escravizado, não vi a cultura africana e pouquíssimas vezes encontrei algo fora de um corpo estereotipado. Eu esperava encontrar algo que falasse da cultura daquele povo e da nossa cultura afro-brasileira, visto que nossa formação é alicerçada em três pilares: indígena, européia e africana. Mas não havia nada disso”, conta a pesquisadora, lembrando que em algumas peças de teatro do século 19 os negros, além de serem meros figurantes, sequer constam da lista de personagens.
DESPIR O OLHAR PARA VESTIR O PERSONAGEM NEGRO
Entre os destaques dos trabalhos de Carla sobre negritude estão “Arame Farpado”, “Itaúna”, “Meus Cabelos de Baobá”, “Corpo Minado” e “Mostre-me a Saída”. A professora e figurinista Carla Costa fez a leitura de um texto que resume o percurso da pesquisa. “Eu me sinto porta-voz de muitos alunos negros, principalmente na UniRio, mas sei que meu trabalho está ecoando junto com os trabalhos de outros pesquisadores que estão aliados com a causa negra no Brasil”.
“Preto sujo!” Ou simplesmente: “Olhe, um preto!” Cheguei ao mundo pretendendo descobrir um sentido nas coisas, minha alma cheia do desejo de estar na origem do mundo, e eis que me descubra objeto em meio a outros objetos. Enclausurado nessa objetividade esmagadora, implorei ao outro. Seu olhar libertador, percorrendo meu corpo subitamente livre de asperezas, me devolveu uma leveza que eu pensava perdida e, extraindo-me do mundo, me entregou ao mundo. Mas, no novo mundo, logo me choquei com a outra vertente, e o outro, através de gestos, atitudes, olhares, fixou-me como se fixa uma solução com um estabilizador. Fiquei furioso, exigi explicações… Não adiantou nada. Explodi. Aqui estão os farelos reunidos por um outro eu.” (Frantz Fanon, 1952, “Peles Negras, Máscaras Brancas”).
O olhar sobre a questão do negro no teatro começou quando ela foi convidada para assinar o figurino de um espetáculo de dança em Portugal sobre o tema de Burkina Faso. Foi quando eu descobri que era um país do continente africano. “Como de costume, a gente faz a pesquisa de personagens, tempo, espaço. Fiquei muito chocada com algumas imagens que vi, porque eram muitas coisas que eu não entendia. Depois de sete meses, voltei para o Rio de Janeiro muito inquieta com tudo isso e mergulhei na História da África”, comentou.
“Eu queria estudar a indumentária africana. Não dá para colocar Burkina Faso dentro de uma caixinha e dizer ‘Isso aqui é Burkina Faso e, a partir disso, vou construir a prancha de imagens e pensar na construção cênica do espetáculo’. São várias etnias dentro de um único país. Eu já estava no Brasil e queria estudar o personagem negro e a indumentária afro-brasileira e africana no palco do teatro brasileiro. Quando fiz um levantamento de pesquisas, encontrei um corpo escravizado, não vi a cultura africana e pouquíssimas vezes encontrei algo fora de um corpo estereotipado. Eu esperava encontrar algo que falasse da cultura dos povos africanos povo e da nossa cultura afro-brasileira, visto que nossa formação é alicerçada em três pilares: indígena, europeia e africana”.
Ela observa que sempre foi ao teatro e muito do que via era o negro sendo representado como escravizado, a mulher negra estigmatizada e reduzida a um corpo gostoso, sempre lugares de subalternidade, de empregada doméstica, enfim, nesses lugares. “Em 2017, comecei a pesquisa para tentar entender como é a representação do corpo negro no palco do teatro brasileiro. Só que eu não queria falar desse corpo escravizado. Não queria porque aquilo não representa a cultura do meu povo, da minha ancestralidade. Eu não queria tocar naquilo. Então, busquei outras referências. Em 2019, apresentei a minha dissertação, com o título Os Figurinos do Personagem Negro: A Projeção do Vestuário Cênico na Cena Contemporânea“.
O trabalho aborda a representação e o olhar estereotipado sobre o personagem negro no séculos 19. “Tive como auxílio de pesquisa “Um Negro na Dramaturgia”, de Miriam Garcia Mendes, um dos poucos livros do final do século 20 que davam atenção ao negro na dramaturgia. Eu peguei trechos onde o personagem negro aparece não como personagem, mas como figurante. Ela faz uma análise do texto de Martins Pena em que o negro surge “como figurante ou como menção ocasional em grandes flagrantes que ajudam a compor o grande painel da sociedade brasileira… Na lista de personagens de algumas de suas peças, encontramos a menção de: ‘negros’ (em ‘Juiz de Paz na Roça’), ‘mulato escravo de Tobias’ (Um Sertanejo na Corte’), ‘negros e moleques’ (A Noite de São João’) e ‘dois negros’ (‘O Cigano”)”. E acrescente que um ato, escrito em 1842, os negros aparecem como figurantes (preto de ganho, preto manauês, escravos da casa), não sendo sequer mencionado na lista de personagens.
“Eu busquei na fotografia o que ela chama de “preto de ganho”, preto manauês” e “escravos da casa”. Utilizo o livro da Sandra Sofia, “Negros no Estúdio do Fotógrafo”, em que analisa muitas fotografias do século 19 em que o negro é registrado. Não fico muito tempo na fotografia, porque não é o meu objeto de pesquisa, mas eu queria entender o vestuário desse personagem no século 19. Chamo de personagem porque, em falas, a Sandra apresenta o negro no estúdio vestindo roupas simplesmente para fazer uma foto.
A professora e figurinista nos conta que a Companhia Negra de Revista (1926) foi um dos primeiros movimentos para que o negro tomasse o seu lugar no palco, pois no século 19 aparecia somente como figurante no papel do escravizado ou em tipos. Alguns autores, porém, ainda não consideram uma companhia de revistas o que a gente entende por Teatro Negro.
Na realidade, o Teatro Experimental do Negro foi muito importante, principalmente do Rio de Janeiro, onde a companhia surgiu. “Ele se preocupa em alfabetizar os negros para que eles tomem, no palco, seu lugar de protagonista, lugares onde não fossem subalternos, para que representassem outros lugares que não a baba, a escrava, a velha (digo isso porque são termos registrados com o negro era tratado). A gente ainda tem isso, é como se ela fosse da família: a mulher negra servindo as famílias, a mulata, a mulata sensual, o negro malandro, o corpo escravizado. “E muito do que foi visto no Teatro Experimental do Negro foi a luta de Abdias do Nascimento, de Léa Garcia, Ruth de Souza, entre os nomes envolvidos nesse trabalho maravilhoso”, observa Carla.
O que a gente entende hoje como Teatro Negro? “É a cultura do negro como norteadora, a narrativa principal, o tema, o foco do espetáculo. É a cultura afro-brasileira, africana, em que o negro é o protagonista e está envolvido na narrativa. E não a cultura do branco – principalmente a cultura branca hegemônica que a gente sempre estudou na escola de teatro. A partir disso, na minha pesquisa priorizo espetáculos nos quais o negro não esteja dentro desse corpo estereotipado escravizado e afins. Eu busco, também, trazer espetáculos em que a ficha técnica seja composta de pelo menos 70% por pessoas negras”.
A professora mergulhou nos espetáculos “Exu-a boca do universo”, “Contos Negreiros do Brasil” e “Iyá Ilu”, uma performance afro-futurista. E assim, ela na dissertação “Cultura Africana e Afro-Brasileira nos Cursos de Indumentária” aborda também dos cursos de Moda e de Arte, da importância da Lei 10639. “Hoje falo para uma escola de moda da responsabilidade que temos ao lançar uma imagem no mercado, seja na passarela, seja no teatro, seja na televisão. A gente estuda isso. É o que eu chamo de despir esse olhar eurocentrado e buscar outros lugares”.
A conclusão é “precisamos aprender e reeducar o nosso olhar. Tirar todas essas mazelas que foram postas para vestir esse corpo negro da cultura afro-brasileira e africana, que não são culturas de corpos escravos. Eu hoje volto para o meu doutorado, onde tem um laboratório junto com outros alunos da UniRio discutindo que corpo é esse que a gente está vestindo para o palco, para o teatro contemporâneo?” Gosto muito de deixar essa frase: “Até que os leões contem a sua história, as histórias de caça sempre glorificarão o caçador”.
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