Viver, vivenciar, respirar a moda e os novos rumos de toda a cadeia produtiva se transformou em um grande laboratório de saberes e ações. Recentemente, o SENAI CETIQT se uniu à Laudes Foundation no projeto ‘Moda Circular – O Início de um Novo Ciclo para a Indústria da Moda’. A parceria tem colaborado com as indústrias do setor têxtil e de confecções na implantação de práticas como sustentabilidade e economia circular, com a utilização de processos de fabricação e matérias-primas que regeneram a natureza + uso consciente de recursos, ressignificando a produção. O SENAI CETIQT tem promovido uma série de lives importantíssimas proporcionando considerações sobre as políticas das empresas ecologicamente responsáveis, o conceito e a prática de uma economia circular e o protagonismo do consumidor cada vez mais engajado. A moda circular possibilita a criação de capital econômico, natural e social para favorecer o surgimento de novas oportunidades de negócios, inovação em processos e desaceleração das mudanças climáticas. No modelo circular, os fluxos são inspirados na natureza para gerar resiliência, pensados de maneira sistêmica, contribuindo na promoção de novos elos na cadeia produtiva.
A mais recente live ganhou o título ‘Revoada: Uma Prática de Design Vital’ e abordou o case da label Revoada das amigas gaúchas Itiana Pasetti, empreendedora social, biodesigner de moda regenerativa, e a publicitária Adriana Tubino. Como começaram a arregaçar as mangas? Produzindo até mesmo vestíveis de proteção em náilon de guarda-chuvas modelados com resíduo zero e encontrados nas unidades de triagem de lixo seco de Porto Alegre e região até de câmaras de pneus descartados em borracharias. Hoje, a Revoada presta consultoria para grandes empresas na transformação através da metodologia Design Vital, que cria produtos regenerativos, e apoia cooperativas para o desenvolvimento dos produtos.
Eu fique completamente apaixonada com o que vi sobre elas no videomanifesto Água, produzido pela Trama Afetiva, plataforma de estudos e soluções criativas para a indústria a partir da ressignificação de resíduos têxteis, que lançou luz sobre o atual contexto que a pandemia tem nos conduzido. “Um processo constante de reflexão sobre o que podemos imaginar agora no presente que possa ter um impacto positivo na construção de um novo lugar que venha a se configurar no pós-presente”, como frisa o diretor-criativo Jackson Araujo.
Itiana Pasetti começou a contar sobre o trabalho desenvolvido pela Revoado nos proporcionando uma viagem disruptiva do mainstream. “Vou contar onde tudo isso começou. Eu venho da moda tradicional e percebi, depois de anos como estilista da grande indústria, o quanto isso não me completava, mas, ao mesmo tempo, como eu gostava de moda e queria seguir um novo caminho. Descobri a moda sustentável como um norte para me destravar e voar. Em 2010, eu e Adriana Tubino, que tem uma trajetória na publicidade, pensamos: “Vamos empreender juntas algo que esteja dentro da moda, mas que não seja mais uma ecobag. Que tenha design, estilo, que seja desejável e permeada pela sustentabilidade. Depois de três anos de gestação, nós colocamos a Revoada no mundo. Ela nasceu trabalhando, basicamente, com duas matérias primas: o náilon de guarda-chuva e a câmera de pneu. Olhando para o nosso lixo, ali poderia estar uma fonte criativa para os nossos produtos”.
Vamos aos números? em sete anos de atividade, a Revoada já retirou 17 toneladas de câmaras de pneu do meio ambiente, reutilizou 16 mil unidades de guarda-chuvas e gerou trabalho e renda para 500 famílias e impactando mais de 100 mil pessoas através das redes e dos projetos. . “O objetivo foi olhar para aquilo que já existe no mundo, que está poluindo, que foi produzido e está sendo descartado. Para nossa surpresa, quando a gente decidiu usar esses dois materiais, depois de uma longa pesquisa, descobrimos que existiam em abundância, jogados por aí, e mergulhamos na reinvenção”.
“Tudo dentro do processo da economia circular, de um fluxo técnico em que temos o resíduo como nutriente. Aqui, na Revoada, nós gostamos de dizer que o resíduo é um insumo”
Para desenvolver produtos a partir do lixo, a dupla entendeu que precisava gerar uma cadeia produtiva. “Construímos esta nossa cadeia step-by-step: da geração da matéria-prima à elaboração dos produtos passando pela higienização. A economia circular permeia todo o processo desde a captação do material oriundo do lixo e das borracharias”, observa Itiana Pasetti.
“Com o tempo, nós percebemos o percurso que fazíamos gerava muito CO2. Então, buscamos um lugar, um ponto de coleta, no qual todas as borracharias estavam localizadas. E foi assim que descobrimos a Reciclanip, entidade gestora do sistema de Logística Reversa de pneus inservíveis. Eles fazem todo o trabalho da coleta aqui no Sul e a gente compra direto. Não precisamos fazer todo o circuito e gerar tanto excedente de CO2. A sustentabilidade também está em olhar com atenção cada degrau da cadeia para se aperfeiçoar sempre”, nos conta a biodesigner.
Já o guarda-chuva, em Porto Alegre, pode ser adquirido em 16 unidades de triagem e 100% das ruas são atendidas por coleta seletiva. “Indo de unidade em unidade, conversando, contando a nossa história, o nosso projeto, a gente conseguiu estabelecer uma parceria e fazer as compras desse material”, revela, acrescentando que na época, elas não tinham parâmetros para fazer a precificação. Pensando junto com os coletores, encontram um preço justo para a unidade de guarda-chuva. “Gera assim, um incremento financeiro bem grande para os recicladores. Para você ter uma ideia, eles vendiam um quilo de garrafa PET a R$ 0,18. Nós propusemos pagar R$ 0,50 por náilon de guarda-chuva e, geralmente, compramos entre mil e duas mil unidades. Realmente é um incremento grande na renda mensal dos recicladores”, afirma Itiana Pasetti. A higienização do material é feita em uma lavanderia industrial, que capta água da chuva, tratamento da água e uma série de benefícios. Sinônimo de colaborar com o meio ambiente.
“Como não tínhamos mais a mão de obra social na lavagem dos guarda-chuvas, focamos na mão de obra social na confecção dos produtos. Há muitos anos temos trabalhado com toda uma cadeia de mão de obra de impacto na Grande Porto Alegre e também na periferia da capital gaúcha, com cooperativas de mão de obra social”. Em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, elas fazem parceria com pequenos ateliês que se formaram por conta das muitas fábricas que quebraram ao longo dos anos. Eram fábricas que trabalhavam com couro. Muitas pessoas herdaram maquinários de couro e abriram pequenos ateliês e negócios. “Hoje produzimos jaquetas, mochilas Weekend Bags, todas feitas com os dois materiais que são os queridinhos. Aos poucos, a gente vem introduzindo outros resíduos para focar também na nossa consultoria”, frisa.
Nos editorias da label, a diversidade de modelos é tácita. Itiana Pasetti relata que “a gente busca trazer amigos, clientes, parceiros etc, para deixar a cara da marca mais real do que contratar modelos, fazer uma coisa mais engessada e dura. Essa sempre foi a cara que a gente gostou de dar para os nossos ensaios. Também é legal dizer que, desde o início da marca, a gente foi agregando alguns produtos e descontinuando outros”.
“Nunca trabalhamos com o convencional na moda, com lançamentos ou cores. Buscamos ter produtos atemporais que atendam um público plural, sem aquele clichê de “público-alvo”. São pessoas que pensam na sustentabilidade, estão antenadas com o mundo regenerativo e apoiam marcas que falam e fazem”.
“Estabelecemos que uma forma saudável e sustentável de venda para nós seriam os lotes especiais, que são abertos a cada seis meses. Agora estamos reavaliando para entender como vai ficar a sazonalidade desses lotes. Nós temos uma lista em que as pessoas se inscrevem para fazer as compras e, quando sai o lote, a gente avisa. Os clientes podem, então, efetivar a sua compra. A gente produz o que foi vendido. Isso não gera estoque nem excedente de matéria-prima. Também nos permite não depender de um fluxo de caixa para alimentar o estoque, que é um grande gargalo na moda”.
A Revoada, eventualmente, faz collabs para lançar produtos com diferentes matérias-primas. “Pousamos no mundo para reinventar sua empresa de duas formas: com os gifts, brindes corporativos, ou com a nossa consultoria, a Design Vital. Quando a gente abriu a Revoada, um amigo do Rio começou a citar a Revoada como case de Economia Circular. Em 2015, tomamos consciência do que era realmente Economia Circular, do que era o que a gente vinha fazendo. Foi aí que desenvolvemos uma mandala chamada Design Vital, com base não apenas no nosso trabalho, mas também para a consultoria que prestamos hoje”, explica.
Tudo parte de um posicionamento sustentável. A dupla auxilia o cliente a entender qual é o posicionamento sustentável, caso ele não tenha. Elas estudam esse posicionamento para atender em três frentes: a criação de ecoprodutos, processos produtivos circulares e a relação de consumo consciente. “Hoje nós temos N formas de consumir, não só vendendo, como alugando, trocando, emprestando, participando de clubes de assinatura – enfim, a forma de consumir está muito ampla”.
A biodesigner contou sobre o projeto realizado com a Toyota. “Em 2019, a montadora nos chamou para fazer parte do projeto ReTornar. Fomos convidadas para ampliar o número de resíduos que a Toyota já vinha utilizando; olhar para uma cadeia de mão-de-obra social no entorno das fábricas e entender como auxiliar as costureiras; e para ampliar ainda mais a destinação dos resíduos. Fizemos uma decupagem de quais eram os resíduos e onde poderiam ser usados. O resultado foi demais. Conseguimos aumentar em 166% os resíduos utilizados. Hoje, a Toyota gera em torno de 50 toneladas de resíduos por mês. Não conseguimos destinar 100% desses resíduos, mas uma boa parte nós conseguimos destinar para a geração de produtos sendo produzidos por essa mão-de-obra social. Desenvolvemos uma linha de 17 produtos para as cooperativas venderem como brindes corporativos para outras empresas do entorno. Muitas indústrias se tornaram clientes dessas cooperativas”.
Portanto, a Revoada agrega quem já tem uma visão mais holística da vida e do mundo. “Para trabalhar com sustentabilidade, as pessoas que se vão aderindo à prática têm um olhar mais ampliado. Além disso, o que a gente vem sentindo é o que o mercado está exigindo. E também está sendo cobrado pelo conselho das grandes empresas e do varejo. Mas estamos avançando e com as universidades introduzindo o tema no currículo”, conclui Itiana Pasetti.
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