Black Lives Matter. Vidas Negras Importam. Três palavras simples, corriqueiras, cotidianas. Juntas e ressignificadas têm poder para mudar o mundo. O movimento #BlackLivesMatter, que surgiu em 2013, se intensificou este ano após a morte do afro-americano George Floyd, em Minneapolis, em maio, assassinado por um policial branco que o sufocou com o joelho e as imagens ganharam o planeta. Protestos contra o racismo explodiram em cidades americanas e fora dos Estados Unidos. Muitos conhecem o movimento, mas ainda há dúvidas sobre o que há por trás dele. Por que surgiu nos Estados Unidos? Que acontecimentos da História americana forjaram o caminho que levaria à maior manifestação antirracista das últimas décadas?
Para levantar estas e outras questões, o SENAI CETIQT promoveu o evento “Africanidades”. e uma das palestras super interessantes foi justamente “Entendendo o Movimento Vidas Negras Importam”, apresentada pela professora Heloisa Helena de Oliveira Santos, do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFFRJ), coordenadora do grupo de pesquisa Direitos Humanos, Cultura e Identidade, em parceria com a professora mestre Lívia Paiva, pesquisadora nas áreas de Relações Étnico-Raciais na Sociedade Brasileira, Feminismo Negro e Descolonialidades em Perspectivas Interseccional. A mediação ficou por conta da professora Cristiane Santos, do SENAI CETIQT.
“O SENAI CETIQT funciona como indutor tecnológico para enfrentar os desafios da Indústria Têxtil e de Confecção, atuais e futuros, além de desenvolver atividades para ajudar o trabalho e a indústria a ultrapassar possíveis obstáculos. O projeto “Africanidades” foi montado pensando em todas essas questões. E nossa primeira palestra explica o movimento Black Lives Matter, um assunto sobre o qual todos têm a obrigação de estar informados”, disparou a professora Cristiane Santos, abrindo os trabalhos. A palestrante, professora Heloisa Santos, que estudou no SENAI CETIQT, emendou: “Falar sobre o BLM é essencial. O racismo é um problema global. Mas quando o movimento começou, nos Estados Unidos, a gente ouviu muito coisas aqui como: ‘No Brasil não é assim’, ‘Por que os brasileiros não lutam da mesma maneira?’, ‘Por que não tem movimento negro no país?’. A gente precisa desmistificar essa ideia muito errada com urgência”.
“Hoje, eu pesquiso relações étnico-raciais no Brasil, na moda a partir de uma perspectiva decolonial. Seria, basicamente, pensar a moda a partir de outros conceitos, a partir de outra epistemologia, questões e metodologia. Falar sobre o movimento Black Lives Matter é interessante porque mexeu com o mundo inteiro”, observa Heloisa Santos.
Precisamos entender o que é o racismo nos Estados Unidos – “e para isso eu tenho que falar sobre o que foi a escravidão” – relacionando muito com a realidade brasileira. “A gente precisa desmistificar a ideia de que não há um movimento negro no Brasil. Essa é uma ideia muito errada e prejudica muito o movimento no nosso país. Precisamos entender, por exemplo, o que foi a escravidão nos Estados Unidos e quais são as diferenças entre a escravidão lá e aqui no Brasil”, diz Heloisa.
Ela observou que, como o Brasil, os Estados Unidos têm um longo histórico de escravidão e também são uma sociedade colonizada. A gente aprende cedo que lá foi uma colônia de povoamento. Isso é interessante porque houve uma migração europeia branca enorme. “Mas é uma lenda achar que não houve um sistema de produção agrícola escravocrata. Esse sistema chamava-se plantation especialmente no Sul”, lembra.
Num primeiro momento, a imigração foi majoritariamente de pessoas brancas europeias. “A partir do século 17, porém, aconteceu um sequestro de pessoas na África e levadas à força para os Estados Unidos. Esses sequestrados se concentraram mais intensamente no Sul do país. Os Estados Unidos se tornam independentes ainda no século 18, em 1776, e só vai abolir a escravidão em 1863, quase 100 anos depois”, conta. No Brasil, nossa Independência ocorreu em 1822 e em 1888 tivemos a Abolição. “Na época da Abolição americana, havia cerca de 4 milhões de negros escravizados no país. Aí já temos uma primeira diferença entre Brasil e Estados Unidos: em razão de ter sido colônia de povoamento, os brancos sempre foram maioria. O que é muito diferente do Brasil, onde desde o período colonial a maioria é de negros”, observa.
E Heloisa acrescenta: “Ainda hoje, os negros são minoria nos Estados Unidos. Segundo o último censo realizado nos Estados Unidos, cerca de 13% da população era negra. Tem uma população grande de hispânicos e outras etnias, mas os brancos ainda são maioria. Isso está mudando: a miscigenação e a imigração estão aumentando e o número de brancos está diminuindo. Ainda assim, os brancos são mais de 50%. No Brasil, os negros sempre foram entre 50 e 60% da população. Hoje somos 52%, por aí. Sempre foi assim durante a maior parte do período colonial e ainda hoje. As pessoas sempre tentaram se embranquecer e isso interferiu nos nossos dados, mas, em geral, a população sempre foi de maioria negra, enquanto os Estados Unidos sempre tiveram maioria branca. Isso tem um impacto muito grande no modo como a escravidão aconteceu lá”.
Logo após a independência dos Estados Unidos, em 1776, começou um grande problema. O Norte já tinha uma indústria desenvolvida com pessoas livres que recebiam salários. No entanto, o Sul a agricultura ainda era majoritária, o que tornava a escravidão interessante para muitos, já que era um trabalho gratuito e o lucro do senhor era absurdo. “Havia um problema nos Estados Unidos: o Norte precisava da libertação dos escravos por conta de interesses econômicos, enquanto o Sul queria manutenção da escravidão pelo mesmo motivo. O país estava em conflito. O que é muito diferente do Brasil, que permaneceu agrícola até o início do século 20. Em grande parte, o Brasil ainda é um país agrícola e as commodities são uma das nossas principais exportações, se não forem a principal”, analisa a professora.
Nos Estados Unidos o confronto foi tão sério que levou à Guerra Civil Norte-Americana, a Guerra de Secessão. Foi uma tentativa de separação entre o Norte e o Sul. Os estados do Sul chegaram a formar os Estados Confederados do Sul. O mais curioso e cruel é que muitos negros foram obrigados a lutar pelo Sul. “É assustador, mas foi exatamente o que aconteceu. Foi criada até uma bandeira para representar os estados confederados. O movimento segregacionista branco é fortíssimo e ainda há muita gente que usa essa bandeira até hoje”, revela.
A guerra civil foi perdida pelo Sul, mas isso não significou o fim do racismo e da motivação racial. “O Movimento Confederado perde, mas isso não significa o fim do tratamento racial opressor e segregacionista no país. Os Estados Unidos são uma federação no sentido mais amplo do termo. Existem leis que valem para todo o país e tem as legislações locais. Apesar de terem criado uma lei afirmando que negros e brancos eram iguais, diversos estados do Sul mantiveram leis profundamente segregacionistas. Essas leis ficaram conhecidas popularmente como Leis Jim Crow, um termo pejorativo usado para falar dos negros. Cada estado, dependendo da lógica racista, era mais ou menos violento. Havia leis que iam de não poder votar a permitir o assassinato de negros em vias públicas. As Leis Jim Crow envolvem tudo que já ouvimos sobre racismo nos Estados Unidos: segregação em ônibus, bebedouros para negros e brancos, espaços para negros e brancos, bairros para negros e brancos e por aí vai”, comenta Heloisa Santos.
Em 1863 foi decretado o fim da escravidão nos Estados Unidos, mas alguns estados demoraram mais. “Nessa época, por volta de 1865, surge o primeiro grande movimento supremacista branco, a famosa KKK, a Ku Klux Klan. “O movimento supremacista branco é um movimento extremista terrorista (é importante chamar as coisas pelo nome). Há uma discussão forte nos Estados Unidos, porque os brancos chamam os islâmicos de terroristas e não se chamam de terroristas, embora os principais ataques a igrejas e escolas sejam feitos atualmente por supremacistas”, pontua.
Já vemos diferenças em relação ao Brasil. O nosso país teve a libertação da escravidão por pressões internas. “É falso que os negros não lutaram para acabar com a escravidão. Havia movimentos abolicionistas de pessoas brancas e negras lutando contra a escravidão. O fim da escravidão no Brasil também teve um motivador externo muito forte: a pressão da Inglaterra para que tivéssemos um mercado consumidor” relembra.
Os processos Estados Unidos e Brasil foram muitos diferentes e a professora continua sua linha de pensamento que faz com que a gente não tire a concentração um minuto da live. “Se aboliu a escravidão e criou-se um movimento da vinda de italianos e alemães para trabalhar. O governo distribuiu terras para essas pessoas em uma das primeiras ações segregacionistas realizados no Brasil. E não deu terras para os escravizados recém-libertos e com experiência no campo. Ou seja, pessoas que poderiam ter plantado em todo o Brasil. Hoje, teríamos uma classe média e uma elite negras. O país seria outro. Ao invés de fazer isso, optou-se por embranquecer a população na marra: vamos importar brancos e fingir que os negros não existem. Vamos empurrar eles para o subúrbio e fingir que não existem. Isso aconteceu muito no Rio de Janeiro. Vamos deixá-los à própria sorte, vai que morrem”.
Além disso, o Brasil também teve um movimento eugênico muito forte. Tivemos, inclusive, concursos eugênicos. O Brasil pós-abolição do século 19 era um terreno fértil para os disparates da eugenia. “O Brasil fez concursos de seleção racial. Buscou crianças brancas com os melhores genes para melhorar a raça brasileira. É importante desconstruir o mito de Brasil não-racista. Aqui foi diferente dos Estados Unidos. Não houve guerra na elite brasileira como na norte-americana. Quando aconteceu a Secessão, no Brasil a elite estava fechada em liberar a escravidão, vamos pegar essa mão de obra, a gente divide, tem muita terra, não vai ser um problema. Mas terra para negro a gente não dá, porque essa galera tem que sumir. No Brasil não existia o perfil industrial, apenas o agrícola”.
Nos Estados Unidos, as Leis Jim Crow começaram a pressionar muito. Os negros eram permanentemente mortos e a lei permitia isso. “Havia uma lei chamada Sundown: após o sol se pôr, se um negro andasse na rua ele podia ser acusado de um crime e morto. Enforcado, esquartejado. O Estado permitia isso. A violência era direta e explícita. Aquela minoria de negros precisou se organizar para não ser completamente exterminada. No Brasil, como os negros eram a maioria, o extermínio por fome, morte ou abandono do Estado. Lá era e execução sumária. Aqui foi abandono. O que, na minha percepção, não é menos violento, é só uma forma diferente de construir a violência”.
A pressão de morte nos Estados Unidos acabou por fortalecer, já no século 20, diversos movimentos e nos anos 60, quando as Leis Jim Crow ainda eram aplicadas, surgem os movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos. Enquanto nos Estados Unidos dos anos 50 e 60 aconteciam os movimentos pelos Direito Civis por causa do massacre dos negros.
A professora faz uma pausa para lembrar que o Hino à República do Brasil, que foi declarada em 1889, diz o seguinte:
“Nós nem cremos que escravos outrora / Tenha havido em tão nobre país / Hoje o rubro lampejo da aurora / Acha irmãos, não tiranos hostis / Somos todos iguais / Ao futuro saberemos unidos levar”
“O hino fala em outrora se referindo a um ano antes. Desde o início, o Brasil fingiu que não houve escravidão. Tivemos uma intelectualidade que planejou um apagamento da história da escravidão. Escritores e intelectuais criam o que a é conhecido como mito da democracia racial: no Brasil nunca houve racismo, porque negros, brancos e indígenas viviam numa miscigenação muito intensa. Nos Estados Unidos, sim, havia até leis proibindo casamento inter-racial”, pontua Heloisa.
A professora lembra ainda que, enquanto estavam em curso as Leis Jim Crow de segregação racial nos Estados Unidos, havia no Brasil a construção do mito da igualdade. “Já nos anos 60, quando lá havia o movimento pelos Direitos Civis, a gente tinha uma ditadura no Brasil. Embora gostam de dizer que a ditadura só matou brancos, eis mais uma coisa que a gente precisa desconstruir: a ditadura matou muitos negros, especialmente no Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense”.
“Essa redução da desigualdade aconteceu muito lentamente no Brasil, mas, para se ter uma ideia da diferença, os Estados Unidos já tiveram um presidente negro com uma população de 13% de negros”, diz a professora, acrescentando: “A gente aqui vive no mito de que não existe racismo, enquanto lá todo mundo sabe que tem, sabe que a polícia mata as populações não-brancas (indígenas e negros). Todo mundo está consciente disso e pode falar a respeito”.
“Embora sejam 13% da população americana, os negros representam 26% dos mortos pela polícia, o dobro em termos estatísticos. Os americanos falam às claras sobre racismo e que a polícia é, não apenas assassina, como é brutal. O assassinato do George Floyd tornou-se o estopim do Black Lives Matter este ano, porque a gente viu em câmera lenta sua execução brutal. Aqui, a execução sumária acontece todos os dias nas favelas. Muitos brasileiros acham que os negros são mais violentos e merecem morrer. Os americanos dizem “Não, a gente não merece morrer. Temos uma polícia racista, um Estado racista e tem que lutar contra isso”. No Brasil a gente nega essa verdade”.
“Isso acabou tomando proporções gigantescas. O racismo é um problema mundial. Por quê? A colonização que escravizou, que dividiu, que imperializou América, Ásia e África, que racializou todos os povos não-brancos do mundo, exterminou populações ao redor do planeta. A ideologia racista se espalhou por todos os cantos. Como decorrência disso, as pessoas não-brancas do mundo todo até hoje são segregadas e têm os piores empregos, os piores salários e a pior educação. E são mortas ao redor do mundo”.
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