Faz tempo que a gente vem falando com você, leitor, sobre os têxteis técnicos funcionais e inteligentes. A funcionalização têxtil, que envolve tecnologias sofisticadíssimas, tem evoluído a passos largos e, cada vez mais, caminha para ser acessível ao consumidor, o grande protagonista, que já tem contado com os wearables, roupas confeccionadas com têxteis que protegem de raios ultravioleta, monitoram batimentos cardíacos, encapsulam cosméticos, promovem a bioestimulação (melhora na circulação, produção de colágeno e redução de dores musculares), contêm ações auto-limpantes e anti-transpirantes, função antimicrobiana, repelem insetos, retardam chamas… e são capazes de regular a temperatura corporal, eliminando os efeitos do calor e do frio. É sobre esta última funcionalidade que mergulharemos aqui.
Sempre atenta às novidades do Setor Têxtil e de Confecção, a “Revista Design, Inovação e Gestão Estratégica” (“REDIGE”) foi criada há pouco mais de dez anos pelo SENAI CETIQT para a disseminação de conhecimentos desenvolvidos por profissionais das instituições, como também enquanto fonte de referência aos profissionais de diversas áreas. São informações importantíssimas para os players das indústrias sobre as tecnologias mais vanguardistas. A ideia é incentivá-los à transição para a Quarta Revolução Industrial e, com isso, promover as práticas sustentáveis e redução de impactos ambientas. A quarta edição de “REDIGE”, que já está online gratuitamente, traz o artigo “Aplicação dos Materiais de Mudança de Fase em Roupas Inteligentes”, escrito a seis mãos por Barbara Poci e Dara Wash (Årad), docente e bacharelando em Design de Moda do SENAI CETIQT, respectivamente; e pelo aluno de Engenharia Química Rafael Araujo, da mesma instituição. No artigo, os autores destacam os materiais de mudança de fase ou PCMs (Phase Change Materials), que, incorporados aos têxteis, podem agir como reguladores térmicos, controlando a temperatura corporal.
O artigo nos mostra que os têxteis inteligentes surgiram da necessidade de têxteis funcionais passivos exercerem um comportamento ativo, interativo e inteligente, ou seja, materiais que pudessem sentir um estímulo de origem mecânica, química, térmica, elétricas ou magnética no seu ambiente, e atribuir uma “reação que provocasse algum tipo de alteração em suas características como por exemplo, condução elétrica, condutividade térmica ou mudança de cor. Nos últimos anos, tem se investigado têxteis inteligentes com habilidades de ‘auto-funcionamento’, como a auto-limpeza – capaz de degradar partículas de sujeira e substâncias orgânicas, removendo manchas, bactérias ou odores; a auto-cura – em que superfícies rasgadas podem reparar-se automaticamente, prolongando a vida útil dos tecidos; e a auto-regulação térmica – que responde a mudanças de temperatura, proporcionando conforto térmico.
“O termo ‘têxteis inteligentes’, derivado do conceito de Smart Materials (materiais inteligentes), foi utilizado pela primeira vez em 1989 no Japão. O comportamento inteligente é característico de materiais que podem sentir um estímulo externo tais como mudança de temperatura, luminosidade, pressão e atribuir uma reação de uma forma ativa, interativa e geralmente reversível, ocasionando algum tipo de alteração em suas propriedades.
Segundo dados da Grand View Research, Inc., em 2018 o mercado global de têxteis inteligentes foi de US $ 878,9 milhões, a projeção é que se obtenha uma expansão de 30,4% até 2025 atingindo US $ 5,55 bilhões”.
“Com o surgimento dos Materiais de Mudança de Fase, no final dos anos 1980, as roupas que tradicionalmente proporcionavam conforto térmico a partir de materiais volumosos puderam ser integradas aos PCMs, melhorando o comportamento térmico independentemente da espessura e garantindo liberdade de movimentos para o usuário. Uma vez que a pressão e a umidade não afetam a funcionalidade do PCM, estas vestimentas permitem que o isolamento passivo reaja imediatamente às mudanças da temperatura ambiente e se adapte ao que caracteriza um material inteligente e ativo”.
Mas… o que são PCMs? Como podemos defini-los? Uma forma de começar a entendê-los é enxergá-los como termostatos microscópicos. São materiais que, ao serem incorporados aos tecidos, aumentam o efeito de frescor ou aquecimento. Este fenômeno é baseado na troca de fase dos materiais. Sua capacidade de gerenciamento do calor e do frio se deve ao poder de armazenar e liberar energia térmica.
O artigo nos mostra que “quando a temperatura ambiente diminui, os PCMs se solidificam e liberam quantidades de energia sob a forma de calor latente; ou seja, a mudança do estado líquido para o sólido aquece o corpo humano; inversamente, quando a temperatura aumenta, o material se funde e a mesma quantidade de energia é absorvida do ambiente. Esta mudança do estado sólido para o líquido quebra as ligações responsáveis pela estrutura sólida e a temperatura corporal tende a permanecer constante até a mudança completa de fase de líquido para sólido novamente”. São esses processos que fazem com que a temperatura do corpo permaneça constante, sem grandes trocas entre o ambiente e o corpo humano.
Um dos efeitos interessantes – e agradáveis – da aplicação de PCMs em uma roupa é no setor fitness. Quando o treino é muito intenso, os PCMs armazenam calor para o período de repouso. A sensação de frescor pós-exercício é gerada pelo suor em combinação com a circulação de ar. Já em um ambiente frio, eles mantêm o calor corporal, pois não estamos mais em movimento.
Este conforto térmico proporcionado pelo equilíbrio da temperatura corporal é essencial para proteger o corpo humano da hiper e da hipotermia. Somos seres homeotérmicos: independentemente do ambiente, a temperatura do nosso corpo se mantém relativamente constante graças a um sistema termorregulador que possibilita uma maior ou menor troca de calor com o meio. Ele atua nas glândulas sudoríparas, aumentando ou diminuindo a produção de suor: “A sensação de bem-estar depende do grau de atuação do sistema termorregulador na manutenção do equilíbrio térmico do corpo humano. Para que isso aconteça adequadamente, ocorre a eliminação do excesso de calor produzido em forma de suor para que a temperatura do corpo seja mantida constante. Quanto maior for o trabalho do sistema para manter nossa temperatura interna, maior será a sensação de desconforto”.
Quando a temperatura de qualquer parte do corpo varia entre 1,5°C e 3,0°C acima ou abaixo do ideal, não sentimos calor ou frio. No entanto, se a diferença for superior a ± 4,5°C, o desconforto se instala. A temperatura varia bastante nas diversas partes do corpo: de 34°C a 36,5°C na cabeça e no tronco, entre 27°C e 30°C nas coxas, de 25,5°C a 27,5°C nas mãos e nos pés. Há fatores externos que também influenciam, como as condições ambientais (frio/calor, vento, umidade), variação da temperatura ao longo do dia (mais fria de manhã, mais quente à noite), a atividade física e as características de cada um. E last, but not least, o artigo da “REDIGE” nos lembra que “a composição do tecido e o tipo de estrutura têxtil também influenciam significativamente na temperatura corporal e, consequentemente, no bem-estar e no conforto”.
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A eficácia dos PCMs, que podem ser usados em têxteis e roupas depende, principalmente, da diferença entre a temperatura corporal e a do ambiente. Um produto com janela térmica entre 19°C e 37°C contribui para uma regulação térmica localizada. “Os intervalos das temperaturas de liberação e absorção de calor devem ser condizentes com as necessidades de conforto térmico e devem reagir a alterações na temperatura do corpo e na camada exterior da peça de vestuário. Para aplicações têxteis, os PCMs devem apresentar uma faixa de mudança de fase em um intervalo de temperatura entre 18°C e 35°C”.
Estes materiais, porém, não podem ser incorporados diretamente na superfície têxtil. Devem ser contidos em cápsulas que os protegem de intempéries, umidade, oxigênio e luz, além de reduzirem a toxidade e a irritação na pele. A boa notícia é que existem tipos diferentes de matérias-primas utilizadas na produção dos PCMs, escolhidas de acordo com as características do ambiente em que irão atuar e o comportamento de cada material. Essas matérias-primas podem ser orgânicas (como os parafínicos e não-parafínicos), inorgânicas (sais hidratados e metálicos) ou, ainda, eutéticas (que combinam materiais orgânicos e inorgânicos).
Encapsular os PCMs é imprescindível. Isso significa envolvê-los em uma espécie de casca bastante fina, embora resistente. Assim, o material do núcleo pode mudar da fase sólida para a líquida e vice-versa sem se dispersar na primeira lavagem ou pelo corpo. “É uma das etapas críticas em que a integridade do invólucro e a adesão a superfície têxtil pode definir os níveis de conforto térmico que serão propiciados”. Outro objetivo é evitar a perda da energia absorvida e armazenada. Os materiais encapsulantes podem ser de origem natural ou sintética.
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Por muito tempo, o uso de PCMs ficou restrito a áreas muito técnicas. Em 1987, por exemplo, os engenheiros do Johnson Space Center começaram a buscar a colaboração da indústria privada para desenvolver PCMs para trajes espaciais produzidos com fibras têxteis resistentes ao calor e ao frio. A ideia era permitir que os astronautas da NASA, a agência espacial americana, enfrentassem sem problemas as temperaturas extremas nas atividades fora dos veículos espaciais, como reparos nas naves, por exemplo.
Atualmente, há roupas contendo PCMs que podem ser usadas tanto no verão como no inverno; tanto na prática de esportes radicais como no dia a dia. Bons exemplos desses usos cotidianos são vestuários e calçados de alta qualidade, roupas íntimas, meias, luvas, capacetes e roupa de cama: apesar do custo ainda ser bastante elevado, já existem opções “domésticas” de tecidos inteligentes. E os preços tendem a cair, como acontece com toda tecnologia nova. Outro exemplo vem da área médica, onde os PCMs são incorporados em juntas elásticas e suportes ortopédicos para diminuir a sensação de dor ou acelerar o processo curativo em articulações ou músculos. “Os PCMs também podem compor assentos de automóveis, cadeiras de escritórios e, atualmente, são usados em sistemas de armazenamento de calor em edifícios e controle de microclima ambiental na agricultura”.
Um case de extremo sucesso vem dos Estados Unidos. Fundada em 1990, a marca de têxteis Outlast nasceu para desenvolver tecnologias que protegessem os astronautas da NASA das brutais variações de temperatura no espaço sideral. De lá para cá, tornou-se líder mundial em materiais que mudam de fase (só para se ter uma ideia, entre 2002 e 2008, a empresa registrou um crescimento de incríveis 400%) e firmou parcerias com mais de 300 empresas de artigos esportivos, roupas de cama, vestuário e calçados, além de explorar os setores de móveis, embalagens, artigos militares e artigos médicos.
O tecido Outlast® é o único material que muda de fase que recebeu o selo de aprovação Certified Space Technology. A tecnologia, inicialmente desenvolvida para uso pela NASA, continua sendo desenvolvida e testada em relação à eficácia e segurança em diversas aplicações e para grandes marcas no mundo todo. A Outlast detém atualmente mais de 96 patentes relacionadas a materiais termoadaptáveis.
Os tecidos termorreguladores são usados para produção de agasalhos (incluindo jaquetas, chapéus e sapatos), roupas para ambientes externos (botas de inverno etc) e roupas de cama (colchões, cobertores, edredons e travesseiros). A Outlast também se vale de uma técnica conhecida como Infusão de matriz em fibras de viscose, que permite o controle térmico em tecidos mais leves e frescos, com textura semelhante à da seda, em blusas, roupas íntimas, vestidos, sleepwear e roupas de cama. A Timberland Company, a Dillard’s Inc. e a Marks & Spencer são apenas algumas das marcas conhecidas que usam a tecnologia Outlast.
O motivo para os preços de esses produtos ainda serem um tanto alto é que, apesar de existirem inúmeros materiais de mudança de fase encontrados facilmente na natureza, de custo baixo e muito mais sustentáveis, eles ainda são pouquíssimo utilizados, pois possuem menor eficiência em armazenamento de energia quando comparados aos compostos sintéticos. O que define a capacidade de controle térmico do tecido e, consequentemente, as sensações de frescor e aquecimento, dependendo das condições do ambiente externo, são a seleção adequada de métodos e técnicas de microencapsulação e a inserção no têxtil.
O mercado está esperando. Quem mais se habilita?
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