Você já pensou em trabalhar observando os looks das pessoas nas ruas? Ou, em tempos de pandemia, descobrir, pelas redes sociais, como as tribos urbanas estão se vestindo? “Caçar” gente com estilo, originalidade e que faz reverberar seus ideiais?. Simplificando bastante, esse é o job description das especialistas em tendências Giovana Cornacchia e Mariáh Cidral, à frente de um bureau de pesquisas de tendências e soluções para negócios de moda na capital francesa. Foi lá que elas criaram, no ano passado, a Clémentine Paris. A dupla apresentou a live “Street Style: Da Rua para as Passarelas”, iniciativa do SENAI CETIQT que contou com mediação de Christina Rangel, consultora do Instituto SENAI de Tecnologia Têxtil e de Confecção (IST) e responsável pelo desenvolvimento de conteúdo da plataforma Inova Moda Digital (IMD).
Na palestra, a dupla revela como identificar uma nova tendência, falam sobre como as classes mais abastadas deixaram de ditar tendências em detrimento da moda que vemos nas ruas, explicam a origem da sazonalidade na moda e muito mais. “Tendência é mais que uma inspiração: é uma disposição ou impulso que faz com que alguém aja, se comporte ou se desenvolva de uma determinada maneira. É um movimento sociológico, não está vinculada ao que você vai vestir amanhã. Ela tem vida própria”, dispara Giovana Cornacchia, que acredita também que “moda é a forma como a gente se mostra para o mundo, a primeira forma perceptível de expressão”.
E por que o street style? Mariáh Cidral responde: “É onde se vê a moda viva. Tem muita moda em passarelas, books, desfiles e revistas, mas é na rua que a vemos se transformar, tomar forma espontaneamente. Buscamos autenticidade: gente com looks de designer, feitos em casa ou comprados em brechós. Nós nos interessamos pela adaptabilidade, como conseguem se adaptar para determinada realidade. Somos coolhunters, ‘caçamos’ o que é cool, autêntico, novo, diferente. Queremos saber o que um determinado grupo está usando de diferente para sentirmos o que pode se tornar tendência, tanto para as passarelas quanto para as coleções. Para isso, tentamos entender o zeitgeist, o espírito do tempo”.
Em primeiro lugar é importante analisar a etimologia da palavra tendência, que vem do latim tendentia ou tendere e significa a evolução de algo em um sentido determinado. Tendência é a mudança de comportamento, pensamento, ambiente político e econômico. “Ela está dentro dessa esfera. É mais que um sentimento passageiro, uma intuição ou uma inspiração: é uma disposição ou impulso particular que faz com que alguém aja, se comporte ou se desenvolva de uma determinada maneira. Tendência é um movimento sociológico. Ela não está vinculada a que você vai vestir amanhã. Ela surge do todo e não pode ser controlado. Ela existe quer queira você ou não, pois tem vida própria”, analisa Giovana.
Pois foi justamente o espírito do tempo da época de Luis XIV, o Rei Sol, que consagrou definitivamente Paris como a capital mundial da moda. Antes dele, a honra cabia a Madri. O estilo era rígido e a cor principal era o preto, por transmitir sobriedade, por ser a cor da monarquia católica e por ser sinônimo de riqueza. “Por incrível que pareça, foi o ministro de Finanças de Luis XIV, Jean-Baptiste Colbert, quem estabeleceu a sazonalidade na moda. Ele trouxe uma inovação muito eficaz: a lei que ordenava que novos tecidos fossem lançados duas vezes por ano, para incentivar os súditos a comprar mais em uma programação previsível”, conta Giovana Cornacchia. “Ele dividiu o ano em duas estações: o verão, que começava entre meados e final de maio; e o inverno, sempre em 1º de novembro, dia de Todos-os-Santos. Foi assim que surgiram o que conhecemos hoje como coleções”. Era necessário ter as coleções criadas com os tecidos novos a cada semestre, para movimentar a economia, mas também era preciso difundir as novas modas.
Agradeçam a um homem de negócios pelo que a moda é hoje… Tem mais. Já naquela época, segundo nossas palestrantes, surgiu uma revista dedicada a moda, luxo e beleza, chamada “Mercure Galant” (“Mercúrio Elegante”, em tradução livre), publicação semanal e fundada por Jean Donneau de Visé em 1672. Para evitar tumultos e insurreições, o rei instituiu que “Mercure Galant” não trataria de outros temas. “A revista servia para deixar o povo a par das tendências e fazer girar a economia dos tecidos, mas também para abafar casos políticos”, observa Mariáh Cidral.
A especialista chama atenção para o modo como as diferentes classes sociais (nobreza, pequena nobreza, burguesia etc) tomavam conhecimento das tendências e as adotavam: “Na época de ‘Mercure Galant’, a difusão de tendências era feita de forma muito vertical. Elas vinham da corte e eram passadas para as classes restantes através da revista ilustrada. Tendências são passadas de um extrato social a outro”. Hoje acontece exatamente o contrário. A moda vem das ruas, dos movimentos, e vai para as passarelas, para o extrato mais alto da sociedade.
Isso começa a mudar nos anos 1960/1970, com os movimentos hippie e punk. “A teoria do Trickle trata de como as tendências são passadas entre extratos sociais diferentes. Trickle down dá a ideia de fonte, é quando se tem algo que desce como água de fonte. Trickle up é o contrário: a informação sobe para os outros extratos. Trickle down foi a primeira teoria. Trickle up é a teoria inovadora identificada por Paul Bloomberg nos anos 70, como nova forma de difusão das tendências a partir dos movimentos de rua”, conta Mariah Cidral.
Nesse ponto da live, Giovana Cornacchia acrescenta que é essencial falar de subcultura: “É dentro das subculturas que se difundem as tendências trickle up. O conceito de subcultura se refere a qualquer grupo, geralmente uma minoria, com comportamentos e crenças diferentes daqueles da cultura dominante em sua comunidade. Os integrantes desses grupos se reúnem por diversos motivos como, por exemplo, idade, etnia, identidade de gênero, preferências musicais ou estéticas”.
De acordo com as sócias, não é incomum que uma subcultura se defina em oposição à cultura dominante: “Nesse caso, temos a contracultura. A subcultura pode, por conta da oposição à cultura dominante, transformar-se em contracultura”, observa Giovana Cornacchia. “Os protestos da juventude contra a dominação cultural burguesa e o puritanismo sexual dos anos 70, com os hippies, e os punks são bons exemplos. A subcultura punk é tão rica que influenciou e continua influenciando”. Mariáh Cidral lembra que há controvérsias sobre a origem do punk: é americano ou inglês? “É mais comumente entendido que nasceu entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha como reação dos jovens ao paz e amor dos anos 60/70. Eles precisavam mostrar que estavam contra o governo e que precisavam de mudanças. E o punk não é só a moda, tem a música, a beleza, o movimento social. É tudo junto”.
Tudo misturado, ok, mas há como identificar elementos que marcam o zeitgeist da era punk. “As bandas Ramones, The Clash e Sex Pistols trouxeram um tipo de música diferente do que veio antes, com letras que não pregavam mais a alegria, a paz e o amor, a vida em comunidade. Eram letras mais curtas, com pancadas e batidas pesadas e rápidas”, explica Mariah Cidral. “As roupas tinham a ver com a impossibilidade de adquirir peças caras. E mostravam que eles não compactuavam com a moda vigente. A tal contracultura. Eram roupas muito “do it yourself” (“faça você mesmo”). Por isso havia muitas escritas, com spikes, rasgos. Tinha ainda a maquiagem, o cabelo, os slogans, os alfinetes, as estampas de tartan (xadrez). A maquiagem era pesada e o cabelo, chamativo, para causar impacto visual. Moda é informação. Não precisa falar, você traz consigo a informação que quer passar”.
No punk nós temos um casal icônico, Vivienne Westwood e Malcolm McLaren. Eles são considerados os pais dos punks, pois tiveram uma ascensão muito grande e são considerados percursores. Vivienne Westwood é considerada a mãe da moda punk, inclusive já ganhou prêmio duas vezes como melhor estilista e é sempre engajada pela defesa do meio ambiente. A forma de vestir do punk reflete o que ele pensa, o comportamento dele. Ainda hoje, os desfiles da Vivienne Westwood são sempre em formato de protesto. Ela está sempre de acordo com a essência do espírito punk.
A influência do punk é tão poderosa que ainda hoje percebem-se elementos daquela contracultura. Quem não se lembra das calças com rasgos na altura dos joelhos? Pois é… “Através de fotos de desfiles entre 1976 e 2010, vemos como estilistas foram introduzindo os códigos visuais do movimento punk na passarela. Em uma das primeiras coleções da Vivienne Westwood, de 1976, ela começa a introduzir o movimento para grandes marcas, que não sabiam o que estava acontecendo e nem entendiam o porquê. Ela teve abertura no mercado na moda e levou códigos visuais do movimento punk para as passarelas”, revela Mariáh Cidral.
A palestrante conta que logo em seguida, em 1978, Zandra Rhodes cria o glam punk, o glamuroso. A essa altura ela já transforma os códigos. O que se via nas ruas – roupas presas com alfinetes, peças rasgadas – ela transforma. O público começa a entender suas peças. “A curva de adesão às tendências começa lá embaixo, com as pessoas mais inovadoras, os artistas etc. À medida que o tempo passa, essa curva vai aumentando. Quando a massa adere ao estilo é porque a inspiração já foi muito bem entendida por boa parte do público”, teoriza Mariáh. “Zandra Rhodes tem um papel muito importante. Um vestido dela de 1978 inspirou Versace a fazer, na década de 90, os conhecidos vestidos cor de rosa presos apenas com alfinetes”.
Quem também bebeu na fonte de inspiração do punk foi Jean-Paul Gaultier, l’enfant terrible que quebrou paradigmas e tradições da cultura e da moda ao aderir aos códigos visuais da subcultura e do estilo punk. “Gaultier trouxe o coturno, os cabelos marcantes. Cada designer adere a uma tendência de acordo com o DNA da sua marca. Não adianta ter um DNA X e querer implementar uma subcultura Y. Tem que trazer os códigos de acordo com o DNA da marca”, aconselha Mariah.
O icônico casal formado pela estilista Vivienne Westwood e pelo estilista, produtor, artista visual, performer e músico Malcolm McLaren foi responsável por muitos desses códigos. “Vivienne Westwood é considerada a mãe da moda punk. Ainda hoje, os desfiles dela são em formato de protesto. Ela está sempre de acordo com a essência do espírito punk”, conta Giovana Cornacchia. Uma curiosidade: embora tivesse um apelo fashion muito forte em Londres no final dos anos 60, o movimento hippie não inspirou o casal. Mais uma vez, Giovana explica: “Eles tinham recordações dos anos 50. Na música, inspiravam-se em Elvis Presley e Chuck Berry, no cinema era James Dean e Marlon Brando. Quando Vivienne começou a fazer as roupas para McLaren, ela se voltou para o estilo dos Teddy Boys, subcultura daquela década composta por jovens ingleses tão rebeldes quanto os punks que se encontravam em cafés e pubs. Os Teddy Boys usavam casacos longos e ornados, com lapelas de veludo, inspirados na era eduardiana. Eles calçavam sapatos de camurça com solado muito grosso conhecidos como creepers e usavam topetes, que têm uma identidade visual muito forte”.
A consultora Giovana traz o bate-papo para os dias atuais, lembrando o Brexit, a controversa saída do Reino Unido da Comunidade Europeia: “Desde 2018 isso tem dividido os ingleses, causando sentimentos paradoxais e muito fortes. Nesse contexto de insatisfação e rebeldia, dá para perceber, através dos comportamentos e pela forma de vestir, que as pessoas não estão satisfeitas. É nesse momento que alguns estilistas trazem o espírito punk para suas coleções”. Mariáh Cidral acrescenta outras informações: “O cenário político mundial está muito polarizado e temos uma crise climática que está mais evidente a cada dia. Além disso, estamos passando por uma crise sanitária ameaçadora. O sentimento de revolta e inconformismo do jovem dos anos 70 volta com força. Por que alguns elementos do punk estão voltando, mais uma vez, às passarelas? Porque representam rebeldia, inconformismo, quebra de paradigmas, ir contra o sistema, não querer se adaptar dentro da caixa”.
Já em 2018, Kenzo traz alguns desses elementos: ou é o cabelo, ou é o styling, as meias… Também em 2018, Moschino usou tags, palavras coladas na roupa, sempre querendo expressar muito sem falar vocalmente. É um protesto na sua roupa. A Monse usou um alfinete enorme, um dos símbolos do punk, em 2020. Usou, também, meia arrastão e coturno. Dries Van Noten usou maquiagem, cabelo, couro, tartan. Veja que cada designer vai trabalhando de acordo com o DNA da sua marca. Mas, em determinado momento, todos trazem o zeitgeist.
Para a nossa sorte, a rebeldia não se volta apenas para coisas tão sérias e vetustas como governos e instituições: também podemos ser rebeldes no dia a dia. “É quando tomamos atiudes do tipo ‘Vou adotar um certo tipo de dieta’, ‘Vou usar roupas só de uma procedência’, ‘Não vou comer tal coisa’. Esses movimentos chegaram para quebrar a cultura e transformá-la. No ano passado, voltou o do it yourself, código visual muito forte dentro do movimento punk. Voltou por conta da pandemia, pois todo mundo teve que resolver problemas sem sair de casa. Os designers se viram sem muito material e precisaram se virar, na maioria das vezes, usando tecidos que já tinham, remendando, fazendo patchwork”, revela Mariáh Cidral.
Por falar em quarentena, como se observa o street style em tempos de pandemia? “Pelos looks do dia no Instagram, dá identificar o que cada tribo está usando, pois os seguidores compartilham fotos e vídeos”, indica Mariah.
Giovana Cornacchia encerra a palestra com alguns conselhos úteis: “É importante prestar atenção no street style para identificar está se usando nas ruas e se vale a pena trazer para a sua marca. Se você for coolhunter, se vale trazer para o seu caderno de tendências. O street style é orgânico, é uma manifestação natural das ruas. As pessoas não se fantasiam. Se estão usando aquilo é porque têm uma razão”.
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