A conexão do SENAI CETIQT com a Semana Fashion Revolution 2022 enfatizou uma série de mudanças nas formas de produzir e consumir moda no país. O movimento global Fashion Revolution por uma indústria da moda limpa, segura, justa, transparente e responsável teve início em memória das vítimas do desabamento do edifício Rana Plaza, em em Dhaka, Bangladesh. Em 24 de abril de 2013, morreram 1.134 pessoas, sendo a maioria trabalhadores de confecções que forneciam para grandes marcas do varejo mundial. A partir de então, a hashtag #QuemFezMinhasRoupas é usada tanto com a intenção de trazer visibilidade aos trabalhadores da cadeia produtiva da moda como a consciência do consumidor ao comprar um produto e saber com total transparência como foi produzido.
Importantíssimo comentar aqui a live “Upcycling: Uma Realidade no Mundo da Moda”, realizada nos canais digitais do SENAI CETIQT, com palestra da professora de Design da instituição Amanda Vasconcelos, que apresentou os conceitos e a importância do upcycling: “O movimento chegou para nos conscientizar sobre os impactos gerados pela indústria da moda. Precisamos repensar o ciclo produtivo e o uso dos materiais, além de saber quem fez e de onde vêm nossas roupas. O upcycling é relevante nesse caminho para uma moda mais sustentável e justa. Há alguns anos, quando começamos a ouvir falar sobre esse jeito de se confeccionar roupas, a partir de reutilização de materiais, ele era uma tendência. Hoje é uma realidade, uma opção mais sustentável para ressignificar materiais”.
Já pontuamos aqui, no site, que entre os princípios da moda circular, estão: design com propósito; foco na longevidade, biodegrabilidade e reciclabilidade; origem e produção locais, sem toxicidade, com ética e mais eficiência; reuso, reciclagem e compostagem de todos os restos; cuidado no uso, na lavagem e no conserto das peças; em vez de levar para casa algo novo, apostar em troca, segunda mão ou (re)design; e fazer compras tendo em mente a qualidade, em vez da quantidade. A própria professora Amanda Vasconcelos já havia sinalizado que o upcycling se encaixa no (re) design inteligente, na oferta de serviços que apoiem o ciclo de vida dos produtos e no tratamento adequado dado a todos os restos.
Os impactos socioambientais gerados pela indústria da moda vão da poluição ambiental à utilização excessiva de recursos, passando pelo trabalho análogo à escravidão, entre outros. Um dos grandes problemas do setor é o lixo têxtil: sobras, peças que, ao fim de sua vida útil, vão parar no lixão ou são incineradas. “É importante pensarmos numa solução que reinsira esses materiais num novo ciclo. Com os princípios da economia circular em mente, devemos criar alternativas para que não se produzam mais novos materiais, já que muitos desses impactos são gerados justamente na fase de produção de fios e fibras. Até mesmo durante a confecção”, alerta Amanda Vasconcelos.
É importante lembrar que o consumidor também precisa refletir, participar e assumir seu papel no descarte de peças que não são mais utilizadas porque ficaram obsoletas ou se desgastaram em função do uso. “Hoje o lixo têxtil é um problema muito sério. No Brasil, como ainda não temos sistemas de reciclagem e de logística reversa eficientes, o upcycling tornou-se uma alternativa muito interessante para as empresas”, sinaliza a professora.
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Pesos e medidas do lixo têxtil no mundo:
Segundo o relatório Fashion on Climate, do Global Fashion Agenda com a McKinsey and Company, as empresas que confeccionam roupas e acessórios emitiram, em 2018, cerca de 2,1 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa. Esse montante equivale a 4% das emissões globais. Só no Brasil, são produzidas 170 toneladas de resíduos têxteis por ano. Desse total, 80% são destinados a lixões e aterros sanitários.
1- Cerca de um caminhão de lixo é enviado para aterros sanitários a cada segundo no mundo. Isso equivale a mais de dois mil quilos de roupas sendo jogados fora por segundo. (2.625 kg)
2- Essa quantidade preencheria um Empire State e meio por dia
3- É suficiente para encher a Baía de Sydney a cada ano (82.782.000.000 kg de roupas)
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Como se vê pelo destaque acima, a quantidade de têxteis desperdiçada anualmente, a cada segundo, cada minuto, é absurda. Estamos falando de quase 83 trilhões de quilos, afinal. Trilhões. E prepare-se para o pior: 80% desses dejetos são descartados indevidamente, apenas 20% são reciclados. Só para se ter uma ideia, um dia no Brás, polo de confecção em São Paulo, gera 45 toneladas de lixo, o equivalente ao peso de dois iates. “A questão é: se continuarmos produzindo e descartando como fazemos hoje, vamos precisar de vários planetas para suprir as próximas gerações”, frisa Amanda Vasconcelos.
Nesse ponto vale a pena lembrar que, além do descarte da fase pré-consumo e do descarte feito pelo próprio usuário, existe um excedente enorme nas empresas: final de rolo, tecidos com pequenos defeitos, sobras de uma coleção para outra, peças que encalharam etc. Sem contar que, muitas vezes, para aprovar um produto, montam-se duas, três peças-piloto que se acumulam na firma com o passar do tempo. Daí a necessidade de se olhar para dentro da empresa, ver o que existe de material e ressignificar estoques de peças que nem chegaram a ter seus ciclos de vida completos e já estão obsoletas. Devemos olhar para tudo isso antes de pensar em criar um produto novo.
O upcycling trata exatamente de como reutilizar esses insumos e transformá-los em produtos de maior qualidade: “É o processo de transformar materiais sem vida em algo ressignificado, em produtos com maior valor agregado. Para isso, temos vários métodos. Cada marca, cada designer explora novas técnicas criativas, já que é muito mais difícil criar quando é a matéria-prima que conduz o processo criativo. Na forma tradicional, o estilista pensa primeiro na forma, no shape, na tendência e, a partir daí, busca os insumos que melhor se adequam a suas ideias”, pontua Amanda.
No upcycling, não. Ele olha o que tem e pensa no que pode tirar dali: um produto totalmente novo, inserido em um novo contexto. “É preciso “mutar” o material de origem e transformar em algo muito melhor. O valor agregado às novas peças está ligado à sustentabilidade, a não produzir um novo material: para fazer aquela roupa, reaproveitam-se o esforço e os recursos empregados na produção daquele insumo, como energia, água e esforço humano”, lembra a professora.
Mas há muitos outros desafios para se trabalhar com upcycling. No caso de peças que são reutilizadas, tem o estado de conservação; a limitação de materiais em termos de quantidade e casos em que não dá para reproduzir uma peça igual a outra; a questão da diversidade de tamanhos (como se trabalha uma grade com produto feito a partir de upcycling?); as habilidades do designer: ele precisa entender de modelagem, de costura, não só de desenho e de outras habilidades, pois vai criar ao mesmo tempo em que executa. E é um trabalho de criação muitas vezes colaborativo, pois estará junto com modelista e costureira auxiliando no processo e buscando a melhor solução para aquele material.
O processo produtivo é mais lento. O preço final ainda é um grande paradigma para o consumidor, pois ele pensa que peças feitas com insumos reaproveitados não poderiam custar tão caro. Todo o processo que acontece por trás fica invisível aos olhos do consumidor e ele não entende o porquê dos preços altos.
“E, além de tudo isso, ainda tem a questão da metodologia e da identidade. É essencial que o estilista defina a sua metodologia e crie uma identidade para seus produtos. O grande risco quando se pratica o upcycling é, em função da diversidade de técnicas e materiais, criar peças sem personalidade definida”, alerta a professora Amanda Vasconcelos, lembrando que, em termos de sistema de moda, a técnica se insere no slow fashion, com suas pequenas coleções de poucos produtos, grades e escalas menores.
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Upcycling pode ser definido como “redesign inteligente” (upcycling = design + sustentabilidade). Podemos agregar detalhes, referências de moda, de tendências no produto. É uma espécie de “Faça você mesmo”. Mas, basicamente, é uma prática com objetivo sustentável, de dar nova vida àquele material de forma que não seja necessário utilizar mais recursos e gerar novos impactos: “Há cinco anos, o upcycling começou a crescer, era uma tendência. Hoje está no auge. Em 2020, 2021, principalmente por conta da pandemia, ganhou força e se espalhou por diversos segmentos. Uma série de questões promoveu sua aceleração. Por exemplo: a falta de matérias-primas; as sobras dos estoques (com as lojas fechadas, muito do que foi produzido acabou não sendo vendido, gerando excedentes). Isso fez com que as empresas olhassem para seus estoques e verificassem o que poderia ser utilizado na criação de novos produtos”, opina a professora Amanda, lembrando que até marcas de luxo como Balenciaga, Louis Vuitton e Miu Miu se apropriaram do conceito criando coleções-cápsulas não apenas de materiais, mas também de peças que não foram vendidas.
(Opção bem mais interessante quando nos lembramos que algumas dessas marcas de alto luxo incineravam esses produtos…)
Em 2020, a Louis Vuitton criou a coleção-cápsula Be Mindful (prendedores de cabelos, tiaras e outros), a Miu Miu fez uma parceria com a Levi’s; a Balenciaga trabalhou bastante com jeans e o reaproveitamento de seus materiais.
“Isso mostra como as marcas de luxo se apropriaram do conceito e das práticas do upcycling, que deixou de ser uma possibilidade de novas formas de criação para se tornar uma realidade”, pontua a professora. “Com isso, porém, é grande tendência estética que vemos muito hoje nas redes sociais, como o tênis-corset, que vem sendo bastante usado por influenciadoras e celebridades. Esse tipo de peça começou como uma prática de upcycling, de se pegar tênis usados e transformar em corsets”.
A ideia do upcycling é trabalhar com o que você já tem, tentando não gerar resíduos e sem recorrer a outros processos, desconstruindo as peças, testando possibilidades e usando materiais e modelagens de forma inusitada.
DESCONSTRUÇÃO
Os processos criativos dos estilistas e das marcas são, muitas vezes, uma mistura de várias técnicas diferentes para aproveitar e reutilizar materiais: “No caso de peças prontas, confeccionadas, vemos muito a técnicas da desconstrução. Temos exemplos de calças jeans, de camisas totalmente remodeladas e ressignificadas a partir da desconstrução da peça de origem. Na camisa pode-se mudar a posição da gola e transformá-la em manga; pode aproveitar num detalhe da carcela (tira de tecido que arremata a fenda da manga comprida da camisa); num abotoamento numa outra posição. Com calça jeans vemos muito esse trabalho de vestir de outra forma, de desconstruir as partes componentes. É a perna que vira manga, é a parte do cós e da braguilha invertida, a costura do entrepernas, que vira um decote”.
REMODELAGEM
A técnica da remodelagem é parecida com a desconstrução, mas não faz tantas modificações na peça original. São criados recortes, sobreposições. Mas as características do produto de origem permanecem visíveis. A remodelagem pode ser feita adequando-se o shape, a silhueta, acrescentando-se outro tipo de material, modificando-se a peça em função de alguma tendência. Pode acontecer uma mudança da estrutura da roupa, mas não necessariamente sua total desconstrução.
“Vemos muita remodelagem nos tutoriais de upcycling das redes sociais onde se utiliza uma modelagem em papel e se recorta sobre uma peça. Pode-se, também, pegar uma roupa mais básica e trazer alguma informação de moda. É uma técnica que, se compararmos com a desconstrução, cria peças mais simples para reproduzir e até mesmo para criar pequenas escalas. São peças passíveis de reprodução, porque muitas vezes se utiliza um molde”, revela Amanda Vasconcelos.
MIX DE PEÇAS E MATERIAIS
Essa técnica é bastante comum. E é interessante, especialmente quando se misturam peças de estilos diferentes. Diferentes materiais e estilos (jeans com couro, malha com tricoline, jeans com moletom, tule com jeans, alfaiataria com esportivo, casual com formal) criam contrastes bons de se trabalhar: quando se tem uma diversidade muito grande de tipos de peças e de materiais, é possível fazer um mix levando referências de moda, de tendência para dentro do upcycling. Mas atenção: para se servir dessa técnica é fundamental atentar para a questão da costura, pois, às vezes, um material tem elasticidade e o outro não tem. Precisa saber se será viável tecnicamente, já que esteticamente é possível combinar e obter resultados interessantes.
E temos o uso do patchwork e do rework (muito similar ao patchwork, consiste em trabalhar com pequenos pedaços de tecido, pequenos retalhos unindo-os e compondo uma cartela de cores ou um efeito degradê). Temos visto muito isso, principalmente nas tendências de moda, esses efeitos do jeans, de misturar diferentes lavagens e tonalidades combinadas numa mesma peça.
O UPCYCLING GERA TENDÊNCIAS
“Nesse último ano, ocorreu um movimento interessante: o upcycling está tão em alta na moda que a estética dos produtos feitos a partir desta técnica tornou-se tendência. Muitas vezes, os produtos têm apenas a estética do upcycling, não são feitos a partir da reutilização de materiais. Muitos tênis-corset são confeccionados com peças novas compradas especificamente para isso. Não dá para chamar de upcycling, pois não usam material que seria descartado. A moda começou com uma estilista que reutilizava calçados no final da sua vida útil. Isso acabou se propagando como uma tendência estética a ponto de se usar insumos novos para construir esses produtos.
A mesma coisa acontece em relação a algumas estéticas que o upcycling proporciona, principalmente quando trabalhamos com retalhos, peças diferentes onde se aproveitam esses retalhos e recortes utilizando uma técnica parecida com o patchwork. Temos visto muitos produtos feitos a partir de matéria-prima não-reaproveitada.
Isso é totalmente equivocado, é se apropriar do conceito e usá-lo de uma forma que não tem nada a ver. Isso não é upcycling, que tem todo um intuito de sustentabilidade, de reutilizar o material. O que essas marcas oferecem é uma tendência da estética que está ganhando força nas grifes e nas redes sociais. É importante conscientizar os consumidores para, quando quiserem comprar uma peça feita sob o conceito do upcycling, estarem cientes de que o mercado vem se apropriando da terminologia e do conceito de maneira equivocada.”
O SENAI CETIQT E O UPCYCLYNG
Maior centro latino-americano de geração de conhecimento aplicado à cadeia produtiva têxtil, de confecção e química e referência em tecnologia, consultoria e formação de profissionais qualificados para a Quarta Revolução Industrial, o SENAI CETIQT proporciona aos alunos inúmeras aulas de upcycling. Todo semestre surgem trabalhos que se destacam pela criatividade e pelo valor agregado. “No ano passado, tivemos muitos resultados interessantes no curso Projetos Criativos no Upcycling, dentro da Iniciação Científica. Os alunos foram orientados por mim e trabalharam em casa, pois ainda estávamos no ensino remoto, só parte da turma assistia às aulas presencialmente. O desafio era construir peças utilizando o que eles tivessem em casa”, conta Amanda Vasconcelos, acrescentando: “Quando iniciamos o processo é importante fazermos antes uma catalogação do material que temos para trabalhar. Tenho peça, retalhos, pedaços maiores de tecido… como posso classificar e organizar esses materiais? Podemos fazer isso pela cor, por uma determinada categoria de peça ou por um determinado tipo de material (malha, jeans etc). É muito importante ter esses critérios para não criar uma diversidade imensa e acabar não criando uma estética interessante ou uma identidade para o produto”.
A ideia da Iniciação Científica é que os alunos tenham um laboratório de experimentação livre para testar as diferentes técnicas sem se preocuparem com a questão de a roupa ser ou não comercial, de poder ou não ser reproduzida ou escalada. “É para explorar de verdade o processo criativo”, conclui Amanda Vasconcelos.
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