Sustentabilidade significa atender necessidades atuais preservando os recursos de que as futuras gerações precisarão. Acontece que o aquecimento global chegou a um nível tão absurdamente alarmante que, hoje, quando falamos em promover a sustentabilidade do planeta, não nos referimos somente em interromper ações como o desmatamento, a poluição das águas ou a emissão de gases de efeito estufa. O SENAI CETIQT, como um membro ativo no ecossistema de inovação nacional, promoveu a live “A Crise Climática e a Indústria Têxtil – o papel das fibras e materiais”, apresentada pela consultora do Instituto SENAI de Tecnologia e Confecção do SENAI CETIQT Michele Souza, que recebeu o representante da ONG Textile Exchange para a América Latina Silvio Moraes. Afinal, chegamos a um estágio em que é necessário recuperar o que foi destruído; ou seja, regenerar a terra, os mares, as nascentes – o meio ambiente, enfim. “Não basta só diminuir as emissões de gases, por exemplo. Se não implementarmos formas de produção e desenvolvimento regenerativos, não chegaremos a lugar algum. Não se trata apenas de parar de fazer o estrago, precisamos recuperar o que já destruímos”, afirmou Silvio Moraes.
A instituição representada por Moraes na América Latina é uma Organização Não Governamental sem fins lucrativos que leva informações sobre os benefícios dos têxteis ambientalmente responsáveis a marcas e varejistas, produtores e fornecedores, agricultores e investidores. “Em novembro, durante a Conferência do Clima, a COP 26, houve um seminário para tratar especificamente do que que a moda está fazendo para chegar ao zero de emissões até 2050. Várias ações foram apresentadas e houve discussões muito interessantes, mas precisamos, efetivamente, agir”, disse Silvio. E a ONG fez um apelo a governantes do mundo inteiro para que estabeleçam políticas comerciais que incentivem o uso de materiais preferenciais como algodão agroecológico orgânico ou fibras recicladas, por exemplo. A proposta contou com o apoio de mais de 50 indústrias e organizações. “Além disso, desenvolvemos modelos de negócios e ferramentas que incentivam o uso de insumos sustentáveis e uma maior consciência, por parte do consumidor, do valor desses têxteis. Melhorar a qualidade ambiental, valorizar o padrão de vida dos fornecedores e elevar a rentabilidade de marcas inovadoras e seus parceiros comerciais também estão entre os nossos objetivos”, pontua.
“Funciona como uma plataforma para orientar o setor da moda na busca de soluções de produção mais sustentáveis. O que tentamos fazer depende muito dos esforços de cientistas, empresários, membros da Textile Exchange e da sociedade civil”, ressalta Moraes. Praticamente toda a cadeia da moda de uma ponta à outra utiliza as informações que são geradas e desenvolvidas pela ONG. “Entre os membros, tem gente do setor primário (produtores), profissionais de suprimentos, empresários das grandes marcas e de marcas pequenas e vem crescendo o número de adesões a cada ano”, conta Silvio.
Em 2019, foi lançada a Estratégia Climate+, levando em conta que não é apenas o clima que sofre os efeitos da ação humana. Os problemas relacionados ao aquecimento global e às mudanças climáticas não são gerados apenas pela emissão de gases de efeito estufa. Os impactos são maiores e também afetam a biodiversidade, a qualidade do solo, da água e da vida das pessoas que já sentem, no dia a dia, os resultados das mudanças e vão sofrer ainda mais ao longo do tempo, principalmente nas regiões mais pobres do planeta.
“A Estratégia foi estabelecida a partir de um estudo iniciado em 2018, que tinha por base o relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, organização político-científica criada em 1988 pela ONU) daquele ano. O Tratado de Paris reconheceu a necessidade de se reduzir as emissões globais de gases capazes de gerar o efeito estufa em 45% até 2030, para evitar que o aquecimento da média global da temperatura supere o 1,5 grau centígrado. Talvez seja necessário aumentar a meta para 50%. Para que isso aconteça, precisamos de ações rápidas e com impacto de longo alcance no que se refere ao uso da terra, à matriz energética, à forma como a indústria trabalha, ao transporte – tudo que for necessário para haver mudança efetiva”, explica Silvio Moraes. “O sequestro de carbono é válido, mas precisamos ir além disso”.
Só para se ter uma ideia do que está acontecendo, basta dizer que, atualmente, as fibras utilizadas pela indústria da moda geram pouco mais de 600 milhões de toneladas de gases de efeito estufa por ano. Se mantivermos o ritmo de desenvolvimento da indústria nesses padrões, em 2030 vamos entrar no Business as Usual (BAU, manutenção da rotina de sempre, apesar dos riscos). A produção será equivalente a absurdos 846 milhões de toneladas. A questão é que precisamos reduzir as emissões anuais de pouco mais das 600 milhões de toneladas atuais em 45%; ou seja, passar para 336 milhões, quase a metade. Isso se quisermos manter o aquecimento máximo em 1,5 grau até 2030.
O representante da Textile Exchange alerta para a dificuldade de se atingir a meta: “Simulamos uma substituição agressiva dos materiais utilizados hoje pelos ‘preferenciais’ (que têm menos capacidade de impactar o ambiente). Imaginemos que a indústria consiga, com muito esforço, usar 50% de algodão, poliéster e fibras de Tencel preferenciais (orgânicos); 30% de nylon reciclável; e 20% da lã. Ainda assim, ficaremos muito aquém do necessário: de 846 milhões de toneladas, baixaremos as emissões para 533 milhões. Não chegaremos aos 336 milhões desejados. Essa questão só se resolverá com inovações. Mudar o que estamos fazendo é pouco, temos que trabalhar com práticas regenerativas, sequestro de carbono e circularidade. O desafio exige mais que substituir”.
A Estratégia Climate+ veio justamente para ajudar a indústria a atingir esse objetivo, com a visão focada em 2030. A ideia é fazer com que as indústrias têxteis e de calçados usem a ciência para minimizar os impactos sobre o clima, a biodiversidade, o solo e a água a fim de reduzir os gases de efeito estufa em 45%, tendo como base o ano de 2019. Outros objetivos estão sendo agregados, pois baixar o volume das emissões de gases não é tudo: é extremamente necessário recuperar o solo, limpar as águas dos mares e rios e proteger a biodiversidade. “A partir daí, começamos a estabelecer estratégias baseadas em prioridades: a integração da Estratégia Climate+, a geração e o uso de dados sobre o efeito dos materiais no meio ambiente e o trabalho com a questão de impacto e inovação. Não adianta usar o que já sabemos que é possível, precisaremos desenvolver algo maior que isso. O engajamento político vai nos ajudar a mobilizar a sociedade para que a mudança ocorra”, acredita Silvio Moraes.
A integração da Estratégia Climate+ visa impulsionar a necessária transformação da indústria para chegarmos a 2030 com objetivos cumpridos (não se esqueça: é tudo urgente!). Para chegar lá, a ONG conta com ferramentas focadas em reverter os impactos sobre a mudança climática, uma plataforma de benchmarking entre indústrias e marcas (em 2020, 226 companhias participaram, inclusive algumas brasileiras), ferramentas e boas práticas disponíveis para toda a indústria. O site contém informações sobre as normas usadas para a certificação de materiais preferenciais. “Temos uma norma voltada para algodão orgânico, outra para a produção de lã e pena de ganso responsáveis, alpaca, couro. Para cada material existem normas que estabelecem padrões de sustentabilidade”, revela o representante a Textile Exchange para a América Latina.
Entre os muitos serviços oferecidos pela ONG, o mais importante é a reunião em colaboração de todos os setores, a Conferência Anual de Sustentabilidade. Cada vez mais associações, instituições e organizações estão se juntando e compartilhando o que têm de diferente a fim de criar sinergia para que os esforços de cada uma se multipliquem.
Inovação é o grande tema. Se continuar como está a indústria da moda não vai resolver o que precisa para chegar em 2030 com impacto inferior. “Além de aumentar o uso de fibras preferenciais, temos que incorporar as práticas regenerativas urgentemente. Um exemplo é a agricultura regenerativa, que não apenas é menos impactante, não usa agrotóxicos e não polui as águas como trabalha efetivamente para recuperar a saúde do solo, além de aumentar a biodiversidade. “Não é só conter as queimadas na floresta, temos que proporcionar a recomposição das paisagens e da natureza. Precisamos, também, apoiar a transição para a energia renovável: o Brasil tem caminhado nesse sentido, mas ainda temos muita estrada pela frente. O grande ponto, porém, é estimular inovações e economia circular. Só com o que temos hoje não vamos atingir nosso objetivo maior. Ainda há muitas lacunas a serem preenchidas”, opina Silvio Moraes.
Ele acrescenta que ajudaria muito para frear a crise climática promover o engajamento político. “O mundo nos fornece vários exemplos. Nos Estados Unidos, o foco recai sobre tarifas e comércio. Há, inclusive, um projeto no Parlamento estadunidense visando o estabelecimento de tarifas diferenciadas para fibras preferenciais, uma maneira simples de desonerar a produção menos agressiva ao meio ambiente. Paralelamente, o Ministério da Agricultura daquele país trabalha para estimular a agricultura regenerativa facilitando o financiamento para os que desejam praticá-la, entre outras medidas”, conta.
Já a Europa está focada especificamente na questão da circularidade. Sua finalidade não é novidade para ninguém: a Alemanha já tem todo um sistema de legislação e política pública baseado em práticas circulares. Mas agora a União Europeia está incluindo a Economia Circular em sua estratégia de desenvolvimento. “A própria Indústria Têxtil criou uma ONG chamada Policy Hub exatamente para divulgar a noção do que precisa ser mudado e articular junto aos governos e ao Parlamento Europeu para que essas mudanças aconteçam, porque a carga costuma recair sobre a sobre a indústria, as marcas e os varejistas. A ideia é acelerar o uso das práticas circulares, pois, em algum momento, o Estado vai ter que participar e apoiar o desenvolvimento em busca da sustentabilidade”, comenta Silvio Moraes.
Os relatórios anuais da Textile estão disponíveis gratuitamente no site. São dois relatórios principais, o Relatório de Fibras & Materiais Preferenciais e o do Algodão Orgânico. Eles trazem informações sobre produção em cada país, continente, produção global, tendências etc.
Entre as principais fibras usadas hoje, as sintéticas equivalem a 62%, enquanto as vegetais, 30%. Desses, 24% são algodão. Até a metade dos anos 90, o que mais se usava no mundo era o algodão. A partir da metade daquela década, as fibras sintéticas começaram a superar o algodão. Em 2020, foram produzidas 70 milhões de toneladas de fibras sintéticas.
No Relatório do Algodão Orgânico, podemos conferir um potencial muito grande para o Brasil. Temos cerca de 2.800 famílias de agricultores produzindo algodão orgânico em uma área de 12 mil hectares. “Com relação ao ano passado, crescemos 38% e prevemos crescer 277% em 2022. Entre os fatores, vários hectares de produção convencional ou que não tinham característica orgânica estão passando para orgânico. Mas, no Brasil, o algodão é produzido por pequenos agricultores. A forma de aumentar o volume da produção não é aumentar a área de cada pequeno produtor: é preciso ter mais produtores produzindo algodão orgânico em suas áreas”, pontua Silvio Moraes.
Isso vem acontecendo por pressão das indústrias e por projetos que vêm financiados. A Fundação Laudes financia um dos projetos mais importantes do Brasil, desenvolvido pela Diaconia no Nordeste, em sete estados. O Instituto Lojas Renner tem um desenvolvimento nessa área; tem marcas que trabalham diretamente com grupos de produtores, como é a Vert. A Patagônia está entrando na Argentina e, provavelmente, já demonstrou interesse em trabalhar no Brasil.
De acordo com o representante da ONG Textile Exchange para a América Latina, a palavra do momento é “Regenerativo”, “que não é apenas prejudicar menos ou ter um impacto menos negativo, mas tentar recuperar o solo, a água e a biodiversidade. É o que chamamos de agroecologia. O algodão agroecológico orgânico brasileiro tem essa característica. No Brasil, especialmente no Nordeste, são feitos consórcios agroecológicos de algodão com culturas alimentares; ou seja, plantam-se também milho, feijão… O algodão vai deixar algum recurso para as pequenas propriedades. E o agricultor também vai produzir milho, feijão, jerimum, abóbora, que garantem a segurança alimentar. O algodão tem um impacto fantástico em termos de recuperação de solo, manutenção dos recursos hídricos de uma das regiões mais secas do Brasil e, ao mesmo tempo, garante o sustento e uma vida digna para milhares de pessoas”.
E ele fala do orgulho de usar uma camisa de algodão orgânico sabendo que várias famílias foram beneficiadas. “Marcas grandes em lojas internacionais sabem que esse tipo de informação tem impacto sobre o consumidor final. É um caminho sem volta: vamos desenvolver cada vez mais esse tipo de agricultura. No Brasil temos boas condições para produzir uma fibra de excelente qualidade e com essa capacidade de transformação que vai contribuir muito para esses objetivos que a indústria tem e deve desenvolver ao longo do tempo para ter um impacto cada vez menor sobre o clima”.
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