Em fevereiro, um levantamento divulgado pela Prefeitura do Rio de Janeiro mostrou que o carnaval movimentou R$ 4 bilhões na economia da capital fluminense em 2020. Um ano depois, seguindo as diretrizes das autoridades sanitárias frente à pandemia de Covid, os desfiles das escolas de samba na Marquês de Sapucaí foram suspensos. Em fevereiro de 2022 havia a esperança da retomada, mas o cenário era bem difícil com a chegada da variante Ômicron e os desfiles no Sambódromo foram remarcados para o feriado de Tiradentes, em abril. Um tema importantíssimo tem sido levantado dentro dos barracões das escolas de samba: a redução de custos em sinergia com a sustentabilidade, economia circular e zero waste. Fantasias e carros alegóricos aproveitados e ganhando uma releitura, materiais que possam ser reutilizados e de baixo impacto ambiental, entre outras práticas. O SENAI CETIQT lançou luz sobre essa nova cadeia produtiva durante a live “Reluziu… É Ouro ou Lata? Um Olhar Circular no Carnaval” e realizada como parte integrante do projeto com a Laudes Foundation para promover ações que apoiem a transição da moda brasileira para um modelo mais circular de produção e consumo.
Consultora do Instituto SENAI de Tecnologia Têxtil e de Confecção, Michelle Souza conduziu um bate-papo com os professores André Wonder, doutor em Artes e coordenador do curso técnico de Artesanato do IFRJ (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Rio de Janeiro), e que ainda atua no carnaval como pesquisador, jurado e expert em desenvolver ações em ateliês de fantasias e adereços; e Flávio Sabrá, doutor em Design e diretor de ensino do IFRJ. Ele também é pesquisador dos campos de Inovação, Tecnologia, Design, Moda e Carnaval; e relações entre Antropometria, Prospecção Tecnológica e Mercadológica, Cor, Design e Sustentabilidade, Economia Criativa, Comportamento e Consumo. A ideia é conhecer melhor as dinâmicas envolvidas no processo criativo das fantasias e suas interfaces com a economia circular pensando na cadeia do carnaval e em possíveis relações com outras cadeias de valor.
“Com a alta do dólar, a pandemia e a falta de produtos no mercado, esses fatores acendem uma esperança de que o carnaval deste ano seja o mais sustentável das escolas de samba. Algumas buscam o que está guardado em seus almoxarifados para substituir o que queriam comprar. Talvez 2022 seja um divisor de águas, o começo de uma virada mais circular para as agremiações carnavalescas. Talvez seus diretores tenham percebido a possibilidade de economizar na compra, de olhar para o estoque antes de produzir fantasias novas”, analisa André Wonder sobre o cenário que tem sido construído em 2022.
Antes, porém, o professor lembra que o título da live remete ao enredo da Beija-Flor no carnaval de 1989, “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia”, quando o carnavalesco Joãosinho Trinta (1933-2011) fez história abrindo o desfile com um Cristo mendigo e fazendo evoluir na passarela um “exército” de “miseráveis” em meio ao lixo. “As gerações mais velhas conhecem a genialidade de Joãosinho e entendem como um momento totêmico do carnaval, onde o luxo se fez lixo, o lixo se fez luxo e se tornou fantasia. O carnaval das escolas de samba, assim como qualquer manifestação popular, desde o início, por uma questão mais econômica que ideológica, se fez do que existe a partir do entorno. Quais eram as alternativas no entorno para utilizar com material? O balde que vira tambor, a palha transformada em ornamento do povo indígena?”, levanta o debate André Wonder.
O professor observa que relatos sobre o carnaval soam bastante romantizados, dando conta de uma comunidade unida na divisão das despesas com tecidos e aviamentos e na coleção de retalhos, por exemplo, sempre em prol de um carnaval cada vez mais belo. Era um tempo quando o cabo de vassoura virava estandarte. “Ficava-se entre o aproveitamento do que se tinha como insumo e o romantismo de um período quando o produto era elaborado mais lentamente. O método de produção ficava dentro do conceito do que hoje chamamos de slow, como em slow food, slow fashion etc”, exemplifica André Wonder.
Com o tempo, o carnaval das escolas cresceu tanto que alguns métodos de produção e olhares tornaram-se bem diferentes: “Existem múltiplos interesses. Questões econômica e social, o prazo, às vezes os recursos para se fazer um carnaval de escola de samba surgem em cima da hora do desfile. Tem ainda as relações com fornecedores, a mão-de-obra. Tudo isso deve ser articulado se a direção quiser colocar um desfile na Avenida, que pode custar R$ 7 milhões para uma agremiação do Grupo Especial”.
O potencial artístico e criativo é valorizadíssimo – e isso nós temos de sobra. O professor salienta que, no entanto, precisamos preencher outros requisitos. Se o carnaval vai trabalhar com algum recurso de uso sustentável ou algum equipamento sobre material anterior, isso ocorre mais por questões financeiras. “Os artistas criadores têm ampla consciência sobre a questão da ecologia. Carnavalescos e enredistas são pessoas muito engajadas política e socialmente. Mas, quando falamos de escolas de samba, esses temas ainda acabam ficando meio esquecidos. Afinal, é necessário produzir três mil fantasias para cada agremiação do Grupo Especial, em média. E não são fantasias simples“, lembra André.
Em média, são 12 escolas por grupo (só no Especial, com cerca de três mil “desfilantes” em cada uma). É muito material, tempo, recurso e mão-de-obra para um espetáculo que dura 90 minutos. “Por tudo isso é complexo pensar em sustentabilidade no carnaval. Mas digo sempre para os alunos de artesanato e de outras áreas que não é porque é impossível que não deve ser buscado…”, afirma o professor do IFRJ, ressaltando que soluções são criadas passo a passo: “Como posso pegar um processo tão viciado, tão poluente e negativo e levar para um ponto melhor no próximo carnaval? E no outro e no outro, até chegar a uma possibilidade em todos os aspectos da sustentabilidade: econômico, narrativo, espetacular e, também, ecológico?”
O próprio André Wonder exemplifica: “Suponha que você acordou e quer tomar uma limonada. E acordou numa vibe ‘Bela Gil’, o suco tem que ser orgânico. Mas você está com preguiça. Pensa em pedir, pelo aplicativo, um refrigerante de limão que chega na sua casa gelado. Nesse processo vêm as embalagens da garrafa e do entregador. Você usou um monte de plástico e tomou um ‘suco’ artificial na cor, no sabor, no aroma, no espírito, no nome. Para fazer limonada do limão orgânico recém-plantado por você no seu quintal, será preciso esperar a semente germinar, vencer as pragas, fazer o limão crescer… Tem um canyon entre esses dois pontos extremos”.
Mas é exatamente aí que entra a noção de se criar soluções passo a passo, paulatinamente: É possível com ações. “O primeiro passo pode ser buscar o refrigerante, o que já reduz as sacolas. O segundo passo é, ao invés de tomar refrigerante, beber limonada em uma lanchonete. O terceiro seria ir à feira e valorizar o comércio local. O quarto é, além de ir à feira, comprar limão orgânico. Ou seja, além de valorizar o comércio local, você ainda adquire um produto que, por não ter química em sua fabricação, não polui o meio ambiente. No último estágio está o limão plantado no seu quintal”, enumera André. Interessante, não é?
Muito. Infelizmente, precisamos reconhecer que, em termos de circularidade, o carnaval ainda está na fase da garrafa plástica encomendada por telefone, mas, felizmente, nos últimos cinco anos, novos carnavalescos estão tentando modificar o processo produtivo das escolas de samba”, frisa o professor.
DISCURSO X PRÁTICA
Sambas-enredo tratando de ecologia, manutenção do ecossistema, respeito aos animais, da natureza que já não aguenta mais, da terra saturada trazem verdades. E deveriam ser habilitados todos os dias. Não são poucos os desfiles que tratam dessas temáticas espinhosas. Na prática, apesar de a narrativa tocar na ferida, a estrutura física da escola de samba ainda não consegue atingir esse discurso.
“O que acontece é protestar contra uso de plástico na natureza utilizando três mil fantasias feitas à base de material sintético, alegorias de isopor, fibra de vidro, lamê, acetato etc. Há exemplos interessantes para refletir sobre essa questão. Um deles, o desfile do Salgueiro, em 2014, “Gaia – A vida em nossas mãos”. Tratava da harmonia do homem com a natureza e com os quatro elementos, de como se não estivéssemos em comunhão com a natureza chegaríamos ao caos e ao Apocalipse”.
Embora se falasse o tempo todo do respeito a rios, fogo, ar e terra, todo o material do carro era poluente, feito com recursos não-renováveis. A alegoria que representava a água foi feita a partir de acetato, fibra de vidro, isopor e outros elementos parecidos. “Era totalmente sintética, feita a partir de polímeros não-sustentáveis, da estrutura à pintura. O discurso era muito bonito, o carro era incrível, era belíssima a água com carpas transparentes. Mas não se pensou em o quanto o uso desses materiais na elaboração da narrativa ia contra o argumento. Muitos fazem isso por questão de praticidade e viabilidade do projeto”, revela André Wonder.
A dicotomia entre discurso e prática também pode ser exemplificada pelo uso de plumas. Ultimamente, a indústria vem produzindo a chamada ecopluma. “Ela é considerada ecológica pelo mercado, por quem adquire e pelas escolas de samba, porque não têm origem animal. Se faço uma pluma de acetato, de nylon ou de qualquer material sintético, ela fica na natureza por décadas e décadas sem ser integrada. Por mais que seja ‘vegana’, a meu ver não tem nada de ecológica”, pontua Wonder.
Nem tudo está perdido. A luz no fim do túnel chega na forma da pluma feita de capim barba-de-bode, originário do Cerrado. Ainda assim, é bom ficar atento aos processos de extração do material, se está sendo realizado de forma correta, se é replantado, se o tingimento é feito da maneira certa etc: “Qualquer olhar para a área de ecologia, da sustentabilidade, do reuso, da reciclagem demanda mais sensibilidade sobre todo o processo: da extração até a reintegração à cadeia. Vamos ter que acompanhar o produto do momento da compra até a hora em que o cliente joga fora ou devolve para ser reformado”.
RE-CICLANDO
Aos poucos as escolas de samba voltam seus olhares para a Economia Circular. No carnaval de 2017, a Rocinha apostou na reciclagem a partir das alegorias. “Nas séries A, B, C, utiliza-se a estrutura dos carros alegóricos e existe uma circularidade das roupas, das esculturas e dos elementos, que vão sendo passados adiante. Sinônimo de circularidade. Quando fui carnavalesco da série B, a roupa do meu primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira foi comprada de outra escola, apenas mudamos um galão. Pensar muito sobre a viabilidade econômica do espetáculo está sempre presente”.
CIRCULARIDADE NAS FANTASIAS
Nos últimos anos, as escolas do Grupo Especial e da Série A têm pedido à comunidade para devolver suas fantasias. Em um desfile de escola de samba do Grupo Especial, as alas têm entre 90 e 120 pessoas. Pode chegar a 180. São números muito grandes e nem todos vão devolver. Desses 120, se 90 devolverem, essas fantasias com estrutura, cabeça, punho etc, elas podem ir para um grupo da Série A, em que a média de componentes por ala fica entre 70 e 90 e diversos elementos serem utilizados. Se 30 devolverem, pode ir para a Intendente Magalhães em que o grupo é, em média, formado por 30 pessoas.
O QUE ESTÁ EM ANDAMENTO EM PROL DA ECONOMIA CIRCULAR E ZERO WASTE
O diretor de ensino do IFRJ, Fábio Sabrá participou da live direto do barracão da Grande Rio e contou: “Esse ano estamos fazendo uma ala e um carro alegórico da Grande Rio com os alunos. E já aplicamos com eles o processo de aproveitamento de matérias-primas e melhoria na modelagem para podermos atender tanto aproveitamento de matéria-prima quanto a usabilidade do objeto pelo folião, pois não sabemos quem estará nas fantasias, que são moradores da comunidade. Então fizemos também a utilização de percentil (medida usada para dividir uma amostra de valores ordenados de forma crescente em cem partes), teste, pilotagem, prototipia, piloto, a forma de costura e toda a sequência operacional para melhor uso do material”.
Para incutir uma mentalidade mais circular nas escolas de samba, o IFRJ vem trabalhando junto com as agremiações. André Wonder revela: “Estamos no segundo carnaval com a Império da Tijuca. Na edição anterior, trabalhamos em bancada no barracão fazendo adereços de alegorias. Chegávamos de manhã com quatro alunas e, antes de começar a trabalhar, decidíamos a atividade do dia e planejávamos de modo que a não jogar nada fora. A ideia era usar todo o material. Em barracão, as pessoas já chegam fazendo, pois têm medo de não dar tempo, do volume etc. Acabávamos antes do planejado, produzíamos menos lixo e limpávamos a área onde estávamos. A escola nos elogiou: “Vocês são muito limpos, organizados, não produzem lixo”.
Nesse ano, o pessoal do IFRJ foi presenteado pelo carnavalesco da Império da Tijuca com a possibilidade de elaborar seis destaques que virão na parte frontal de uma alegoria com quatro alunas. O enredo é “Samba de Quilombo, a Resistência pela Raiz”, e os personagens são Zumbi dos Palmares, Dandara, Ganga Zumba, Mariana Crioula, Luiza Mahin e Manoel Congo. As alunas fizeram a pesquisa, que foi apoiada pelo Neabi (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas), pelo próprio carnavalesco e pesquisadores da relação entre negritude e carnaval das escolas de samba.
“Fizemos uma seleção de materiais que tínhamos em nossas casas e no campus. Tínhamos galão e tecidos de outros desfiles, búzios, placa batida, sisal, palha e cabeças que ganhei. As pessoas desfilam e, sabendo que eu guardo para utilizar em aula, me dão as cabeças. Eu desmonto e separo os elementos: pedras numa caixa, galão em outra etc. A cabeça fica só no ‘esqueleto’ de arame”, conta André Wonder. “Fiz colares de cápsula de café expresso. Estou fazendo, junto com as alunas, pulseiras para fantasias. A estrutura interna eu poderia comprar, pois pulseira custa pouco. Mas uso rolos de fita crepe e garrafas PET. O fundo das garrafas nós usamos para fazer flores. Com o corpo, fazemos filamentos para criar bolsas ou estruturas de pulseiras. Também fazemos colares de papelão, sobre os quais colamos retalhos. Quero trabalhar com os alunos a possibilidade de gerar outros processos de construção desses materiais”.
COMO SERÁ O AMANHÃ?
“Algumas escolas de samba já estão dando o primeiro passo para o reuso. É a partir de pessoas que vêm de fora, como os carnavalescos ou professores como eu e o Sabrá, que isso começa a ser percebido. Porque o método de trabalho ainda é muito viciado em práticas não tão positivas. Boas práticas são possíveis – aos poucos, mas são reais. O que determina o sucesso ou o fracasso de uma mudança é que, quem quer inserir um projeto no mundo do carnaval precisa pensar, antes de tudo, em sua viabilidade. É fundamental”, pontifica Wonder.
Já sugeriram que as escolas de samba produzissem roupas para blocos, festas juninas etc. Que criassem um calendário não necessariamente tão sazonal, mas que incluísse os funcionários, pois também temos que pensar na sustentabilidade social, no material humano. Acabou o carnaval vêm Páscoa, Dia das Mães, decoração de shopping, Halloween. “Se formos na Saara hoje, encontraremos roupa de bloco. Se olharmos as etiquetas, veremos que tudo vem de fora. Uma roupinha de Colombina ou de Carmen Miranda vinda da Ásia? Temos potencial. Falta pensar. Posso pegar minha fantasia do ano passado e produzir uma fantasia para bloco, Halloween. Tornar isso realmente circular no sentido total, de criar uma cadeia fechada. Temos potencial para roupa de Olimpíada, Copa do Mundo, teatro, televisão. Mas ainda se vale de amadorismo como estratégia, inclusive de desculpa. ‘Ah, a gente não tem tempo, é tudo muito corrido’. Isso precisa mudar”, frisa André Wonder.
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