As práticas inclusivas cada vez mais são reverberadas pela sociedade e a moda pode quebrar estereótipos. Este ano, a Semana SENAI CETIQT de Inclusão adotou o tema Moda Inclusão. As mesas redondas virtuais apresentaram e debateram os resultados de projetos inovadores nessa área, reafirmando o papel da organização como instituição que abre portas para todos e proporciona a construção de espaços de expressão e fortalecimento da identidade das pessoas, sempre visando a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. A Mesa 1, intitulada Mobilidade, Um Estudo de Caso para Designers, foi apresentada pela antropóloga e professora da Pós-Graduação em Design de Moda do SENAI CETIQT Solange Mezabarra, que contou com a participação das alunas da disciplina Comunicação Aplicada à Moda do Curso de Graduação em Design de Moda Beatriz Rocha e Priscila Costa. “Em 2019, desafiei alunos e alunas a observarem a diversidade dos corpos, em especial aqueles que diferem dos que são propagados pela grande mídia como perfeitos. Essas alunas visitaram e se envolveram com o Projeto Praia para Todos, que viabiliza lazer e acessibilidade a pessoas com deficiência, promovendo e integrando-as em atividades como banho assistido, surfe adaptado, vôlei sentado, frescobol adaptado, piscina infantil”, conta a professora Solange. “Elas fizeram um trabalho de inspiração etnográfica para entender um pouco mais sobre pessoas com problemas de mobilidade. Participaram também do trabalho as alunas Cláudia Valentim, Leilane Torres e Mayara Ticiano”.
O grupo de pessoas com deficiência no Brasil é enorme. Segundo dados do IBGE de 2010, representa mais ou menos 25 por cento da população. É muita gente e é um segmento que fica invisível. As pessoas com deficiências sempre sofreram discriminação, preconceito ao longo da história, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. A estilista Silvana Louro, idealizadora da Equal Moda Inclusiva, com experiência em adaptar roupas para pessoas com deficiência foi uma das convidadas. Silvana criou e produziu para a delegação fluminense o primeiro uniforme paraolímpico adaptado do mundo, nas Paraolimpíadas Escolares de 2015. Esse uniforme fará parte do novo acervo do Museu Paraolímpico do Engenhão, no Rio de Janeiro, como legado nacional. Nos anos 1980 e 90, ela produziu desfiles e catálogos de moda. Cansada do mundo fashion, especializou-se em Gerenciamento de Projeto, para trabalhar com para-atletas no Projeto Rio 2016. Percebendo as dificuldades dessas pessoas, acabou por se envolver com a moda novamente – mas de uma perspectiva completamente nova. Foi pensando em abraçar estas pessoas que a estilista Silvana criou a sua própria marca. O projeto conta com muitos colaboradores que se apaixonaram pela ideia tanto quanto ela. O objetivo principal da marca é ter peças lindas, funcionais e que tenham algum tipo de adaptação.
Para conduzir a conversa, foi convidada a socióloga Marta Gil. Graduada pela USP, Marta atua na área de inclusão de pessoas com deficiência desde 1976. De forma voluntária, desenhou e coordenou a pesquisa sociológica Perfil dos Brasileiros Portadores de Deficiência Visual entre 1976 e 1982, para a qual entrevistou pouco mais de seis mil pessoas com deficiência visual em nove estados brasileiros. Em 1989, foi selecionada empreendedora social pela Ashoka Empreendedores Sociais pela autoria do projeto Reintegra: Rede de Informações Integrada sobre Deficiências que foi implantado na USP em 1990, com a parceria do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas.
“Moda e inclusão é um tema ainda pouco conhecido. Não é futilidade. É a forma como nos expressamos, como nos apresentamos ao mundo e como traduzimos o que somos. Um vídeo feito na Suíça, em Zurique, há alguns anos, mostra a iniciativa de uma loja muito elegante a começar por manufaturar manequins que expressassem a diversidade do corpo humano. Eles convidaram pessoas com diferentes tipos de deficiência física e tomaram as suas medidas para fazer roupas para elas.
Uma das falas que mais a tocou foi das próprias pessoas com deficiência que posaram como modelos: ‘Nem sempre a gente consegue se ver como a gente é’, conta, emocionada, Marta Gil. “Não só elas, como muitas pessoas com deficiência. É interessante ver a reação dos que passam, olham a vitrine e levam um susto, porque não se veem pessoas assim representadas. A condição de deficiência é própria do ser humano e o vídeo termina com uma pergunta: ‘Afinal de contas, quem é perfeito?’.
Para se ter uma ideia de o quanto a moda inclusiva é recente (e como atitudes como a da loja suíça são importantes), a aluna Beatriz Costa da Rocha dá o seu depoimento: “Eu só fui ouvir sobre moda inclusiva no penúltimo ano de faculdade. Na verdade, era algo para temos sido confrontados desde cedo, se não no ensino básico, no ensino médio. Em uma pesquisa sobre alguns termos, descobri o capacitismo. Nós somos uma sociedade capacitista, nós vemos a deficiência do outro como exceção, nós não aceitamos a diversidade que é tão presente. Não conhecemos, nunca vimos aquela pessoa, mas a julgamos incapaz sem sequer pensar. Nossa comunicação foi voltada para os designers. Achamos que deveríamos aproveitar o ambiente acadêmico e falar para o designer sobre vários aspectos, o racional, o moral, para pensarmos nisso. Deu resultado, tanto que estamos aqui discutindo”.
Priscila Costa, colega de classe e de grupo, explica como foi o trabalho com o Praia para Todos, que completou dez anos em 2019 e já atendeu 32 mil pessoas de todo o país, no Rio e no litoral brasileiro, contando com parcerias de empresas privadas e públicas: “Quando terminamos o trabalho com os voluntários Praia para Todos, convidamos um aluno da faculdade para um desafio. Ele teria que experimentar uma calça jeans sem mexer as pernas sentado numa cadeira de rodas. Não poderia fazer um movimento sequer com as pernas. Escolhemos o jeans porque faz parte da rotina da maioria dos brasileiros. Mas quantas vezes paramos para pensar nas dificuldades que os cadeirantes têm para vestir essa peça tão presente no nosso dia a dia?” Não é necessário dizer que o rapaz não conseguiu vestir a calça.
“A gente tem que entender nossa função de designer. Mais que inovar, temos que reconhecer outros corpos e entender o nosso papel de modificação na sociedade. Nós reclamamos tanto da infraestrutura que deixa tão óbvia a diferença entre as pessoas com deficiência mas deixamos fazer a nossa parte aumentando a segregação social e não pensando no nosso papel”, pontua Beatriz Costa da Rocha.
Nesse ponto da apresentação, a socióloga Marta Gil comenta a iniciativa das alunas. “É muito importante o que vocês fizeram. Espero que muita gente tome conhecimento. É importante que as pessoas se sintam bem consigo mesmas e passem adiante a mensagem: ‘Eu sou assim, gosto do meu cabelo assim, gosto dessa roupa’. Por que alguém com tetraplegia, que não mexe nem braço nem perna, não poderia dizer: ‘Hoje, eu quero vestir essa blusa azul’? Atualmente, a moda atende grupos diferenciados nas suas especificidades, nas suas vontades. Eu moro em São Paulo, e, há pouco tempo, vi lojas com roupas para evangélicos. Nunca tinha pensado nisso, é um outro segmento. São pessoas que querem algo mais discreto, de cores mais sóbrias, com menos decote, saias mais longas. Merecem ser respeitadas. A roupa de tamanho único nunca dá certo, porque cada um de nós é único”.
“Quero destacar outro ponto: vocês foram falar com as pessoas, interagiram. Isso é muito semelhante à loja de Zurique: eles falaram com as pessoas, fizeram contato com elas. Eu espero que o que vocês fizeram cresça muito e que esse olhar de respeito, de considerar cada um como uma pessoa, se espalhe. A roupa de tamanho único nunca dá certo porque cada um de nós é único”, aponta Marta Gil.
E foi por isso que a estilista Silvana Louro acabou por migrar do mundo dos desfiles e catálogos de moda para a criação de roupas para pessoas com deficiência: para não ficar no universo do tamanho único, poder fazer algo especial, que a tornasse mais realizada. “Eu tive uma exaustão e fui fazer trabalho voluntário pelo mundo. Quando voltei, fiz uma especialização em gerência de projetos. Tive contato com pessoas com deficiência e isso fez aflorar em mim a vontade de fazer alguma coisa para ajudar, principalmente as cadeirantes, que eu via saindo do banheiro suadas na hora do almoço. Sabe aquele desespero de tirar uma calça comprida para ir ao banheiro? Pois é. Mas elas agradeciam e diziam que estavam acostumadas”, conta Silvana. “Aquilo me tocou e comecei a pesquisar, queria saber como os órgãos se readéquam quando a pessoa não fica mais de pé etc. Propus ao meu coordenador no curso fazer algo e ele topou que eu fizesse uma camisa. Só uma camisa, mas caí dentro e fiz um uniforme completo. Me apaixonei e nunca mais consegui parar”.
Silvana revela que chegou a entrar em contato com a loja suíça, mas não conseguiu trazer os manequins para o Brasil, pois são peças únicas. “Mas lá eles liberavam para mim se eu estivesse em Zurique”, diz a estilista. Não teve problema, ela foi conhecer o trabalho onde ele estava e de onde não sairia.
Ela passou a produzir editoriais de moda com deficientes. Graças à sua intensa vivência no mundo fashion e aos inúmeros contatos que havia feito, conseguiu que grifes como Ellus, Animale, Mr. Cat, 104, Reserva e Melissa, entre outras, criassem modelos exclusivos para pessoas com deficiência. “Eles ficavam encantados. Esse foi o primeiro movimento que eu fiz, paralelamente à produção das minhas peças, de fazer uma inclusão reversa: mesmo sem adaptação, mostrar que as pessoas existem. Nos desfiles também. Eu passei a produzir desfile inserindo pessoas com deficiência”.
“Eu tive uma memória afetiva muito interessante. Lembrei que, no final dos anos 70, calças jeans elas eram muito duras. A gente ficava com a unha azul marinho para vestir. Nessa época eu vesti, pela primeira vez, uma calça jeans com elastano. Nunca mais eu retrocedi. Quando a calça jeans com elastano entrou no mercado, quem vestia nunca mais vestia a outra”, lembra.
Esse foi o o Insight que ela teve: a pessoa com deficiência que vestisse a minha roupa também não retrocederia. Hoje eu tenho alguns desafios, que é um mercado em franca expansão e estou de corpo e alma nele.
Atualmente, Silvana vende seus modelos no Magalu, magazine referência em acessibilidade. “É um mercado em franca expansão e estou de corpo e alma nele. Estamos entrando para o maior portal de marketplaces de roupas da América Latina e comecei a buscar parcerias para potencializar a questão da verba. Estou indo por esse caminho”, observa Silvana. “A pessoa com deficiência ainda não tem a experiência da escolha nem essa vivência inédita da compra. Mas posso dizer que estamos caminhando bem. Desde que começamos, em 2013, sempre crescemos. A roupa é a minha experiência de inclusão”.
A experiência de compra é inédita para as pessoas com deficiência e a nossa visão ainda é muito conservadora. Trata-se de um processo em que todos precisam mudar, evoluir. “Nada vai sair do lugar se continuarmos com essa visão muito, muito antiga dessas pessoas como coitadinhas que merecem muito amor mas não podem fazer nada, não conseguem resolver nem mesma as roupas que vão usar. Chega disso, não é assim. Essas pessoas estão cada vez mais no mercado de trabalho. Estão trabalhando, casando, namorando, circulando: há agências de turismo voltadas para elas. São consumidoras e é muito importante que o mercado também as veja assim. Às vezes, começa pelo bolso e, depois, amplia a visão”, dispara Marta Gil. “Outra coisa a se destacar é que a população brasileira felizmente está vivendo mais. Muitas vezes, as pessoas com mais idade podem ter uma limitação de movimentos, por exemplo. Roupas fáceis e gostosas de vestir também atingem esse segmento. A gente vive numa sociedade de consumo e precisa dele para crescer. Pois que esse consumo seja cada vez mais inclusivo”.
PERGUNTAS
Que dicas você pode dar para o designer ou estudante de design que está se iniciando no mundo da moda? Como manter um olhar atento para a inclusão?
SILVANA LOURO: É muito importante aproveitar o ambiente acadêmico porque aluno pode tudo. Pode entrar nas empresas, pode perguntar o que quiser, tem livre acesso a muitas coisas. Eu sugiro o contato mais próximo possível, não só com a pessoa com deficiência, também com mercado. Porque quando a gente acha que estilista viaja muito, é legal viajar, essa coisa da criação. Mas tem um momento em que a gente precisa aterrar. As peças têm que ser escaláveis, a gente tem que otimizar as peças para atender, se possível, diferentes tipos de deficiência com a mesma peça, para não inviabilizar quando for escalar. Entrem em contato com as pessoas. Conversem com as pessoas, com marcas e empresas que façam trabalhos de inclusão para entender como acontece. Quando faço uma parceria, minha primeira pergunta é se tem pessoas com deficiência trabalhando. “Ah, temos algumas” Tem que ter mais! Para ser verdadeira, a sensibilização tem que ser de dentro para fora.
Como a inclusão pode ajudar a própria sociedade a ter um olhar mais atento e afetuoso sobre essa questão?
SILVANA LOURO: Estou justamente aprendendo, porque o trabalho de comunicação nunca foi feito antes em relação à moda. A representatividade, a identidade que a roupa te traz, o empoderamento quando você tem opção de escolha. A pessoa com deficiência ama moda e é vaidosa. Ela namora, beija na boca e tudo mais. Estamos fazendo várias experiências de comunicação. Hoje tenho uma agência de publicidade me ajudando e, aos poucos, a gente vai buscando junto, não existe uma receita. O aprendizado a gente compartilha para chegar num lugar o mais assertivo possível, mas ainda tem existe uma caminhada pela frente.
Esse olhar atento para o outro é muito bonito e importante. Ainda assim, o projeto deve ter mudado algo. O que mudou para vocês na percepção de inclusão?
BEATRIZ COSTA DA ROCHA (Aluna): Mudou completamente. Serviu para aproximar o que eu afirmo ser o nosso papel de designer, a nossa capacidade quase mágica de comunicar e integrar. Já bastam os problemas de infraestrutura que eles enfrentam. Esse debate tem que estar presente e continuar avançando. Que belo dia será quando tivermos uma faculdade de moda que estude esse corpo não é? Imagina uma mulher com uma paraplegia, pensar na modelagem de uma saia para ela na posição sentada.
PRISCILA (Aluna): Para mim mudou bastante o pensamento sobre o papel do designer de moda. O papel dele é resolver problemas e trazer a estética. A moda faz parte da construção da nossa história, da nossa cultura e da nossa sociedade. Estudantes, profissionais da moda e quem tem interesse de entrar nesse universo precisa estar atento às pessoas. Na faculdade nós realizamos muitos projetos sobre marcas. Precisamos de projetos sobre marcas, mas também precisamos trabalhar olhando para as pessoas.
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