As redes sociais, assim como também o ambiente offline, transformaram-se em manancial de possibilidades de estudos sobre a pluralidade de mulheres apaixonadas por maquiagem, consumidoras de produtos mil de beleza e que trocam experiências em tutoriais. O Brasil é o quarto maior mercado de beleza e cuidados pessoais do mundo — entram aí de cosméticos para cabelo e pele a perfumes e produtos para higiene bucal. O país fica atrás de Estados Unidos, China e Japão. Em 1964, o escritor, filósofo e semiólogo italiano Umberto Eco surpreendeu ao publicar em “Apocalípticos e Integrados” um ensaio sobre histórias em quadrinhos e elevou o o popular gibi ao status de arte. Agora, a doutora em Antropologia Márcia Mesquita faz um caminho com muita identidade ao defender a tese na qual lança um olhar antropológico para peles pintadas no contexto das sociedades complexas urbanas – no caso, as consumidoras de maquiagem brasileiras. Partes de sua tese, defendida em janeiro de 2020, tornaram-se um delicioso artigo publicado na quarta edição deste ano da “Revista Design, Inovação e Gestão Estratégica” (“REDIGE”), criada há pouco mais de dez anos pelo SENAI CETIQT e que já está online gratuitamente.
“O trabalho apresenta partes de uma etnografia realizada de maneira multissituada, entre meios online e offline, sobre consumidoras de maquiagem. Ao se engajarem neste tipo de consumo, essas mulheres acabam por tornar-se conhecedoras em profundidade desses produtos e técnicas, principalmente através de informações adquiridas em plataformas digitais. Tal conhecimento, o domínio das técnicas de aplicação, bem como a posse e o uso desses produtos garantem um lugar distintivo entre elas e as demais consumidoras. Assim, através desses produtos e tecnologias manuais, realizam uma construção estética do rosto, como uma forma de performarem expressões de gênero”.
Segundo a pesquisa de Márcia Mesquita, “a maquiagem é uma forma de expressão estética que tenta dar conta de diferentes identidades e subjetividades. Assim como os adornos dos corpos mais tradicionais, o uso da maquiagem é bom para pensar sobre nossa própria sociedade”. Dentre as diversas entrevistas, ela ouviu mulheres cis de classe média, com curso superior (algumas com títulos de pós-graduação) de diversas cidades brasileiras, entre 20 e 50 anos. “As lembranças dessas mulheres incluem a nécessaire e a penteadeira da mãe ou de outra figura feminina com itens de maquiagem – um blush, um ou dois batons, um lápis de olho, um pó de arroz. Elas também se lembram dessa figura se maquiando em frente ao espelho. Uma criança de hoje terá lembranças diferentes: a quantidade e a variedade de produtos para pintar o rosto são imensas, o processo de se maquiar é mais longo e elaborado e, muitas vezes, é acompanhado de alguma youtuber dando instruções”.
Vale a pena entender como essas consumidoras compõem seu conjunto de maquiagens e ferramentas, que muitas chamam de “arsenal”. A relação entre elas e a maquiagem começa quando passam a conhecer esse sistema de objetos. “A ligação não ocorre apenas quando aplicam os produtos no rosto para construir aparências e expressar identidades. Também se dá no encantamento que a manipulação desses itens produz. Sem o domínio do saber das classificações específicas de tais produtos de acordo com o sistema que circula principalmente através das redes sociais, é difícil atingir os resultados esperados com a pintura facial. O resultado é ficar aquém das expectativas pessoais e sociais”.
Márcia Mesquita cita o antropólogo, escritor e filósofo francês Claude Lévi-Strauss para esclarecer que organizar objetos que nos cercam é uma forma de classificar e compreender o mundo. Um objeto só tem utilidade porque foi classificado como útil. “O conhecimento deste sistema é primordial para o entendimento do fenômeno da maquiagem, pois a classificação dos produtos utilizados é o primeiro passo para a criação do rosto maquiado. O ordenamento dos produtos e as etapas de aplicação são consideradas partes importantes desta técnica corporal”, ressalta Márcia em seu artigo para REDIGE. “A própria palavra ‘cosmético’, que muitas vezes designa os produtos usados no rosto e no corpo, vem do termo kosmos, que em grego significa ordem. O sistema classificatório, assim como em outros fenômenos de consumo, está sempre presente orientando as práticas e seus significados”.
Este sistema não é criado exclusivamente por usuárias, produtores ou profissionais da área. É uma criação conjunta desses atores, especialmente nos usos que as consumidoras dão aos produtos. Isso reflete não só a diversidade de práticas e técnicas, mas também os significados sociais que a maquiagem promove. A indústria de cosméticos é um setor com grande potência no cenário econômico mundial – e o Brasil é um de seus principais mercados. Suas estratégias de marketing para lançar itens e influenciar consumidores costumam ser bastante eficazes. No entanto, o desenvolvimento de novos produtos e as estratégias para vendê-los não são responsabilidades exclusivas das empresas: também dependem dos consumidores. “Por mais que as empresas do ramo tenham ferramentas de influência, a relação de consumo do tipo de indivíduo que se torna especialista no que consome não é de simples submissão às vontades do mercado”.
No universo em que a pesquisa foi realizada (mulheres das camadas medianas da sociedade, com nível superior, entre 20 e 50 anos de idade, de várias cidades brasileiras), a maquiagem tornou-se algo especial justamente devido ao consumo. Essas pessoas veem usos singulares para os produtos, mas, ao mesmo tempo, se valem de repertórios adquiridos em grupos. “Assim como o sujeito que os utiliza, objetos possuem ‘biografias’, trajetórias fragmentadas e atravessadas por diferentes pontos de vista, influências etc. Esse sistema classificatório não tem uma fonte única e homogênea, assim como algumas classificações terão percepções ligeiramente diferentes de indivíduo para indivíduo, devido ao processo de singularização promovido pelo uso”.
A pergunta que fica no ar é: Como o consumo pode transformar um produto produzido em massa em algo singular, especial, único? Márcia Mesquita recorre ao antropólogo inglês Daniel Miller, que, desde a década de 1980, estuda as relações humanas com as coisas e as consequências do consumo, para responder. Para Miller, é necessário olhar para o consumo de bens de massa como uma forma de compreensão do processo de objetificação e subjetivação nas sociedades modernas. O consumo seria um processo que transforma o objeto de “símbolo distante e precificado em artefato carregado de conotações particulares inseparáveis”. Dessa forma, objetos produzidos por processos característicos da Modernidade, como divisão e alienação da força de trabalho, além da liberação de laços tradicionais, são “desalienados” pelos indivíduos em processos subjetivos de criação de identidades, filiação a grupos etc. “Por isso, um mesmo objeto e seus usos podem adquirir variados papéis para diferentes grupos sociais, gêneros etc”.
A partir desta apropriação individualizada, os produtos se tornam tão corresponsáveis pela criação dos rostos maquiados quanto as técnicas manuais adquiridas por suas consumidoras. São objetos de consumo que possuem uma forma de “tecnologia do encantamento”. Este encantamento age sobre as consumidoras de maneira que elas se apropriam destes produtos. “No caso da maquiagem, a apropriação se dá tanto na busca por informações (especialmente em meios digitais), como em sua escolha, experimentação e compra. E também ocorre na criação de um acervo. A construção de subjetividades e identidades a partir da manipulação da aparência também é um momento de apropriação dos produtos, mais especificamente quando são usados no rosto, um dos principais marcadores da singularidade do indivíduo”.
Não podemos esquecer que a customização e a intervenção sobre mercadorias industrializadas são uma forma poderosa de apropriação. Neste tipo de prática, incluem-se fenômenos como o “colecionismo”, quando os objetos se tornam especiais ou “sagrados” ao serem retirados da massa impessoal do mercado, passando a pertencer ao sistema classificatório do consumidor. Com isso, formam “conjuntos” com significados próprios. “Um batom, um pó compacto ou uma paleta de sombras, mesmo sendo produzidos em larga escala e vendidos de forma ‘impessoal’, ao serem desejados e/ou adquiridos pelo indivíduo ganham um significado especial e passam a compor a subjetividade e todo o espectro de relações que é aquela pessoa”. Entre amantes de maquiagem, o ato de consumir pode ganhar ares de colecionismo: “É comum possuir dezenas, e até centenas, de produtos do mesmo tipo. A posse faz parte da subjetividade desses indivíduos”.
Márcia relata que conheceu uma menina de 13 anos, moradora do bairro carioca de São Conrado. “Por ser muito jovem, ela disse que sua família não a deixava usar muita maquiagem, apenas algum detalhe mais “divertido”, segundo ela, como o delineador (risco em cima dos cílios superiores) de glitter dourado que usava no dia. No entanto, ela era uma grande colecionadora de maquiagens e me mostrou imagens da sua penteadeira decorada com um espelho de camarim, com luzes na moldura, e cheia de caixas de acrílico exibindo produtos 11. As fotografias também mostravam dentro das gavetas do móvel, onde parecia haver muitos produtos. Uma das fotos que mais me impressionou foi a gaveta de blushes, com cerca de 30 itens de marcas nacionais e estrangeiras. Perguntei se nem ao menos em casa ela usava os produtos, imaginando uma brincadeira como fazia quando eu era criança, de me “maquiar de adulta”. Mas no caso dela, a brincadeira era com produtos “de verdade”.
E aqui voltamos à questão do “arsenal”. A expressão é muito usada entre consumidoras e significa um acervo de produtos organizado e sempre “de prontidão” para ser usado, pois sua desorganização ou falta pode ter consequências danosas para o resultado da pintura. Ter muitos produtos, mantê-los organizados e limpos são etapas importantes do processo de maquiagem. O “arsenal” deve estar sempre pronto para as “batalhas” do dia a dia, mas, principalmente, para as ocasiões sociais formais, quando se criam expectativas sociais mais exigentes de apresentação de si, especialmente para as mulheres.
Neste sentido, algumas consumidoras se preocupam em não parecer compulsivas ou viciadas, apresentando-se como praticantes de um consumo racionalizado. Outras, porém, se descrevem com frases como “Ah, eu sou a louca da maquiagem mesmo” ou “Tenho esse problema, sou viciada”, associando a compra e a posse de muitos produtos a algo negativo. “Em comum às falas de todas, estão os comentários em relação às críticas de familiares e amigos sobre a quantidade de produtos que possuem. Como muitos autores do consumo consideram, algumas práticas são classificadas socialmente como conspícuas e supérfluas, em especial os itens relacionados à aparência, como roupas, acessórios e a própria maquiagem”.
Por conta do rígido julgamento moral em relação à quantidade de produtos que algumas mulheres adquirem, o “arsenal” não costuma ser apresentado fora dos ambientes de discussão sobre o assunto. No entanto, se para fora deste universo o “arsenal” é alvo de críticas, dentro do mundo das “viciadas” sua exibição é um símbolo de status. É importante frisar que possuir uma grande quantidade de produtos de maquiagem não tem, para o grupo de consumidoras estudadas na pesquisa da doutora Márcia, um sentido de ostentação com o gasto financeiro (embora possa ser alto) ou de exibição de produtos caros de marcas importadas (embora algumas colecionem esses produtos). “O que distingue umas das outras é o conhecimento dos produtos, da posse e do uso dos mesmos. Preços e marcas importam bem menos”.
Para essas consumidoras, o lugar onde a maquiagem é feita e guardada é importantíssimo. E os pontos mais importantes destes espaços são o que algumas consumidoras costumam chamar carinhosamente de “cantinhos da maquiagem”, espécie de altares onde os objetos são guardados ou exibidos. A organização dos produtos, a presença de ao menos um espelho e a iluminação são fundamentais.
“Como na pintura nas artes plásticas, temos tintas de diversos materiais, pigmentos e materiais utilizados para misturá-los, além de diferentes tipos de pincéis, espátulas, telas, suportes para telas etc. Atualmente, uma loja de produtos de maquiagem se assemelha muito a uma loja que vende materiais de pintura e desenho, pela variedade de cores e texturas de produtos e formatos de pincéis. Assim como um pintor precisa conhecer os materiais para atingir o efeito que deseja em suas pinturas, o mesmo conhecimento é necessário para a pessoa que maquia. Portanto, a primeira divisão de grandes categorias é em relação ao tipo de produto: maquiagem e ferramentas”.
Em sua pesquisa, a antropóloga demonstrou que a apropriação dos produtos de maquiagem não é só uma relação de compra e uso utilitário para embelezar o rosto, mas algo que evidencia aspectos socioculturais relevantes. Maquiar-se é uma forma de manipulação de traços do rosto e características da pele através de produtos e técnicas de acordo com padrões apreendidos socialmente.
“Durante os quatro anos de doutorado, um fenômeno me chamou a atenção e, ao mesmo tempo, me surpreendeu, gerando reflexões acerca das concepções de feminino e ‘feminilidade’. Por se tratar de um tema ainda pouco estudado nas Ciências Sociais e, assim como outras temáticas dentro da esfera do Consumo, marginalizado, tinha um pouco de receio de dizer o que estava estudando em determinados contextos. Mas fui surpreendida pela reação de algumas colegas professoras e pesquisadoras quando mencionava meu objeto de estudo”, relata Márcia Mesquita em seu artigo. “Minha expectativa era um comentário educado, mas desinteressado, ou algo técnico, indicação de bibliografia. No entanto, quase todas as reações eram declarações como: ‘Não sei me maquiar’, ‘adoro maquiagem, mas sou péssima’, ‘queria saber me maquiar’. Essas frases vinham acompanhadas por sorrisos tímidos e sinais de nervosismo”.
Márcia também pôde “saborear” reações completamente diversas dessas em que algumas mulheres demonstravam vontade de aprender a se maquiar ou comentavam suas inseguranças pessoais. Algumas interlocutoras reagiam com uma forte rejeição ao tema. “Não se tratava de acusar meu trabalho como algo irrelevante para virar uma tese, mas afirmações como ‘eu sou mulher e não uso maquiagem’, ‘nem toda mulher tem que usar maquiagem’, ‘essas patricinhas maquiadas fúteis’, ‘maquiagem é uma imposição’. Acredito que essas reações negativas, assim como as das que manifestavam vontade de usar, têm origem no processo de ‘iniciação’ do gênero feminino, no qual esses símbolos marcadores são, muitas vezes, declaradamente impostos”.
Artigos relacionados