O projeto ‘Moda Circular – O Início de um Novo Ciclo para a Indústria da Moda’, fruto de uma parceria entre o SENAI CETIQT e a Laudes Foundation, tem promovido ações extremamente importantes que nos mostram o cenário da transição da moda brasileira para um modelo mais circular de produção e consumo. Dentro desse projeto acompanhamos, recentemente, inciativas como a live na qual foram debatidas as questões do projeto A História que a Moda Não Conta, idealizado pela designer e consultora Julia Vidal, com relação a uma necessária reformulação no vocabulário para tornar o meio menos afeito a estrangeirismos dando ênfase a uma linguagem baseada na nossa brasilidade, história, ancestralidade, aí incluídos hábitos e costumes. Só para vocês terem ideia sintam a importância da reflexão proposta pelo designer residente da Casa de Criadores, Rafael Silvério: ‘O quanto o termo pretinho básico ainda reforça uma ideia de colonização? Quando uma mulher branca diz isso nesse país, que foi o último a abolir a escravidão, será que está falando mesmo do vestido preto do midi acinturado de Givenchy? Ou há traços de racismo nessa expressão?’. Bom, lá no Youtube do SENAI CETIQT, você ainda pode conferir este debate.
E para a nossa alegria foi promovido um segundo encontro virtual, conectando todos os integrantes da cadeia produtiva da moda, do universo acadêmico e os apaixonados pelo tema. Desta vez, A História que a Moda não Conta lançou luz sobre uma moda plural, que respeita e incentiva a criatividade a partir da diversidade de povos e culturas e o que está sendo feito para uma conexão entre os espaços de Educação. Alinhavando as conversas, Julia Vidal, mestre em Relações Étnico-Raciais, que desenvolve consultorias e conteúdo de educação que valorizam a diversidade e a cultura brasileiras através da marca Julia Vidal Etnias Culturais. Pudemos conferir as perspectivas africana, a partir do olhar de Mohammed Yassin, da Costa do Marfim, e doutor em Letras pela USP; indígena, por Dilmar Puri, idealizador da Universidade Indígena Pluriétnica Aldeia Marakanà e mestrando em Relações Étnico-Raciais, e afro-brasileira por Daise Rosas Natividade, da ENAFRO (escola que fortalece o afroempreendedorismo) e Afreaka Brasil Fashion Business.
Julia Vidal abriu os trabalhos falando sobre uma formação de moda enriquecida de brasilidade partir da pluriculturalidade. “Desde 2003 foi promulgada a Lei 10.639, que trata do ensino de história e cultura afro-brasileira. Essa lei foi ampliada em 2008 para o ensino e cultura afro-brasileira e indígena. Estou ressaltando um assunto com 18 anos de história, mas que ainda tem muitos desafios para a sua implementação desse conhecimento na moda. Desde a formação até a questão de como isso vai se refletir nas práticas da produção com a formação de “sementes”, os alunos são sementes de transformação da moda brasileira”.
E o que história a moda brasileira não conta na opinião de Daise Rosas, consultora em empreendedorismo e também gestora da Black Pages Brazil? “Uma moda afro. E, quando apresenta, geralmente é de uma forma jocosa. Não apresenta com o glamour que a moda afro-brasileira possui desde a criação das estampas, que revelam a demonstração do poder ou da presença feminina ou masculina, até a questão da coletividade de um povo africano. Nossa cultura afro-brasileira precisa ser representada não exclusivamente pelo samba. A gente tem a moda que transcende esse processo de não-pertencimento que nos apresentam no cotidiano. Nós somos uma moda afro-brasileira na essência das nossas construções”.
Para Dilmar Puri, idealizador da Universidade Indígena Pluriétnica Aldeia Marakanà, “a história indígena, assim como a história negra, não é contada. Ou, quando é contada, é de uma maneira estereotipada, super erotizada, digamos, negativa. Não serve para a causa indígena. Mas, para além disso, eu gostaria de chamar a atenção das pessoas que trabalham com moda que precisam respeitar os códigos sagrados para determinados povos. O indígena quer respeito
Mohammed, nascido na Costa do Marfim, e doutor em Letras pela USP, lembra que “As pessoas que vieram da África e foram escravizadas não podiam usar as roupas tal qual as que eram confeccionadas no continente. A partir da Abolição da Escravatura até os anos 1970, foi tímida a vinda de africanos ao Brasil. A partir daí, já sentimos a presença dos africanos por conta de convênios entre universidades do Brasil e da África. Só nos anos 90, é que os africanos que chegam aqui assumem totalmente a sua identidade ao se vestir e o negro afro-brasileiro tem a oportunidade de fazer uma grande conexão”.
E como é a visão do brasileiro com relação à diversidade dos povos africanos? Mohammed lembra que, na faculdade de Letras, ele era o único negro em sala de aula. E, na sua terra natal, a Costa do Marfim, os homens usam determinados uniformes quando estão no primário, no secundário. “No entanto, quando chegam à universidade, a sociedade considera que você já é responsável o suficiente para se vestir de forma social, uma junção entre a tradição africana e a modernidade. Aqui no Brasil, alguns colegas de faculdade diziam que gostavam dos tecidos, mas que não usariam. Outros diziam que nós éramos príncipes na África. Os tecidos africanos só começaram a ser vendidos com força no Brasil a partir de 2009. Até então, a gente precisava trazer nossas roupas confeccionadas por alfaiates e feitas sob medida”, revela, acrescentando que “nos países onde existem classes sociais, as pessoas estão preocupadas com o ter, enquanto nas castas da África, elas se preocupam com o ser, a essência”.
“Na aproximação de dois mundos, o que o Mohammed sentiu foi uma série de pré-conceitos em relação à África, aos africanos e à vestimenta. Isso a gente percebe muito, também, quando se traz um ensino diferenciado, que tem que passar por uma “desblindagem” cognitiva”, pontua Julia Vidal. Já Daise lembrou que esse desbloqueio cognitivo “precisa que seja feito em relação ao continente africano e seus diversos países com urgência. Na realidade, as pessoas têm uma compreensão totalmente equivocada do continente africano. Elas sempre imaginam aquilo que veem na mídia: a pobreza, a falta de conhecimento e de cultura. Se soubessem que a universidade mais antiga do mundo foi criada dentro do continente africano, talvez começassem a ter uma outra lógica. É preciso começar a entender que o continente africano vem com toda a nossa história. É o espaço que constrói essa parte da América do Sul. A ENAFRO vem para reapresentar esse novo cenário do empreender não apenas da perspectiva do individual, mas do coletivo, e temos o exemplo da iniciativa da África-Brasil Fashion Business, gestada por quatro mulheres negras, cada uma com seu saber e que sedimenta essa estrutura que a Julia está alicerçando e desenvolvendo com seus cursos. Um processo coletivo que possa abraçar e trazer as diversidades dos países africanos. A Black Pages vem também congregar essa diversidade de afro-empreendedores no sentido de apresentar quem são essas pessoas para o mercado socioeconômico”.
Sobre a legitimação dos saberes sob a perspectiva do indígena, Dilmar Puri falou sobre o processo de formação de uma universidade pluriétnica indígena, quais são as pontes que estão sendo construídas e os materiais que estão sendo construídos e levados para outros espaços para que se possa produzir, multiplicar e capilarizar esse conhecimento. “A lei 11.645 que regula o ensino de cultura e língua indígenas nas escolas é inexequível. Quem vai dar aula de cultura e línguas indígenas nas escolas? Aí a gente chega na questão da universidade indígena e vê que o Brasil não tem nenhuma universidade indígena reconhecida. Outros países da América Latina, como México, Argentina, Equador, Colômbia já têm. Alguns têm mais de uma, nós não temos nenhuma. Porque o saber indígena é totalmente diferente do saber do colonizador europeu. Aqui, na Aldeia Marakanà, a gente já vem se debruçando sobre essa questão do reconhecimento de uma universidade indígena há muitos anos, antes mesmo da promulgação da lei. O Brasil precisa ver quem ele é de fato. O Brasil é preto e é indígena. A causa negra não é de minoria. É uma causa minorizada, tornada menor politicamente. Assim como a causa indígena. O Brasil é um dos maiores países indígenas do mundo e a gente não sabe disso. Nossa luta aqui é para colocar, cada vez mais, os saberes indígenas no mesmo patamar dos saberes dos brancos”.
E ele acrescenta: “Nossos saberes são coletivos. Nós nos debruçamos durante muitos anos sobre esse assunto e chegamos a uma conclusão a respeito: cada aldeia já é uma universidade indígena. A nossa e todas as outras que existem no Brasil. Por estarmos num grande centro urbano, nós temos mais condição que os outros parentes de lutar por esse reconhecimento. Um dos motivos do genocídio, do racismo, da falta de assistência, da falta de direitos que os nossos povos sofrem, seja negro ou indígena, é por falta de reconhecimento daquilo que nós somos. Falta de liberdade para sermos aquilo que nossos ancestrais nos legaram. Só no Brasil são mais de 300 povos diferentes, mais de 300 nações, quase 300 línguas diferentes. É muito complexo. No mundo do indígena não tem produto como existe na sociedade colonizada”.
Portanto, a construção de saberes feita em diversos ângulos é um momento de imersão em mundos para entender os valores e as formas de relação com esses códigos culturais. No momento de co-criação de uma moda circular e sustentável haverá uma confluência de saberes e de preservação de cultura e de existência.
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