Aos 34 anos, o ator Orlando Caldeira gosta de exercer, na prática, a inquietude criativa e a sensibilidade, características pelas quais é conhecido entre seus melhores e mais íntimos amigos. Junto com o também ator Drayson Menezes, ele criou, no ano passado, a grife de saias masculinas Galo Solto. A marca fez sucesso na internet e, agora, os sócios acabam de abrir a primeira loja física. Fica em Ipanema, no Coletivo Afrocriadores, criado há dois anos por designers que pensam a moda afro como forma de expressão e buscam desconstruir padrões e estereótipos.
Essa quebra de paradigmas Orlando também vem encarando em sua vida pessoal desde que resolveu botar a mão na massa com o amigo, irmão da atriz Sheron Menezzes. Ele conta que a própria natureza do negócio está lhe fazendo rever conceitos arraigados: “No primeiro momento, a gente imaginou que só um público bem reduzido se interessaria pelas saias. Achamos que seriam artistas ou gente ligada a moda. Mas fomos surpreendidos. Pessoas que nunca olharam para peças mais ousadas são uma grande parte da clientela. Os homens veem as saias como peças elegantes, bonitas e versáteis que caem bem tanto num passeio quanto em um casamento”, diz Orlando, empolgado.
Já havia indícios, porém, de que a loja faria sucesso: o espaço físico foi uma sugestão dos próprios clientes, que queriam experimentar as saias antes de comprar. Mas Orlando não se engana em relação à dificuldade de emplacar a tendência no país. “Aqui ainda existe um preconceito muito forte. Sempre foi considerado tabu. Se a gente parar para pensar, porém, ao longo da história elas sempre estiveram presentes no vestuário masculino. Os samurais usavam. Os gregos, os romanos e os escoceses, idem. No Brasil ainda há quem tenha a ideia de que saia é algo que permeia apenas o universo feminino, mas não é”, comenta, acrescentando: “A boa notícia é que isso está mudando e tem cada vez mais homens com a cabeça aberta”.
A julgar pelas vendas da Galo Solto desde que começou online, esses homens estão principalmente nos estados do Rio, São Paulo, Bahia e Minas Gerais, maiores mercados do produto. As peças são produzidas e desenhadas pelos próprios sócios, que possuem uma confecção. A mãe e a irmã de Orlando fazem modelagem, molde-teste para aprovação e gradação das peças em um ateliê próprio. Acertou quem pensou em empresa familiar. De acordo com os dois atores/empresários, o público consumidor das peças é múltiplo. “Como eu disse, achávamos que seriam fashionistas e artistas, mas vai do caretão que está repensando padrões até os mais descolados e questionadores. É muito curioso ver quão diversos são os consumidores das nossas saias”, frisa Orlando.
Com o crescimento da empresa, os planos de exportar não estão fora do radar da dupla: “Ainda estamos organizando melhor essa questão de vender para o exterior”, revela Orlando, comentando o avanço feito pela Galo Solto. “Se no primeiro momento a gente estava à frente de tudo, agora temos uma pessoa para atender ao público e outra profissional para cuidar da rede social, para o produto ganhar visibilidade”.
Empreendedor desde criança, Orlando sempre quis viver de teatro – mas não acreditava que fosse possível. “Comecei a encenar no segundo grau, no grupo teatral do Colégio Visconde de Cairu, no Méier. A gente levava o curso muito a sério. Tínhamos um comprometimento grande. Quando saí de lá, montei o meu próprio grupo, a Cia Teatral Troupp Pas d’Argent. Logo no início, com o primeiro espetáculo, fomos indicados ao Prêmio Shell e nos apresentamos no Brasil todo e fora do país”, revela. “Hoje, esse grupo tem mais de 15 anos, cinco espetáculos no repertório e muitos prêmios. Aconteceu de repente e quando percebi estava vivendo da arte. Durante dez anos, meu sustento veio da companhia. Aprendi na prática a ter veia empreendedora. Acho que é algo cultural também. O brasileiro sempre precisa superar algo, ter jogo de cintura para realizar coisas boas”, comenta Orlando. Em seu histórico na TV constam, além da recentíssima “Verão 90”, as novelas “Boogie Oogie” e “I Love Paraisópolis”, na Globo.
Em agosto, o ator esteve no palco na peça “Oboró – Masculinidades Negras”, espetáculo criado pelo ex-BBB Rodrigo França que retratava a realidade de nove homens negros no Teatro Sesi, no Centro do Rio, ao lado de Danrley Ferreira, colega de Rodrigo na última edição do Big Brother Brasil, e do diretor de cinema Luciano Vidigal. Logo em seguida, emendou com ‘Ombela, a Origem das Chuvas’, no Centro Cultural Oi Futuro, no Flamengo. O espetáculo, voltado para o público infantil, falava sobre preservação do meio ambiente baseado no livro homônimo do escritor angolano Ondjaki.
No momento, Orlando curte a loja e aguarda o encerramento do financiamento coletivo do espetáculo “Negra Palavra”, pela plataforma de crowdfunding Benfeitoria. A peça vai investigar a atualidade da poesia de Solano Trindade, conhecido como Poeta do Povo, e considerado referência fundamental na luta por igualdade no país. É uma iniciativa conjunta da Companhia de Teatro Íntimo e do Coletivo Preto, formado em 2016 pelos artistas e realizadores Drayson Menezes, Orlando Caldeira, Licínio Januário e Sol Menezzes para fomentar e divulgar trabalhos que coloquem o homem e a mulher negros em papéis de protagonismo. O financiamento visa a arrecadar R$ 12 mil e se encerra às 23h59 do dia 5 de novembro. (https://benfeitoria.com/)
O próximo empreendimento já tem nome e sobrenome: Prêmio de Performance Negra. Será a primeira premiação do Rio de Janeiro voltada apenas para artistas negros. “Será uma forma de resgatar a nossa história e conseguir um olhar voltado para artistas que estão produzindo sua arte. Que a gente tenha a chance de documentar essa história de forma sólida”, aposta o ator, que tem como maior desejo o fim do racismo no Brasil. “Durmo e acordo pensando no que posso fazer para mudar a realidade, minha e de outras pessoas. Às vezes evito pensar demais, pois tenho uma tara por realizar sonhos e objetivos”.
SAIBA UM POUCO MAIS SOBRE A SAIA MASCULINA
Há mais de três mil anos, os homens já vestiam saias. Ou o que seriam aquelas peças ostentadas pelos sumérios? E o que o povo acha que são os modelitos vistos nas pinturas murais egípcias? Os romanos usavam túnicas, que nada mais são que vestidos. E seus másculos legionários se valiam de minissaias para facilitar os movimentos durante as batalhas sangrentas das quais participavam. Os povos do Oriente Médio, tão conservadores, usam túnicas (como a Kandura, dos árabes). Já os kilts dos escoceses são as peças que mais se assemelham às saias femininas como as conhecemos hoje.
No Brasil, o engenheiro, artista plástico, cenógrafo, decorador, escritor, arquiteto e estilista Flávio de Carvalho (1899-1973) escrevia uma coluna sobre arquitetura no “Diário de São Paulo” quando seu editor pediu que desenhasse uma roupa masculina. Flávio não apenas desenhou como resolveu, em 18 de outubro de 1956, desfilar com o modelo pelo Centro de São Paulo. Chamou o modelo de New Look, nomeou a “performance” de “Experiência Nº 3” e atraiu olhares com sua saia e sua blusa de mangas bufantes.
Outra veste que chamou a atenção do mundo foi a do ator Billy Porter, da série “Pose”, que foi usou um look masculino/feminino na 91ª edição do Oscar, em fevereiro deste ano. Tratava-se de uma mistura de smoking com saia longa, volumosa e rodada. O vestido-smoking de Porter, de 49 anos, era de veludo e foi desenhado pelo estilista Christian Siriano.
Bem mais jovem que Porter, Jaden Smith, filho do ator Will Smith deu uma bela lição quando tinha 18 anos e “se explicou” à revista “Nylon” por sua postura de andar por aí de vestidos e saias: “O mundo vai continuar me descreditando não importa o que eu faça e eu vou continuar não ligando. Aliás, vou continuar fazendo as mesmas coisas e se bobear, vou fazer outras coisas. Faço isso para que daqui cinco anos quando um garoto for para a escola usando uma saia, ele não apanhe por isso. Porque não vai importar”. Grande Jaden!
E assim caminha a humanidade.
*Com colaboração de Domênica Soares
GALO SOLTO
Coletivo Afrocriadores: Rua Gomes Carneiro 132, loja 104, Ipanema – 98120-3814
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