“O equilíbrio com relação ao fast fashion, sustentabilidade e tecnologia é desafiador, mas necessário. As novas tendências de propagação da moda geraram o see-now and buy-now fenômeno desencadeado pela tecnologia que reduziu o tempo entre a apresentação de um produto do mercado da moda e o seu real consumo, que até então era de seis meses. A tecnologia permite a produção eficiente, e a sustentabilidade é fundamental para reduzir o impacto ambiental do fast fashion. Uma abordagem equilibrada implica utilizar tecnologia para otimizar processos, reduzir estoques e escolher materiais sustentáveis, aqui está o ponto chave dessa equação”. A análise é da especialista em moda e sustentabilidade e integrante da Câmara da Moda da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG), Sâmara Merrighi.
Os diálogos entre inovação, sustentabilidade e fast fashion pautaram o talk “Inovações na Moda – Os Novos Caminhos“, mediado por Sâmara e com as participações de Pier Paolo, sócio fundador da Teceo; da consultora Tereza Cistina Horn; do sócio e diretor da Dito, empresa de tecnologia, Pedro Ivo e Nágila Gonçalves, da Isla, e realizado no Minascentro, como parte integrante da 30ª edição do Minas Trend – Maior Salão de Negócios da América Latina, promovida pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG), em Belo Horizonte.
Em entrevista exclusiva, conversei com Sâmara sobre as pesquisas que constatam que os consumidores estão dando preferência às marcas com proposta e que tenham uma pegada claramente social e de sustentabilidade. “Penso que essas mudanças são urgentes e necessárias. A indústria da moda é a segunda mais poluente ficando atrás apenas da indústria petrolífera. A maioria das peças comercializadas atualmente é feita de poliéster, fibra sintética obtida a partir do petróleo e leva 450 anos para decompor. Falo sempre que não existe Planeta B e falarmos de moda circular é pauta recorrente em diferentes públicos”, pontua.
Gosto de trazer um dado que é bem relevante: hoje existe uma estimativa de produção de 80 bilhões de roupas novas anualmente. Dessas, 40% são pouco ou quase nunca usadas e vão parar em aterros sanitários ou lixões. A cada segundo um caminhão de resíduos têxteis é jogado nos aterros sanitários pelo mundo. Vale a reflexão… – Sâmara Merrighi
À luz da fala de Sâmara, “marcas de sucesso estão inovando não apenas em produtos, mas em práticas sustentáveis, relacionamento com cliente, experiência e transparência. A confiança do cliente está ligada à transparência, responsabilidade social e ambiental, além de qualidade e inovação. Os consumidores estão se tornando mais conscientes e preferem marcas que abraçam a sustentabilidade social e ambiental. Isso é algo que está levando as marcas a repensar suas práticas e comunicações, adotando valores mais responsáveis. Esse é um caminho longo, mas necessário”.
Vice-presidente do Conselho Empresarial da Mulher Empreendedora (CEME) e integrante do Comitê Técnico de Economia Circular (ACMinas), Sâmara é também engenheira com especialização em Gestão de Negócios e experiência de mais de 20 anos em projetos nacionais e internacionais construindo habilidades multidisciplinares, fundadora e mentora na WabiResale, empresa de consultoria com foco em processos ESG para moda e podcaster do Programa Elas & Tal na CDL|BH, onde fala sobre Economias do Futuro e Empreendedorismo Feminino.
Para Sâmara, a presença no Minas Trend – o maior Salão de Negócios da América Latina foi algo importantíssimo: “Os resultados dessa edição foram extremamente relevantes e comprovou que o evento continua sendo um norte para o setor da moda, além de funcionar como excelente canal na relação de negócios entre expositores e clientes. Tivemos um balanço positivo, com expectativa de geração de mais de R$ 26 milhões em negócios e recebemos cerca de 7 mil visitantes durante os três dias. Esses números expressivos consolidam o evento como uma importante plataforma de geração de negócios para a indústria nacional, além de promover a qualidade e a versatilidade de seus segmentos. Estas foram as palavras do presidente da FIEMG, Flavio Roscoe, sobre os números apresentados. Estar nesse lugar falando sobre inovação e os novos caminhos da moda com o contexto e as inspirações dentro da cadeia produtiva pensando no equilíbrio entre o fast fashion, a sustentabilidade e as inovações da indústria 4.0, só reforça a importância do tema e do caminho que temos pela frente. Eventos como o Minas Trend contribuem para a visibilidade da moda brasileira e fazer parte impulsiona a promoção de práticas sustentáveis e inovação”.
Uma abordagem equilibrada implica utilizar tecnologia para otimizar processos, reduzir estoques e escolher materiais sustentáveis. Aqui esta o ponto chave dessa equação – Sâmara Merrighi
É um caminho sem volta o trabalhar com tecnologias verdes e produzir com fontes renováveis. Sob a perspectiva de Sâmara “em primeiro lugar temos que lembrar que o Brasil é a maior cadeia têxtil completa do Ocidente, sendo o único a possuir desde a produção das fibras, como plantação de algodão, até os desfiles de moda, passando por fiações, tecelagens, beneficiadoras, confecções e forte varejo. Dentro desse cenário e porque não um com um olhar de novas oportunidades enxergamos uma equação contendo três importantes elementos – Inovação, Fast Fashion & Sustentabilidade, então eu destaco:
- Consciência do Consumidor: Os consumidores estão cada vez mais conscientes da importância da moda sustentável e buscam marcas comprometidas com práticas ambientalmente amigáveis.
- Zero Waste: essa tendência na moda busca reduzir o desperdício e otimizar o uso de materiais, incentivando designs mais eficientes.
- Upcycling: aqui falamos da técnica de transformar peças antigas em novas, contribuindo para a economia circular na moda.
- Materiais Sustentáveis: A busca por materiais e tecidos sustentáveis, como algodão orgânico e fibras recicladas, está se tornando mais comum na indústria.
- Energia Renovável: A transição para fontes de energia renovável na produção têxtil ajuda a reduzir as emissões de carbono.
- Circularidade: A ideia de “fechar o ciclo” da moda, reutilizando roupas e evitando o desperdício, é um foco crescente. Esse é o meu favorito e maior aposta.
- Responsabilidade das Marcas: As marcas estão sendo pressionadas a adotar práticas mais sustentáveis e transparentes em suas operações. Nosso papel de consumidor é fundamental nesse ponto… entra a necessidade de questionar as marcas e optar por aquelas que estão alinhadas aos nossos valores.
- Inovação Tecnológica: Tecnologias como impressão 3D e blockchain estão sendo usadas para criar roupas mais sustentáveis e rastreáveis. Além de inúmeros robôs e a IA na melhoria da experiência com clientes.
- Regulamentação Ambiental: Governos e órgãos reguladores estão implementando medidas para reduzir o impacto ambiental da indústria da moda.
- Colaborações e Educação: Parcerias entre marcas, ONGs e instituições educacionais estão impulsionando a conscientização e a inovação na moda sustentável.
A economia circular é uma nova forma de pensar o nosso futuro e como nos relacionamos com o planeta. Para isso, materiais circulam no máximo de seu valor como nutrientes técnicos ou biológicos em sistemas industriais integrados, restaurativos e regenerativos. Sâmara detalha o que tem visto in loco nas empresas: “Existem muitas inciativas, e algumas eu considero distantes da nossa realidade, ou mesmo escala ideal para o varejo, mas podemos destacar: tecidos antibacterianos e antiodor, onde são usadas nanopartículas de prata e zinco nos tecidos para criar roupas antibacterianas e que combatem o odor, tornando-as ideais para roupas esportivas e íntimas; tecidos antivirais, como o produzido pela Dalila Têxtil, foi uma das pioneiras em tecido com acabamento antiviral que passou por testes laboratoriais seguindo normativas científicas reconhecidas internacionalmente, como a AATCC 100 (antibacteriana) e ISO18184 (antiviral); tecidos à orova d’água, proteção solar, essa é mais conhecida, mas também cada vez mais necessária, uma vez que podem oferecer proteção eficaz contra os raios UV, tornando-as ideais para atividades ao ar livre, além de tecidos mais flexíveis e duráveis. De forma um pouco mais explorada também podemos citar os resíduos têxteis que entram como insumo para novos produtos confirmando o fechamento do ciclo de recursos, e evitando o desperdício”.
A técnica do upcycling – que se carateriza por transformar um material a ser descartado em um item com maior valor agregado e nova destinação de uso. Para Sâmara, “falar de upcycling torna-se útil, necessário e acessível. Penso que essa é uma forma de estimular o crescimento de toda a cadeia com vários benefícios para a indústria da moda e para o meio ambiente, como por exemplo contribuindo para redução de resíduos, economia de recursos, criatividade e originalidade… inclusive destaco a @re.tramna, marca mineira que participou do desfile da A.Criem. A designer mineira, Lívia de Castro foi a única brasileira a chegar à final do prêmio Redress Design Award, em Hong Kong. Ainda destaco a conscientização ambiental, educação do consumidor… uma vez que somos levados a questionar a origem das roupas e a fazer escolhas mais sustentáveis… enfim sou fã dessa técnica”.
O upcycling na moda, não é apenas uma prática sustentável, mas também fonte de criatividade e inovação na indústria – Sâmara Merrighi
Sobre o mercado de second hand, que é a sua maior habilidade, Sâmara ressalta ser embaixadora dos brechós pelo Sebrae-MG, o que, portanto, a faz “estudar muito sobre o que vem acontecendo no meio e buscar as tendências do mercado para direcionar as empreendedoras de um nicho que só cresce. Em uma recente pesquisa do SEBRAE -MG foram identificados 3 mil brechós no estado; 2 mil deles abertos a partir de 1919; 600 mil em Belo Horizonte e os demais espalhados pela região metropolitana. Esses só os formais, existem além disso grupos de desapegos e vendas sem muita estruturação. Tanto que o Sebrae identificou a oportunidade de montar uma capacitação multidisciplinar envolvendo empreendedorismo, custos, marketing, planejamento, tudo pensando em profissionalizar e criar melhores condições de trabalho para as novas empresariais. Foi uma experiência única fazer parte desse projeto que teve uma Caravana Moda Brechó, um circuito por vários brechós na capital, além de um debate na CasaCor/MG com brechós de luxo e a franquia Peça Rara… tudo isso como mais uma oportunidade de educar o consumidor para uma nova forma de consumir. Os números do mercado de second hand são animadores e, de acordo com um levantamento do Instituto de Economia Gastão Vidigal da Associação Comercial de SP (IEGV/ACSP), o volume de vendas em brechós cresceu mais de 30% em 2022, ultrapassando o faturamento do ano anterior de R$ 2,9 bilhões.
O mercado de segunda mão está crescendo, à medida que os consumidores buscam alternativas sustentáveis. É uma maneira de prolongar a vida útil das roupas e reduzir o desperdício – Sâmara Merrighi
Hoje as palavras-chave são responsabilidade e transparência. “Fundamentais. Os consumidores desejam saber sobre a fabricação e as condições de trabalho, incentivando a indústria a adotar práticas mais responsáveis. Aqui vale a pena a gente falar sobre o Índice de Transparência da Moda. Iniciado em 2016 pelo Fashion Revolution global, ele tem como objetivo analisar em que medida as grandes marcas e varejistas de moda estão comunicando ao público sobre suas cadeias produtivas – e incentivar uma maior prestação de contas em relação aos impactos socioambientais do setor. E como resultado de 2022 fica claro que muitas grandes marcas e varejistas de moda do mercado brasileiro ainda não deram o primeiro passo em direção à mudança sistêmica: a transparência”, analisa Sâmara.
Em uma economia circular o desperdício é considerado um erro de projeto – Sâmara Merrighi
Sobre a possibilidade de a economia circular haver furado a bolha do mainstream das indústrias e empresas de moda, Sâmara acredita que ela está “gradualmente se tornando parte do fluxo principal da indústria da moda… Isso acontece à medida que as empresas reconhecem os seus benefícios econômicos e ambientais. É muito importante falarmos que em contraposição à economia linear – onde os produtos eram fabricados, usados e descartados, vem ganhando mais relevância e são muitos os exemplos: seja no Design Sustentável, reciclagem e reutilização… Destaco, então, o papel dos brechós por aqui. A inovação de materiais, aluguel ou assinatura de roupas em um modelo de negócios que permite aos consumidores alugar ou assinar o recebimento de roupas reduzindo a necessidade de compra de novas peças. Ou seja, mudanças como essas estão quebrando a “bolha” do consumo desenfreado e da rápida obsolescência, tornando a moda mais consciente e alinhada com os princípios da sustentabilidade”.
Mantendo a mesma linha de raciocínio, Sâmara analisa as disparidades que há entre as regiões do país quando falamos de economia circular. “Elas ainda existem, com algumas regiões liderando a adoção da economia circular, enquanto outras estão em estágios iniciais de transformação, destaco alguns pontos significativas e influenciados por diversos fatores:
- Acesso a Recursos: Regiões com fácil acesso a materiais reciclados e tecnologia de reciclagem, podem ter vantagens na implementação de práticas circulares.
- Consciência e Educação: para mim essa é a chave da mudança e as regiões onde a conscientização sobre questões de sustentabilidade e economia circular é maior tendem a adotar essas práticas mais rapidamente.
- Demanda do Mercado: se os consumidores são mais conscientes e dispostos a apoiar a moda sustentável então eles podem (e devem) impulsionar a economia circular”.
Sâmara prossegue dizendo que “por fim, destaco alguns pontos que valem para diferentes desigualdades e influenciam diretamente no desenvolvimento local: Infraestrutura – pensando em instalações de reciclagem eficiente influenciando em logística reversa por exemplo, apoio governamental e todos os incentivos necessários e cultura empresarial disposição/conscientização das empresas locais em adotar práticas circulares. É fundamental que governos, empresas e organizações não governamentais trabalhem juntos para promover a conscientização, fornecer incentivos e criar infraestrutura para a economia circular em todas as regiões do país”.
Sobre a moda brasileira, a profissional projeta que ela está “se adaptando às novas tendências, incorporando valores sustentáveis, diversidade e tecnologia, e, ao mesmo tempo, mantendo a essência criativa e cultural única que a torna reconhecida internacionalmente”. Acrescenta, no entanto, que “existe um ponto de equilíbrio que é muito difícil de se encontrar, as demandas do mercado, os entraves da economia e a quantidade de ofertas para os consumidores. São fatores que precisam ser considerados para o próximo passo de todo empreendedor brasileiro… Especialmente da moda. O futuro da moda no Brasil dependerá da capacidade da indústria de equilibrar esses aspectos e atender às crescentes demandas dos consumidores conscientes. Isso não apenas promoverá uma moda mais sustentável, mas também contribuirá para um desenvolvimento econômico equitativo”.
A moda brasileira está caminhando em direção à sustentabilidade, uma maior consciência social e ambiental, o que é promissor para seu futuro – Sâmara Merrighi
Se nesta entrevista ela prospectou sonhos para a moda, para o Brasil e para a economia, perguntamos sobre os sonhos pessoais. Mãe de quatro filhos – todos meninos -, ela diz: “Só consigo pensar que quero um mundo melhor para eles. Encontrei na moda circular um caminho para fazer a diferença… dar voz para outras mulheres e pautar o tema é muito relevante. Me tornar uma porta voz do assunto e explorar as diversas oportunidades que a moda circular propõe ao consumidor, além de alcançar cada vez mais pessoas antenadas com o discurso em torno dos hábitos de consumo consciente e preocupado com o futuro sustentável do planeta, definitivamente é realizar um sonho… não só por mim, mas para toda uma futura geração”.
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