*Por Flávio Di Cola, diretamente de Cannes, e Alexandre Schnabl, do Rio
Quem já ouviu falar em Orry-Kelly (1897-1964), a não ser um punhado e meio de cinéfilos? Possivelmente quase ninguém se recorda. Entretanto, esse importante costume designer da Hollywood clássica foi lembrado durante os 15 dias do Festival de Cannes com o documentário “Women he’s undressed”, o qual provavelmente será visto em breve por uma legião de telespectadores nos sofás de suas salas, em algum canal de TV a cabo. Figura peculiar da cinematografia norte-americana, o figurinista vestiu dezenas de estrelas do primeiríssimo escalão em longa-metragens que fizeram história, como “Casablanca” (1942) e “Jezebel” (1938) , garantindo para sempre seu nome no panteão de talentos que marcaram o cinema global.
Segmento geralmente relegado a segundo plano nos festivais, os biodocumentários que têm com tema personalidades do próprio cinema e do mundo do espetáculo andam conquistando um espaço maior nas celebrações do cinema mundial, como pode ser visto nesta 68ª edição do evento que terminou neste último domingo (24/5). Personalidades emblemáticas da cinematografia mundial e do showbizz – como Amy Winehouse, Orson Welles, Steve McQueen, Gerard Depardieu, Sidney Lumet, Alfred Hitchcock ou François Truffaut – foram lembrados através de excelentes realizações exibidas em sessões especiais no contexto da mostra Cannes Classics, que se ocupa primordialmente em apresentar importantes títulos restaurados ou em prestar homenagens a grandes figuras da história da Sétima Arte, como foi o caso de Ingrid Bergman.
A estrela de origem sueca, além de se transformar no símbolo de todo o evento, também foi biografada em “Ingrid Bergman-In her own words” (Jag är Ingrid, 2015) do documentarista sueco Stig Björkman, exibido com toda a pompa e com a presença dos três filhos que ela teve com Roberto Rossellini, além de autoridades do Reino da Suécia. Mas essas produções não se restringiram a essa audiência limitada.
Dentro da avassaladora onda biográfica que varre o mundo editorial e o show bizz, surgiu mais um disputado produto audiovisual que tem sido muito bem recebido não só nas mostras específicas, como também por distribuidores do mundo inteiro reunidos aqui em Cannes: as cinebiografias em longa-metragem, principalmente aqueles títulos que abordam a trajetória de poderosas e trágicas personalidades artísticas como a compositora e cantora Amy Winehouse.
O controvertido documentário “Amy” do diretor Asif Kapadia (o mesmo de “Senna”, de 2010), ostensivamente repudiado pela família da artista, conseguiu a proeza de participar do festival como filme “fora de competição” da Seleção Oficial deste ano. Mas quem vai assegurar o acesso do grande público a essas obras serão mesmo os representantes do mercado de filmes presentes em Cannes. E eles têm se mostrado animados com a possibilidade de venda de documentários em geral para os departamentos de jornalismo de redes de televisão do mundo inteiro.
Todo esse dinamismo do mercado de cinebiografias documentais verificado em Cannes traz outro saudável desdobramento: tirar do esquecimento algumas personalidades importantes e hoje completamente esquecidas pelo público, como é o caso do surpreendente “Women he’s undressed” (exibido só para potenciais compradores) de autoria de Gillian Armstrong sobre um dos maiores figurinistas da história do cinema, Orry George Kelly, hoje pouquíssimo lembrado, mas cujo trabalho é incessantemente revisto em clássicos nos quais trabalhou.
Orry-Kelly, como era de fato conhecido na indústria do cinema, deu expediente durante 30 anos em quase todos os grandes estúdios de Hollywood, especialmente a Warner Bros., onde foi peça importante no estabelecimento do shape de atrizes como Bette Davis, Kay Francis, Olivia de Havilland, Katherine Hepburn, Dolores Del Rio, Ava Gardner, Ann Sheridan, Barbara Stanwick e Merle Oberon, ou na excelência do guarda-roupa de clássicos como “Rua 42” (42nd Street, 1933), “Relíquia macabra” (The maltese falcon, 1941) e “Casablanca” (Idem, 1942), dos musicais “Sinfonia de Paris” (An American in Paris, 1951) e “Oklahoma!” (Idem, 1955), e ainda de comédias de Billy Wilder, como “Quanto mais quente melhor” (Some like it hot, 1959) e “Irma la Douce” (idem, 1963), entre dezenas de outros.
Gay assumidíssimo, beberrão e desbocado, não se submetia ao poder das estrelas e dos executivos dos estúdios, como o autocrático Jack Warner que o demitiu várias vezes, mas sempre voltando atrás por força da competência do figurinista e das intervenções das amigas de Orry-Kelly de dentro do estúdio, como Ann Warner, mulher do próprio chefão.
Talvez a sua participação na construção da imagem cinematográfica de Bette Davis – que o adorava – durante o auge dela como estrela número 1 do cinema, entre 1938 e 1943, tenha sido a sua obra mais notável para a Sétima Arte. Orry-Kelly sabia exatamente como ressaltar através dos figurinos o pathos violento da atriz, modulando como ninguém a vilania e o sentimentalismo das suas personagens em filmes inesquecíveis como “Jezebel” (Idem, 1938), “A carta” (The letter, 1940), “Tudo isso e o céu também” (All this and heaven too, 1940), “A grande mentira” (The great lie, 1941) ou “Estranha passageira” (Now voyager, 1942), este último ambientado num Rio de Janeiro de sonhos em que Bette Davis veste um conjunto de chapéu, tailleur e sapatos bicolores que entraram definitivamente na história da moda do século XX.
*Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e ex-coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria
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