DFB FESTIVAL: Almir França assina coleção fascinante a partir do upcycling de uniformes dos trabalhadores da Enel


A coleção é fruto da parceria com o departamento de sustentabilidade da empresa Enel e 100% realizada a partir de técnicas de upcycling com o reaproveitamento dos uniformes dos funcionários. A proposta se baseia em dar nova vida a peças que seriam descartadas, sejam roupas ou sobras materiais, diminuindo tanto a quantidade de resíduos lançados no planeta quanto a necessidade de produzir matéria-prima. “Pensamos em peças de vestuário que fossem possíveis para uma moda casual. Os looks retrataram o processo transformador de calças em vestidos, saias e blusas. Mas, por se tratar de uma empresa que trabalha com energia, tínhamos que encontrar caminho direto na teoria do reuso, por isso todo beneficiamento, e para os bordados utilizamos os micro resíduos deixados no processo da confecção”, comenta o designer Almir França

Impecável, magistral, puro encantamento o desfile “Energia by Almir França” durante a incensada 25ª edição do DFB Festival, multiplataforma da sinergia entre moda autoral, cultura, incluindo capacitação, empreendedorismo, música, gastronomia, realizada em Fortaleza (CE), Cidade Criativa do Design, título concedido pela Unesco em 2019. Almir França, que atuou na aplicação do Projeto Ecomoda em mais de 20 unidades em comunidades do Rio de Janeiro e interior do Estado do Rio, mostrou a potência do upcycling ressignificando uma nova produção seja no âmbito da moda e/ou incluindo todas as artes. A coleção idealizada a partir da  filosofia da Enel de reaproveitamento dos uniformes dos funcionários foi desenvolvida com base no conceito do criar, renovar e ressignificar peças e materiais. “Estamos há um ano desenvolvendo produtos a partir de resíduos de roupas usadas em matéria-prima para novos negócios e oportunidades. Estou falando muito dos uniformes dos trabalhadores, precisamente dos eletricistas. É uma questão muito séria hoje para a indústria da moda. Como é pegar esse uniforme que foi utilizado e transformá-lo em uma peça objeto de desejo?”, pergunta-se o estilista. E ele mesmo nos mostrou esta alquimia na passarela no Centro de Eventos do Ceará.

Backstage “Energia by Almir França” no DFB Festival (Fotos Nicolas Gondim)

A intenção é considerar que produtos de moda podem ser criados a partir dos uniformes dos trabalhadores. Pensamos em peças de vestuário que fossem possíveis para uma moda casual. Os looks retrataram o processo transformador de calças em vestidos, saias e blusas. Mas, por se tratar de uma empresa que trabalha com energia, tínhamos que encontrar caminho direto na teoria do reuso, por isso todo beneficiamento, e para os bordados utilizamos os micro resíduos deixados no processo da confecção – Almir França

Especificamente nesta coleção, Almir França revisitou os trapézios de Saint Laurent, na tentativa de pensar uma roupa livre, sem gênero ou tamanho, “o que tenho chamado de roupa absolvida”, afirma, acrescentando: “Minha roupa atualiza a lógica dos novos corpos. Portanto, penso uma roupa que contribua no direito de cidadania. Não creio numa moda fashionista, até porque ela cumpriu seu papel como indústria, mas sim de que ela hoje precisa contribuir na política. Vou encontrando o tal mercado a partir desses grupos pensadores”.

Backstage “Energia by Almir França” no DFB Festival (Fotos Nicolas Gondim)

Ele revela que fez uma adaptação especial na coleção para a capital cearense. “Vindo para Fortaleza, eu quis também homenagear a cidade e o estado do Ceará. Então, estou beneficiando a coleção quase toda com rede de pesca”. Especializado em upcycling, França comenta o poder transformador da moda: “Esse é o maior desafio, como é trabalhar esse design, como é trabalhar essa moda a partir desses resíduos, a partir do reaproveitamento. E principalmente quando a gente fala de uniformes, que são tão invisibilizados. A moda é muito transformadora, ao contrário do que pensamos, que ela é apenas um campo estético, ou um campo da vaidade, da construção da identidade. Mas ela pode, de fato, contribuir no processo de transformação para a questão ambiental. Upcycling pode ser definido como ‘(re)design inteligente’. Upcycling = design + sustentabilidade”.

“Energia by Almir França” (Foto: Nicolas Gondim)

“Energia by Almir França” (Foto: Nicolas Gondim)

A questão ambiental, aliás, estava explícita também na trilha do desfile, incluindo o texto “A Natureza está Falando – Maria Bethânia é A Mãe Natureza” para o projeto Conservação Internacional-Brasil que tem por objetivo incentivar e apoiar a conservação do meio ambiente e de atividades de desenvolvimento sustentável, promover a educação ambiental, o bem-estar humano, a assistência social e a cultura: “Me chamem de Natureza. Eu estou aqui há mais de quatro bilhões e meio de anos. Na verdade, não preciso de vocês. As pessoas precisam de mim. Seu futuro depende de mim. Quando eu prospero, vocês prosperam. Quando padeço, vocês padecem. Estou por aqui há muito tempo. Alimentei espécies maiores do que vocês. Fiz passarem fome espécies maiores do que vocês. Os meus oceanos, meu solo, meus rios, minhas florestas, todos eles podem acolhê-los ou abandoná-los. (…) Eu sou a Natureza. Eu vou continuar. Eu estou preparada para evoluir. E vocês, estão?”. A canção “O Sal da Terra“, de Beto Guedes (1981), e o clássico americano “Cry me a River“, composto por Arthur Hamilton em 1953, também fizeram parte da trilha sonora.

“Energia by Almir França” (Foto: Nicolas Gondim)

“Energia by Almir França” (Foto: Nicolas Gondim)

Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit), são produzidas 175 mil toneladas de resíduos têxteis por ano. Para se ter uma ideia da poluição causada pelo setor de moda, uma quantidade de tecidos equivalente a um caminhão de lixo é enterrada ou queimada a cada segundo em todo o planeta. O desperdício causado pela produção de roupas no mundo também é alarmante, sendo responsável por 20% do total de desperdício de água globalmente. Além disso, um estudo da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2019 revelou que a produção de um único par de jeans consome 7.500 litros de água e que a fabricação de roupas e calçados é responsável por 8% das emissões de gases de efeito estufa.

A indústria da moda é a segunda maior poluidora do mundo, atrás apenas da indústria petrolífera. E levantamento publicado pela Global Fashion Agenda, organização sem fins lucrativos, aponta que mais de 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis foram descartados no mundo em anos recentes. Almir aponta que “Uma coleção de moda casual é criada anualmente como forma de resultado de mais de 10 toneladas de roupas usadas e resíduos”.

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França acredita que o Nordeste pode dar um impulso significativo à economia do país – e o DFB pode ser fundamental para consolidar esse protagonismo: “A região ainda tem um importante polo de indústria do vestuário, abastece boa parte do Norte e do Centro-Oeste, o que nos garante algumas produções de tecido. Precisamos urgentemente, enquanto moda, trazer à cena o artesanato de fio do Nordeste, difundir os trabalhos feitos a mão por nossas nordestinas. Sim, o Nordeste é nossa esperança de manter a moda brasileira viva, mas o Sul precisa ter isso como pauta, além de criar política pública que garanta esse processo produtivo”.

ARTE PARA VESTIR. MODA PARA CONSCIENTIZAR

Professor, estilista e cenógrafo, Almir França possui licenciatura plena pela Sociedade Propagadora das Belas Artes desde 1986, além de pós-graduação em Moda pela Universidade Veiga de Almeida e é Mestre em História da Moda pelo Senac SP, desde 1992. Foi consultor de Moda para o Sebrae Nacional e realizou uma pesquisa sobre trabalho escravo infantil e feminino na comunidade da Maré-RJ, em parceria com a Fundação C&A. Participou da implementação do Projeto Ecomoda em mais de 20 unidades em comunidades do Rio de Janeiro e do interior do estado, além de atuar como Coordenador de Projetos Culturais no Instituto Arco-Íris.

“Nesses últimos 20 anos de projetos, fui entendendo o reaproveitamento como matéria-prima importantíssima para qualidade de texturas e novas possibilidades de criação. O grande ponto positivo do nosso projeto é ter o reuso como metodologia de ensino da moda. Hoje temos muitos parceiros, empresas e instituições de ensino que nos apoiam com a ideia de se empreender com os resíduos”, explica França, acrescentando: “Creio em iniciativas dos coletivos, da política reversa, de uma economia circular em que todas as classes estejam envolvidas. Faço roupa com responsabilidade”.

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O fio condutor das obras do estilista passam por essa diretriz conceitual: “O quantitativo atual de descarte de roupas usadas é 50% de uniformes de trabalhadores. Por isso nos dedicamos no desdobramento de dar utilidade imediata ao uso das peças, ou seja, a jaqueta continua uma jaqueta, mas a proposta foi ressignificar o design. Essa ação é importantíssima, porque o Brasil ainda não tem uma política para resíduos têxteis, tampouco temos uma legislação para a indústria da moda”, frisa, acrescentando: “Usamos a cartela de cores do próprio uniforme, todos os tons de cinza, trazendo o preto e branco e um ponto de laranja, para manter os reflexivos dos uniformes”.

Backstage “Energia by Almir França” no DFB Festival (Fotos Nicolas Gondim)

Ainda que suas obras tenham muita personalidade, ele não as considera autorais. “Não gosto do rótulo autoral, porque não faço nada sozinho e a moda já tem uma fórmula ditadora sobre vestir corpos. Mas vejo que o varejo hoje busca justamente algo que não seja mercado, que dialogue com as histórias socioambiental e política. Essa chamada moda autoral muito rápida serve de laboratório para a grande indústria, e todos os grandes produtores de vestuário estão atentos a esses pequenos criadores. Por isso, crio produtos confeccionados de forma alternativa, buscando mercado no próprio resíduo, pensando sempre que da moda casual possam surgir soluções para toneladas de descartes”.

A classe artista, intelectual e parte dos políticos já compreendem que a roupa é uma linguagem e que para falar com os coletivos terão que utilizar esses códigos, isso faz com uma esposa de um grande governante use uma saia de retalho. Precisávamos hoje de uma grande revolução dos editoriais de moda sobre uso de roupa. É pensar moda com economia forte dentro de uma sociedade que luta por cidadania – Almir França

“Energia by Almir França” (Foto: Nicolas Gondim)

“Energia by Almir França” (Foto: Nicolas Gondim)

Para o estilista, há desafios e recompensas em continuar dedicando-se ao cenário da moda brasileira, e é isso que o inspira.

Amo moda, ela me salvou e me ajudou a criar seis irmãos, me deu tudo que tenho, inclusive meu ativismo. Penso que o meu papel hoje é contribuir numa redução de danos ao ambiente a partir da cultura da moda. O mesmo design que contamina pode ser utilizado como referência de ressignificação aos produtos – Almir França

O estilista alerta para a questão da responsabilidade com o meio ambiente: “Não cumprimos nem 30% das metas da Conferência de 92, a reciclagem é só uma redução de danos ambientais, o norte global não avançou nas políticas de direitos humanos. Economia circular é bacana, mas está dentro de um processo de gastos de energia natural. Mas acredito que a moda pode sim ser um grande exemplo de práticas positivas. Através do design, podemos ressignificar todo esse lixo. Mas temos que entender hoje qual o papel da roupa nos novos corpos”.

O DFB Festival 2024 é apresentado pelo Governo do Estado do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura. Com apoio cultural da ENEL (enelbrasil), realização da Associação Artesanias do Ceará e Empório Lokar. Apoio institucional da Secretaria de Turismo do Estado do Ceará e Secretaria de Cultura do Estado do Ceará (Secult-CE) , nos termos da Lei 13.811, de 16 de agosto de 2006.