Cláudio Silveira e ID:Rio: ‘Moda é parte da epiderme da sociedade, dissolvendo fronteiras entre classes e culturas’


Apresentado pela Enel Distribuição Rio e pelo Governo do Estado, o evento multiplataforma será realizado entre os dias 15 e 17, no Reserva Cultural, em Niterói, e regido com maestria pelo idealizador Cláudio Silveira. “As pessoas já assimilaram que moda vai muito além da roupa: ela compreende comunicação, anseios, projeções e formas de se expressar. E o ID:Rio reafirma o enorme potencial criativo que reside das marcas e designers com base no interior do estado. Economia criativa não é o futuro. É a condição intrínseca para que nosso segmento continue produzindo, gerando e fluindo de forma sustentável, ética e sólida”, frisa

O Estado do Rio será o epicentro do evento multiplataforma ID:Rio Festival, sincronia entre moda, cultura, capacitação, empreendedorismo e música. Apresentado pela Enel Distribuição Rio e pelo Governo do Estado, será realizado entre os dias 15 e 17, no Reserva Cultural, em Niterói, e regido com maestria pelo idealizador Cláudio Silveira. E como ele analisa o potencial da moda do estado do Rio? “Acredito que a palavra que o trade da moda está ressoando (e deve continuar nessa vibração nas próximas temporadas) é “retomada”. Depois de um ano e meio com a economia em retração, a moda brasileira, e a fluminense, em especial, está ávida por retomar o ritmo. O imenso potencial dessa indústria é proporcional à demanda do mercado, que parece estar em pleno aquecimento, apesar da recessão. Há um espírito otimista, um desejo por recolocar o bonde nos trilhos. No entanto, a indústria criativa do Rio de Janeiro precisa voltar a ser mais valorizada, tanto para reafirmar a identidade da moda do estado, quanto para reaver o protagonismo não só dos grandes players, mas de todos os atores da cadeia, incluindo os microempreendedores”, pontua.

Claudio Silveira: "Economia criativa não é o futuro. É a condição intrínseca para que nosso segmento continue produzindo, gerando e fluindo de forma sustentável, ética e sólida".(Foto: Thais Mesquita)

Cláudio Silveira: “Economia criativa não é o futuro. É a condição intrínseca para que nosso segmento continue produzindo, gerando e fluindo de forma sustentável, ética e sólida”.(Foto: Thais Mesquita)

A chancela de Cláudio é dirigir eventos multiplataformas e que contribuem para o mercado da moda, fomentando a formação dos profissionais e criando ambientes de network e negócios, mas sempre mantendo o olhar próprio de valorização da cultura. “Diferente de 20 anos atrás, hoje a moda é identificada como parte da epiderme viva da sociedade, dissolvendo as fronteiras entre classes e culturas, agregando mais do que segregando. As pessoas já assimilaram que moda vai muito além da roupa: ela compreende comunicação, anseios, projeções e formas de se expressar. Hoje, temos mais respostas que perguntas. Entre essas perguntas, agora falando especificamente sobre o ID:Rio, constatamos o enorme potencial criativo que reside das marcas e designers com base no interior do estado”.

Reserva Cultural, em Niterói: o local escolhido para o start da celebração da sincronia da moda de Norte a Sul do estado do Rio leva a assinatura do gênio da arquitetura Oscar Niemeyer (Foto: Thais Gadelha)

Reserva Cultural, em Niterói: o local escolhido para o start da celebração da sincronia da moda de Norte a Sul do estado do Rio leva a assinatura do gênio da arquitetura Oscar Niemeyer (Foto: Thais Gadelha)

Segundo Cláudio Silveira, a missão de projetos como o ID:Rio é gerar novas possibilidades de negócios e novas oportunidades para quem precisa de visibilidade. “O Brasil, planta, colhe, processa, fia, trama o tecido e vende. Detemos o controle de toda a cadeia produtiva. O desafio é conseguirmos nos apropriar de fato dessa força. Se o mercado não está pungente nesse momento, muito por causa de uma crise mundial, temos que manter o foco no horizonte e a cabeça fora d’água. Compreender a moda como um processo em 360 graus não significa rodar, rodar e parar no ponto de partida; significa respeitar cada etapa de uma cadeia complexa de relações entre produtores, indústria, mercado e indivíduos. Meu papel – bem como de eventos como o ID:Rio é azeitar as engrenagens dessa indústria, partindo da economia criativa, dos pequenos, dos autorais, para que toda a máquina continue funcionando, apta para enfrentar os desafios da próxima onda de crescimento que, acredito, está logo ali na esquina”.

Heloisa Tolipan – O ID:Rio Festival será uma multiplataforma e de fomento à indústria da moda. E assim você o fez com o DFB Festival, em Fortaleza (CE).  Como e por que decidiu em seus projetos abrir o leque para outras artes?

Cláudio Silveira – O conceito do ID:Rio nasceu há dois anos, num mundo pré-pandemia. Naquele momento, já experimentávamos uma ânsia por reposicionar a indústria da moda do Rio de Janeiro no lugar que um dia ocupou. Mas, ao contrário de outros tempos, hoje, o cenário é outro e a forma de se criar, produzir e comunicar moda mudou radicalmente. Por isso, um desfile, por si só, já não basta para impactar as pessoas e o mercado. Uma semana de moda não se faz mais com um line up de grandes marcas apresentando suas coleções na passarela. Hoje, os canais são múltiplos e a percepção também. Tão importante quanto um desfile é compreender todos os demais elos da cadeia; por isso o ID:Rio Festival, assim como o DFB Festival, investem em pontos tangenciais, como a formação e a qualificação, além de adicionar atrativos que vão além da moda em si, como shows, performances e mostras gastronômicas.

HT – O ID:Rio Festival terá entrada gratuita para o público e a transmissão de fashion films na plataforma digital. Na pandemia tivemos os eventos na web e, agora, eles começam a ser de forma híbrida (presencial e online). Essa foi a herança dos tempos que vivenciamos? Qual o balanço que faz?

CS – O formato híbrido veio para oxigenar o trade e as próprias formas de fazer negócio. Se a crise mundial deixou um saldo positivo para a indústria da moda, isso definitivamente passa pela mudança no modo de posicionar os eventos do segmento. O mundo mudou, as pessoas mudaram e a indústria precisa acompanhar esses movimentos. Quem ficar parado, fatalmente, sairá do jogo.

HT – Você tem um conhecimento profundo sobre os polos da moda do Estado do Rio. Nos conte sobre o potencial e a realidade que você conferiu.

CS – Continuo constatando que os polos de moda fluminense, que são os que realmente impulsionam a moda popular do Brasil, merecem mais atenção do trade. O futuro é dos pequenos empreendedores. Para que eles cresçam e consigam ter um futuro no trade é fundamental que haja reconhecimento em forma de investimento e oportunidades concretas, como o próprio ID:Rio.

HT – Você contou com apoios da Enel, do Governo do Estado do Rio e da Prefeitura de Niterói para viabilizar o ID:Rio Festival. Qual a receptividade que você sentiu ao projeto?

CS – Excelente; nossos apoiadores reconhecem a real necessidade de estímulo ao potencial do micro e pequeno empreendedor de moda. Esse compromisso, aliás, está no meu DNA e no dos meus parceiros nas últimas três décadas.

Claudio Silveira: "Compreender a moda como um processo em 360 graus não significa rodar, rodar e parar no ponto de partida; significa respeitar cada etapa de uma cadeia" (Foto: Thais Mesquita)

Cláudio Silveira: “Compreender a moda como um processo em 360 graus não significa rodar, rodar e parar no ponto de partida; significa respeitar cada etapa de uma cadeia” (Foto: Thais Mesquita)

HT – O maior encontro da moda autoral da América Latina, o DFB Festival celebra 22 anos. De que forma conseguiu realizar um evento de incentivo à moda autoral do Nordeste e ao empreendedorismo durante tanto tempo com um país que tem uma economia tão oscilante?

CS – Com muita vontade de que acontecesse, mantendo a crença no design autoral brasileiro e, acima de tudo, garra para fazer dar certo e disposição pra ir à luta, porque os dragões que a gente tem que derrotar são muitos.

HT – Com a pandemia, o investimento em tecnologia digital cresceu em seis meses o que era para crescer em seis anos. A nova realidade de conexão do varejo com o consumidor busca uma experiência de compra com excelência, integrando todos os canais e oferecendo opções mil. É o Omnichannel. Que exemplos têm para nos contar sobre as ações que você viu?

CS – Praticamente cada marca, giga ou micro, teve que se reinventar. Tanto na forma de criar, produzir e gerir, quanto no jeito de falar com o mundo. Canais integrados, multiplataformas de consumo, criação compartilhada são um fato e devem se sustentar por um bom tempo ainda. Brands que são referência, como Gucci, Balenciaga, Burberry e Givenchy, acordaram a tempo de se reinventar para um mercado que se renovou, apesar de, nos últimos 10 anos, parecer perdido e carente de uma identidade de público. No Brasil, tivemos uma mudança de paradigma a partir da entrada em jogo de influencers, que alteraram profundamente a relação das marcas com seus públicos. Todas as peças desse tabuleiro estão em movimento. Todos querem o máximo de informação, com o máximo de novidades o tempo todo. O problema é que isso não se sustenta a longo prazo. Precisamos nos manter atentos para que esse formato atual não gere um desgaste, uma estafa irresistível em quem produz moda. Grandes players globais já perceberam isso e optaram por desacelerar um pouco, trocando volume e frequência por conteúdo realmente qualificado e capaz de atingir diretamente nichos cada vez mais específicos, ainda que mirando no maior número possível de impactados.

ID:Rio Festival (Foto: Thais Gadelha)

ID:Rio Festival (Foto: Thais Gadelha)

HT – O novo varejo Varejo 4.0 não diz respeito apenas à tecnologia, mas também trata do ambiente, das pessoas, dos serviços prestados, da maior integração entre o físico e o online, com o objetivo de melhorar a experiência do cliente. O Marketing 4.0 preconiza cada vez mais o relacionamento. Queremos ler seus comentários

CS – Tudo está em constante transformação. Vivemos o privilégio (e de certa forma, a maldição) de estarmos presentes exatamente num momento de rompimento com dogmas que se perpetuam praticamente desde o início da era industrial. E todo período de transição implica em incerteza e riscos. Estamos longes ainda de uma fase madura, enquanto indústria e enquanto civilização. Estamos, talvez, numa adolescência conturbada e repleta de possibilidades. É como você mesmo cita: “não diz respeito apenas à tecnologia”. A era da experiência é apenas o começo de novos e promissores tempos, que devem transformar completamente a própria maneira como consumimos moda – e isso vale para todos os elos da cadeia produtiva, envolvendo tanto quem produz, quanto quem consome. Se, hoje, online e off-line estão integrados, talvez a tendência é que, de algum modo novo, eles passem a se tornar uma coisa só. As lojas deixem de ser mostruários e almoxarifados bem decorados e passem a se comportar como suportes emocionais tangíveis. Como e quando isso vai se dar? Não faço a menor ideia. E talvez nem aconteça. Esse é o fascínio de viver em tempos tão liquidamente incertos.

HT –  Você participou de encontro que discutiu as novas prospecções do mercado têxtil diante do novo cenário da economia, apresentando as ações dos principais feiras e eventos do setor. Pode nos falar sobre as conclusões?

CS –  No Ceará, criamos a iniciativa 100%Ce, um cluster que reúne as principais realizações do setor. A ideia é que, juntos, possamos reposicionar o Ceará no lugar que um dia o estado ocupou, na liderança produtiva de mercado. A diferença é que, se antes o trade da moda cearense era reconhecido como apenas um polo produtivo, fabril, hoje não nos contentamos com o status de grande facção têxtil. Queremos mais: queremos gerar conteúdo, conceito e desejo. Projetamos ações que se estendem até o final desta década, focando de forma distinta em diferentes fatores, como visibilidade, internacionalização, valoração, identidade, e por aí vai. Mais que uma alternativa para sairmos da crise atual, o projeto 100%CE é um marco para o trade da moda feita do Ceará, já que inclui iniciativa pública, privada e membros do terceiro setor. Todos juntos, em uma só direção. A década promete ser bem animada para quem gera moda.

HT – Nunca se falou tanto sobre os princípios da Economia Circular e da Economia Criativa como processos que devem nortear as empresas nesta Quarta Revolução Industrial. Assim como zero waste, sustentabilidade, bioeconomia. Lá atrás, a tônica do seu trabalho já era dar ênfase à economia criativa. Qual o paralelo que se pode fazer?

CS – Há 22 anos, com o lançamento do Dragão Fashion, essa já era nossa pauta. A moda autoral, de certa forma, sintetiza os conceitos que foram surgindo e se estabilizando nas duas últimas décadas. Acho justo que a gente defina essa timeline não como um fluxo contínuo de tempo, mas como um tecido de múltiplas camadas, que se espalha em todas as direções. Por isso, para nós, não existe uma “moda do futuro” ou um “ontem, hoje e amanhã”.  O que existe é o agora, e ele se expande tanto para frente, quanto para trás. Esse fluxo nos permite acompanhar com uma certa serenidade as idas e vindas da economia, do trade, dos mercados. Se, no início, nossa compreensão de energia criativa era muito intuitiva, instintiva, mesmo, sem muita elaboração, hoje a utilizamos como ferramenta para nos mantermos em constante renovação. Economia criativa não é o futuro. É a condição intrínseca para que nosso segmento continue produzindo, gerando e fluindo de forma sustentável, ética e sólida.

ID:Rio Festival (Foto: Thais Gadelha)

HT – Para que caminho está indo a moda autoral brasileira? O que isso representa em relação ao cenário global?

CS – Historicamente, a moda autoral nunca teve muito a perder, além do sonho de quem a faz. Com raras exceções, os criadores autorais sempre estiveram à margem dos grandes volumes, dos grandes faturamentos. A eles, sempre coube o sonho de ser fiel ao próprio talento. Continuo acreditando que essa convicção é um passaporte para que eles sejam reconhecidos pelo mercado. Sempre houve uma demanda fixa por produtos autorais. A partir da pandemia e da mudança de pensamento na forma de se relacionar com as marcas, o consumidor anseia, ainda mais, por produtos com história, com ancestralidade, com alma. Pensando assim, não tem como não estar muito otimista com as perspectivas que surgem para a moda autoral brasileira. Talvez hoje, como nunca, uma parcela inédita de consumidores esteja aberta para sair de suas zonas de conforto e acreditar na força criativa dos autorais.

HT – De que forma as palavras reconstruir, reformar, e ressignificar passam a ser essenciais, em momentos caóticos como o que estamos vivendo?

CS – Elas funcionam quase como um mantra para quem precisa manter-se em relevância no mundo atual. “Reconstruir” negócios, formatos, empregos, expectativas, tem a ver diretamente com o momento em que vivemos hoje, prestes a sairmos da pandemia. “Reformar” diz respeito a se adequar a uma nova realidade que se impõe. “Ressignificar” trata exatamente de uma verdade cabal para o trade: a fórmula está esgotada. É preciso criar novas maneiras, outras receitas. É preciso repensar o que é “essencial” para as marcas e para os consumidores. O mercado não é mais vertical como era. A pandemia rotacionou o eixo do nosso mundo. Adicionaria uma quarta palavra: “Reinventar”, porque o mercado exige novas práticas, novas políticas e novos pactos.

HT – Quais as dores e delícias de continuar se dedicando ao cenário da moda brasileira? O que o inspira ainda e mais?

CS – Para o bem ou para o mal, esse é o legado que eu escolhi deixar: manter minhas antenas apontadas para o potencial da força criativa, as mudanças e os impactos que causam na vida das pessoas. E é exatamente essa sinergia que me inspira e me mantém em movimento há 22 anos no comando de eventos de moda autoral.

HT – A sua percepção do mundo da moda mudou nesses novos tempos?

CS – Mudou e muda cada minuto. Continuo alimentando uma criança inquieta dentro da minha mente. Todos esses anos de ofício que pesam sobre meus ombros e calejam minhas mãos são também meu maior combustível para continuar rumando em frente. O mundo não para. Por que eu haveria de parar, também?