*Por Simone Gondim
Em tempos de pandemia, uma coleção de roupas focada em estados de cura. Assim é a colab “Sinta-se”, parceria da atriz Carolina Kasting com a estilista Carol Nasser. Para a sua estreia na moda, a Agnes Romantini de “Salve-se quem puder” escolheu uma série de desenhos de órgãos humanos, feitos por ela com caneta esferográfica. “Cada órgão desenhado representa o sentimento que promove a sua cura. A inspiração é a medicina chinesa, em que se detecta que o pulmão adoece de tristeza, por exemplo”, explica. “Tentei buscar o sentimento oposto à doença. Então, são estampas coloridas e alegres: Tranquilidade, com o desenho do rim; Alegria, com a imagem do pulmão; Autoconfiança, trazendo o útero, e Consciência, tendo a estampa de olhos”, acrescenta.
O primeiro encontro com a xará estilista aconteceu em 2008, quando Carolina Kasting fez um curso na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Desde então, a amizade entre as duas só cresce. “Buscamos aprofundar a arte em nossas já reconhecidas trajetórias, ela como estilista e eu como atriz. Durante a pandemia, a ida ao meu ateliê passou a ser diária e fiz os desenhos que estampam as peças. Pensei na Carol para desenvolvermos uma coleção – vestir as pessoas era um desejo antigo. Começamos a trabalhar e o resultado foi surpreendente”, conta.
A feminilidade está na essência das peças. A coleção traz saias rodadas, blusas, quimonos e vestidos, confeccionados em tecidos bem leves, com a cara do verão. “Em um ano tão difícil como este, em que precisamos de coisas que nos façam sentir especiais, conseguimos criar uma coleção que fala: perceba-se, tente enxergar dentro de si possibilidades positivas”, afirma Carolina Kasting. “Sinta-se corajosa, alegre, tranquila, autoconfiante e consciente de si mesma e do mundo ao vestir-se com essas roupas”, completa.
Segundo a atriz, o perfil da mulher que irá desfilar pelas ruas os lançamentos da collab é o de quem busca a moda como estilo de vida, uma representação de si mesma. “É uma coleção empoderadamente feminina. Penso a roupa como um outro suporte para a arte”, diz ela. “Carol e eu daremos seguimento ao trabalho da ‘Sinta-se’ com novas estampas”, garante.
Conhecida pelos looks estilosos, Carolina já admitiu em entrevistas que nem sempre foi assim – até os 25 anos, não sabia exatamente do que gostava. Duas décadas depois, não só encontrou o que a atraía como se sente segura para vestir outras mulheres. O que teria levado a essa mudança? “Acho que não teve um clique, mas não foi de uma hora pra outra. Com o passar do tempo fui me conhecendo melhor, me entendendo, aprendendo a me escutar, então descobri qual a forma que quero estar no mundo e, consequentemente, como quero ser vista”, esclarece.
A pressão da sociedade para que as mulheres se encaixem em determinados padrões é algo que a catarinense combate com a veia artística. “A maior arma de liberdade do ser humano é a consciência, por isso faço arte, para trazer o livre pensar e transformar as pessoas. A arte fez isso comigo, me transformou e me libertou. Hoje, faço o que quero fazer. Sei que é muito difícil em um país como o nosso, com uma desigualdade social gigantesca, mas estou falando de uma força de transformação interna, que é muito mais poderosa do que podemos imaginar”, teoriza. “Crescemos ouvindo que devemos ser de determinado jeito para nos adequar. A verdade é que formamos a sociedade e não existe padrão, somos diversos. Podemos fazer do mundo aquilo que queremos para nós”, assegura.
Para Carolina, as perguntas a serem feitas são: o que você quer? Qual mundo você deseja? “Existem paradigmas muito mais cruéis do que os que tive que enfrentar em minha vida de mulher branca e privilegiada. Por exemplo, o da mulher negra racializada. E vemos mulheres quebrando fortemente esses padrões de opressão, como Djamila Ribeiro. Essas mulheres precisam ser ouvidas. O feminismo e o antirracismo são as forças de transformação para um futuro possível”, enfatiza.
Para enfrentar o clima tenso trazido pelo coronavírus, a atriz buscou refúgio em seu ateliê, que fica na Casa Voa, espaço no Rio de Janeiro que ela divide com outros cinco artistas: Antônio Bokel, Clarice Rosadas, Maria Flexa, Mateu Velasco e Marcelo Macedo. “Estamos passando por um estado de exceção, por uma pandemia que não faz distinção entre classe social, cor, ou profissão. É a oportunidade que o planeta, Gaia – leiam sobre a teoria de Gaia -, está nos dando de cura. Podemos atravessar esse momento sem nos modificar, e podemos, ao olhar para dentro de nós, descobrir a importância do coletivo e o que queremos para essa sociedade. Queremos viver em um mundo livre, igualitário e sem fronteiras? Então, temos muito trabalho pela frente, mas é possível”, acredita.
Carolina deixa claro que, apesar da tragédia, é possível ver uma luz. “Aprendi a olhar para a pandemia da Covid-19 entendendo que a doença tem uma possibilidade de cura. ‘Sinta-se’ representa isso, tive a ideia dessa coleção porque fui todos os dias ao ateliê fazer arte, a fim de sobreviver a esse momento e me curar do medo, da angústia, da tristeza e da morte iminente. Outros trabalhos da minha produção de 2020 também falam sobre o isolamento e a contaminação, ressignificando esse momento”, revela.
Apesar de todo o trabalho para se manter forte, Carolina admite que os sucessivos ataques à cultura e aos artistas em geral mexem com ela. “Esse é o assunto que mais me apavora, não sei realmente como poderíamos agir. Sou uma artista, meu poder de transformação está na arte. Não sou socióloga, nem política, nem filósofa. O que poderia eu dizer? A única forma de recuperação que vejo é transformando o micro para modificar o macro”, reconhece.
Ela ressalta que, no Brasil, o desmonte cultural não é obra do acaso. “Os governos sabem que o subsídio cultural é tão essencial quanto a comida e a educação. Não é só de pão que vivem as pessoas, seres humanos são seres culturais. Ainda assim, governantes colocam em prática o desmonte cultural e da educação. No Brasil, isso não é uma crise, é um projeto muito bem elaborado”, lamenta.
Carolina aposta na união como arma para preservar a arte e a cultura. “Assim como um oceano é feito da junção de todas as gotas de água salgada que o compõem, um indivíduo com consciência do seu poder de transformação pode mudar o mundo. Somente nisso eu posso acreditar. Cada um fazendo a sua parte, todos juntos transformaremos o mundo”, espera.
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