* Por Rafael Moura
O Coolhunter Favela é um laboratório de tendências que busca localizar a origem de sinais e movimentos contemporâneos que têm suas raízes em manifestações culturais e estéticas nas periferias do mundo. “Acreditamos na estética como ferramenta de construção e transformação”, dispara Rafaela Joaquim de Pina, à frente do movimento. A ideia do escritório é explorar e reconectar os movimentos estéticos com suas “matérias-primas” mais potente dos dias de hoje: a criatividade da juventude periférica. “Queremos não só ressignificar tendências e sinais, mas também visibilizar e fortalecer a produção simbólica que nasce para além dos circuitos tradicionais das grandes cidades”, afirma.
Rafaela é nascida em Realengo, Zona Oeste do Rio de Janeiro, tem 29 anos, é transexual, começou a estudar moda, no Senai Cetiqt, migrou para a Casa Geração Vidigal e é a criadora do Coolhunter de Favela. “A ideia surgiu como um escritório de autocura, somos seis pessoas integrantes e queremos entender esse corpo estético dentro desse espaço”, explica. Segundo a pesquisadora a missão dessa equipe é um olhar para um resgate cultural e estético do passado a partir dos sinais identificados dessas manifestações estéticas. “Quando eu crio, é quase sempre um sentimento a partir de mim; e como uma autorreflexão para me entender como mulher trans e como jovem dentro da Cidade do Rio de Janeiro”, completa.
A equipe formada por Rafaela Joaquim de Pina, diretora criativa; Cassiane Sousa, designer gráfica e pesquisadora; Jéssica Senra, diretora de fotografia e arte; Allanis, styling; Vitor Freire, designer, Coolhunter e DJ; e Neïth Assogbavi que nasceu no Togo, criada na França e está no Brasil estudando relações internacionais, além de correspondente da Elle Africana – busca sempre entender a etnografia da cidade, o estudo arquitetônico, os movimentos da urbe, seu funcionamento e como eles desaguam e chegam a dominar as ruas. “Queríamos também esse imaginário inconsciente do passado que não é explorado. Porque os jovens não têm esse conteúdo com uma linguagem acessível. O trabalho do coolhunter é de aceleração de potências e ideias. Não nós gostamos de usar o termo emponderar. As pessoas já nascem emponderadas, só precisamos acelerar esse conteúdo”, enfatiza.
Esse radar da moda e comportamento atualmente tem três frentes de trabalho: uma comunicação de moda e estética para os estudantes e profissionais mostrando as linguagem e pesquisas. O segundo é a decodificação dos dados de pesquisas. E atendendo as marcas com conteúdos de consultorias de visões dentro dos movimentos que estão borbulhando de moda. “Prestamos consultorias para empresas onde coletamos os dados para direcionar o mercado. Com todos esses movimentos da cidade nós acabamos rompendo essas barreiras geográficas”. Rafaela ainda nos conta uma super novidade, o projeto ‘Pega Visão’ que estará disponível em breve e trará um compilado de pesquisas, em uma plataforma online ou em boxes com mini livros.
“Quando eu falo de periferias, eu friso as periferias mundiais, globais. O nosso olhar não se restringe apenas ao Rio, apesar das pesquisas serem mais focadas na cidade e como esse Rio de Janeiro se abre para o Brasil. É entender como essas limitações periféricas têm conexões. Quando viajo sempre tento passear, andar de ônibus, observar os locais que os moradores frequentam, não apenas os pontos turísticos e me deslocar para entender essa atmosfera”.
Rafa nos recebeu no Belchior Brechó, onde trabalha, em Botafogo, da dupla Kim Courbet e Lee Landell. E a todo momento fazíamos uma pequena pausa, seja pela visita de pessoas queridas que vinham cumprimentar essa mente brilhante ou pela entrada de clientes. “Meus chefes são maravilhosos, meus chefes são ‘love you’”. E alerta: “Essa rua está se tornando um grande point cool em Botafogo. Aqui tem o Belchior Brechó. De um lado tem a Sri, do outro tem a Collab, a Mono, a Rock Burguer, o Salão Azul, o The Marley’s Pub”.
Pois Rafa declara seu amor pelo Rio: “O despertar de moda nessa cidade é muito forte e pesado. O jovem da periferia, aqui, tem um grito no corpo, de forma estética que é muito diferente. Esse incômodo social, que muitas vezes ele nem sabe que tem, vai muito por uma coisa sonora. Esse corpo sempre está se fazendo presente de maneira muito rápida. Temos uma produção de manifestações de moda, cultural, muito mais rápida de que a maioria das cidades brasileiras”, explica a coolhunter.
A equipe mergulha muito no imaginário e na identidade da cultura popular como base de estudos para construir e entender as narrativas que surgem nas pesquisas e poder decodificá-las. “Nós pesquisamos muito as raízes dos movimentos. Estamos produzindo um editorial chamado Fé que faz um link com essa estampa que virou um grande boom no mercado popular. Eu fico muito encantada com esses fenômenos de indumentárias. O livro de Hebreus fala que a fé é a certeza de coisas que a gente não vê. Eu fiquei com essa reflexão bíblica na cabeça, e como estamos vivendo esse momento tenso no Rio, resolvemos abraçar essa ideia até mesmo para desconstruir nossos preconceitos”, explica Rafaela um pouco da sua metodologia de trabalho.
As grandes capitais precisam olhar para esse novo mercado, que tem poder de consumo e está sedento por novidades e coisas até mais simples. “O mercado carioca precisa aprender a olhar para esse novo Rio como produto e que precisa consumir. Queremos formar um Rio de Janeiro mais pensante e pulsante”, enfatiza e completa, “a moda carioca está bebendo nas raízes do tropicalismo, por conta dessa moda panfletária, com frases das camisas, o boom das papetes”, diz Rafa enquanto observa as pessoas passando na calçada da Rua Fernandes Guimarães.
A pesquisadora se declara extremamente religiosa, é frequentadora do candomblé e essa fé foi o start para abrir os caminhos do Coolhunter Favela. “Em 2017/ 2018 nós fomos procurados pela Rider e fizemos uma conexão da marca com o funk e tambores de candomblé, olhando para culto de Jeje, uma dissidência do candomblé em que mergulhamos nesses códigos para o projeto Dá Pra Fazer em parceria com o Rapper Fiotí”. Depois, a turma de Realengo pegou a ponte aérea e aterrizou em São Paulo, para apesentar uma galeria de sensações dentro do evento Senac Moda e Informação. “Como era outubro e trouxemos a cultura de Cosme e Damião, com uma cartela de cores açucaradas. Conectando moda com as raízes cariocas”.
Conexão é uma palavra incrível para esses jovens que estão começando a propor mudanças dentro da forma de consumo no Brasil, seja de moda ou informação. “Nós gostamos de nos conectar com pessoas que estão fazendo moda e estão atentas para esses gritos. Todo o mercado editorial do mundo está atento a esses movimentos de minorias e se o Brasil não acompanhar, vai ficar para trás. Gostamos de pessoas olhando verdadeiramente para esses universos das minorias. Estamos abrindo um nicho que está fora dos mercados centrais e longe dos formadores de opinião. É só você observar o boom dos Millennials e da Geração Z. Uma galera que não está nem no Facebook. E está conquistando seus espaços no Twitter, Instagram e YouTube”, conta feliz em acompanhar essas mudanças.
“O mercado tradicional não te dá mais o ‘alimento’ que você precisa. É por isso que os jovens estão cada vez mais correndo na frente e criando conexões mais genuínas. O que acaba despertando um interesse do mercado. Queremos conexões com marcas globais. Rider nos abraçou. Levou toda uma equipe para Realengo para entender o nosso universo. Agora estamos namorando com novas marcas. Vem muita coisa boa por aí”, conta alegremente [nós já temos essas novidades, e em breve iremos divulgar aqui para vocês]. A turma do Coolhunter Favela ‘abandonou’ seu site, porque a velocidades dos acontecimentos são muito rápidos e a nossa tecnologia não os acompanha. Uma novidade é que o sexteto foi convidado pela equipe do Instagram Brasil para fazer uma imersão e fazer um curso para potencializarem a ferramenta, sua principal fonte de divulgação.
“Uma coisa que é legal falar é que o nosso escritório já gera receita, mesmo não sendo nossa única fonte de renda, mas dá dinheiro. Nós conseguimos monetizar o escritório com nossas palestras e consultorias”, afirma a empreendedora visionária que nos conta ainda que “hoje estava tendo uma reflexão sobre como eu, Rafaela me insiro nos espaços. Eu sou muito ambiciosa e astuta. E comecei a entender quais as bandeiras que eu queria levantar, quais eu posso levantar e as que eu não quero”.
Rafaela pensa muito nessa potencialização da voz dos negros no mercado de moda “falta meios para nós negros acessarmos os espaços. Nós negros estamos muito condicionados a produzir, a fazer a manutenção dos espaços. Faltam oportunidades para nos profissionalizarmos e podermos crescer dentro das empresas.” Para ela o enredo da Mangueira trouxe à tona nomes que as pessoas nunca ouviram falar e essa culpa vem muito por conta da nossa base educacional, a forma como a nossa educação é construída. “Precisamos ter contato com pensadores e filósofos negros para podermos construir nossas identidades e olharmos para o Brasil com um olhar mais genuíno e melhor folclorizado e até romantizado”
Pedimos para essa mente criativa e borbulhante citar nomes que ela admira ou a inspiram. Ela começou falando encantada sobre uma cena em Lagos, na Nigéria e destacando o estilista Virgil Abloh, das marcas OFF-White e Louis Vuitton Masculina. “Ah, tem a Igi Ayedun que eu acho muito foda. É incrível a forma como ela se comunica. O artista Samuel Saboia é vanguarda total. Eles dois formam uma nova esfera de acontecimentos sociais. Tem ainda a jornalista Luiza Brasil,a turma do Jacaré Moda, a estilista Thais Delgado da Verkko, a caboverdiana Angela Britto, a Marina Trindade da Alea Atelier, Isabela Suzart da A-aurora, o atelier Trovoa, o coletivo Of Color que são incríveis e tem um posicionamento global, a Rádio Escada que faz um soundsystem com sonoridades africanas com pitadas de funk. E a Mariwô, a festa aciona a ancestralidade com um resgate histórico”. Rafa ainda destaca o seu time de Novos Baianos que estão mexendo completamente com o cenário musical e estético do Brasil com uma narrativa super forte: Baco Exu Du Blues, ÀTTØØXXÁ, Afrocidade, Luedji Luna, Xênia França.
“Os meninos das comunidades hoje em dia tem um gracejo do corpo mais conectado com a cidade. Estamos exportando o cabelo na régua e o bigodinho fininho, por exemplo. Eu venho de um lugar em que eu sempre sofri homofobia, e hoje eu sofro transfobia. E esse ataque é mais agressivo. Eu como pesquisadora gosto de transitar pela cidade e isso é extremamente perturbador”, conta Rafaela que no fim da entrevista diz que em breve fará uma imersão no Canadá trazendo um novo olhar pro Coolhunter Favela.
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