É de se esperar que frases como “o valor da família tradicional” e “a luta pela preservação dos bons costumes” sejam proferidas mais pelos políticos lunáticos do Brasil do que por pessoas inseridas em um ambiente altamente criativo e diversificado como a moda italiana. Mas, pelo que ficou provado na semana passada, após as declarações de Stefano Gabbana e Domenico Dolce, até a mais alta das costuras também tem lá seus preconceitos, por mais hipócritas que eles possam parecer. Os designers responsáveis pela icônica grife Dolce & Gabbana declararam em entrevista à publicação “Panorama” que “são contra a adoção de crianças por casais gays”.
“A única família é a tradicional. Nada de prole química e útero alugado: a vida tem um fluxo natural e há coisas que não deveriam ser mudadas”, declararam os estilistas, que também já foram casados por mais de 20 anos, até terminarem a união em 2005. “Eu não me convenço com o que chamo de crianças da química, crianças sintéticas. Útero alugado, sêmen escolhido de um catálogo… Os psiquiatras não estão preparados para confrontar os efeitos desses experimentos”, continuaram, provavelmente se esquecendo que, há apenas 10 anos, ambos estampavam a capa da Vanity Fair Italia com a chamada “O desejo de serem pais”.
Assim que as declarações começaram a circular pela internet foram levantadas teorias de que tudo não passava de uma grande estratégia de marketing para “agradar” o público majoritário da grife italiana, que sempre fotografa suas campanhas em torno da estética da “família tradicional italiana”. Tais valores atingiram seu apogeu na grife durante o último desfile da coleção Outono-Inverno, na Semana de Moda de Milão, que trouxe o tema “maternidade” sob o título “Viva la mamma!”, com a modelo Bianca Balti até aparecendo gravidíssima na passarela.
Mas, ao que parece, os comentários de Stefano e Domenico podem ter sido um tiro no pé, principalmente após eles terem chegado ao ouvido de Sir Elton John, que declarou publicamente sua insatisfação com o posicionamento da grife, pedindo por um boicote à Dolce & Gabbana. “Como vocês se atrevem a chamarem minhas lindas crianças de ‘sintéticas’. Que vergonha vocês balançarem seus dedinhos preconceituosos à fertilização in vitro – um milagre que tem permitido legiões de pessoas amáveis, tanto hétero quanto homossexuais, a realizaram o sonho de terem filhos”, comentou o músico e pai de duas crianças geradas em barriga de aluguel. “Seu pensamento arcaico não condiz com os tempos de hoje, assim como a sua moda. Eu nunca mais usarei Dolce & Gabbana #BoicoteDolceGabbana”, finalizou.
A voz de Elton John não ecoou sozinha na estratosfera online. Courtney Love, que adora um barraco, publicou em sua redes sociais: “Juntei todas as minhas roupas da Dolce & Gabbana e quero queimá-las. Estou além das palavras e emoção. Boicote ao fanatismo sem sentido!”. Outros que apoiaram os protestos do músico foram Victoria Beckham, Ricky Martin e Ryan Murphy, os dois últimos homossexuais assumidos e pais. No Instagram, Stefano Gabbana alegou que estava apenas “expressando sua opinião pessoal” e que “acredita na liberdade e no amor”. É, como diz o ditado, “não adianta chorar o leite derramado” .
As declarações de Stefano Gabbana e Domenico Dolce não poderiam ter sido mais infelizes e vindo em um momento mais inoportuno para a discussão de direitos e representatividade LGBT no mundo fashion, acarretando provavelmente resultados terrivelmente nocivos à preciosa marca, que corre o risco de passar como “ultrapassada” com esse ponto de vista. Afinal, a última “tendência” ou “reflexo social” na moda mostra exatamente o caminho contrário ao declarado pelos estilistas. Colocando homens com vestidos longos em suas passarelas, designers como Vivenne Westwood e J. W. Anderson mostraram em suas últimas coleções que já passou da hora de as roupas apresentarem uma visão tão binária quando se trata de gênero, abraçando todas as nuances que existem entre e além do “masculino e feminino” tradicionais.
É impossível não notar os esforços de Vivienne e muitos outros designers na lutar em defesa da moda como um refletor e influenciador cultural, tentando derrubar de uma vez por todas a imagem de que a moda é racista, elitista e responsável por manter padrões de beleza que destoam da realidade até das próprias pessoas que fazem suas engrenagens girarem. Atacar os direitos LGBT em uma época onde a privação dos mesmos soa mais absurda a cada dia que passa é desrespeitar não só o público, como grande parte dos funcionários e agentes dessa indústria. Não é de hoje que a bandeira da diversidade vem sendo levantada em desfiles, coisa que gente como Jean Paul Gaultier e a grife Yves Saint Laurent vêm pregando nas passarelas através de looks e modelos andróginos, enquanto nomes como Alexandre Herchcovitch continuam a bater nessa tecla por terras brasileiras, notoriamente apresentando suas coleções masculinas com a presença também de meninas.
O pior de tudo é que, se tais comentários foram proferidos pelos designers como uma forma de “agradar” seu público, isso mostra como a dupla tem uma visão micro e errônea do momento atual pelo qual a indústria na qual estão inseridos está passando. Em pleno 2015, poucos fatores influenciam tanto as vendas de uma marca como celebridades que postam em suas contas no Instagram sobre grife x ou y que apoiam os direitos LGBT. No caso da Dolce & Gabbana, cantoras como Katy Perry, Rihanna e Rita Ora – ativistas das causas LGBT – já foram grandes incentivadoras da marca e poderiam causar um estrago em sua representação caso decidissem “virar a casaca” publicamente. E, como já ficou provado na história recente da moda com o ato antissemita de John Galliano, talento nenhum é garantia de imunidade eterna nesse meio.
Artigos relacionados