“A moda desceu do salto não só no Brasil, mas no mundo inteiro”, analisa Cláudio Silveira à frente do DFB Digifest


O diretor e idealizador do DFB Festival, realizado em Fortaleza (CE), conversou com o site Heloisa Tolipan sobre a edição de 2020 da maior plataforma de moda autoral do Brasil completamente adequada a um projeto online por conta da pandemia. Ele falou ainda sobre os novos rumos da moda, a importância de incentivar novos talentos, racismo e o ‘novo normal’. “Esse movimento é global e marca o início de novos e desconhecidos tempos para essa indústria. Os valores que sempre mantiveram a moda dentro de uma aura dourada estão em plena crise de identidade”, pontua

*Com Rafael Moura

Ao longo de duas décadas, a moda brasileira passou por muitas mudanças e o DFB Festival, na capital Fortaleza, no Ceará, orquestrado e dirigido por Cláudio Silveira tendo como produtora executiva a competente Helena Vieira, fez seu rito de passagem do artesanato de luxo (como há muitos anos escrevi) para o mundo e o evento se tornou uma vitrine do handmade e da moda autoral do Nordeste. Anos e anos se manteve como uma grande plataforma de inovação, como um radar criativo até ser considerado a maior semana da moda autoral da América Latina. Com a pandemia do novo coronavírus, o Brasil e o mundo deram um grande reset e uma série de ressignificações foram realizadas nos mais diversos campos e posturas do ser humano. As lives nos aproximaram mesmo à distância e, assim, proporcionaram muito conhecimento, solidariedade, reflexões conjuntas. E vamos falar da moda. Em plena Quarta Revolução Industrial, o que sentimos pela frente são profissionais capazes de compreender a moda de forma disruptiva, provocando uma mudança na forma de conceber produtos de moda. O foco é mudar o mindset e olhar para o reverberar de vozes sobre zero waste, sustentabilidade + consumo consciente, identidade, upcycling, customização, ressignificando (olha aí a expressão que será a tônica pós- pandemai) uma nova produção.

Quem conhece Cláudio Silveira sabe que ele é homem de arregaçar as mangas e nada o impede de ser o nosso alquimista do mostrar a mais bela moda autoral do Nordeste. Pois foi exatamente o que ele fará. O diretor já estava com toda a sua edição 2020 pronta quando, infelizmente, a pandemia do Covid-19 começou a colocar o país nos holofotes da Organização Mundial de Saúde. Mas, Cláudio soube virar o jogo e seguir em frente. Conversou com todos os seus apoiadores sobre o momento de todos se unirem e realizará a edição inédita em formato virtual, batizada DFB DigiFest 2020, refletindo, em ações concretas, o momento global de reflexão sobre as formas de consumo dos produtos culturais e os rumos do próprio trade da moda.

Perdi o número de vezes que vi Claudio tal qual um megafone arregimentar tantos profissionais entusiasmados por sua frase: “O DFB compreende a cultura da moda sob o ponto de vista antropológico: como uma legítima manifestação dos desejos, da personalidade e da construção histórica de um povo”. Mas não era só retórica. Era e será ação. “Acreditamos em todas as manifestações autorais e estou realizando um DFB completamente diferenciado. Esse é o meu ideal de vida e a cada ano o que fortalece são pessoas e empresas que acreditam. Para se tornar um festival online, percebemos que tínhamos que ter todas as estruturas de um grande evento e, por isso, criamos virtualmente empreitadas para moda, artes, além de música e gastronomia. “Eu acho que temos tanta criatividade, tanta gente bacana, tantos empreendedores natos… empatia, solidariedade e preocupação com o social são traços fortes dentro desse evento”, pontua.

O DFB DigiFest apresenta um line-up multidisciplinar, reunindo atividades programadas até 19 de julho mantendo a missão de promover o acesso de novos talentos do trade ao mercado, contemplando diversos segmentos das esferas da moda, da cultura, da formação e do empreendedorismo. A migração para o formato virtual potencializa as atividades previstas antes da pandemia, adaptando-as a um formato seguro e democrático. O diretor-geral do DFB Festival, Cláudio Silveira, explica que “todo o planejamento do DFB DigiFest foi pensado para contemplar quem mais precisa de auxílio neste momento de crise, seja designer, aluno, artista, microempreendedor ou restaurante que tiveram suas atividades afetadas e seu faturamento comprometido”.

Fizemos nossa conexão Rio de Janeiro e Fortaleza não presencial como tantos anos anteriores, mas online com Cláudio Silveira. E vamos em frente sobre o que temos de novidades e nosso papo exclusivo. O evento está sendo permeado por ações sociais. O Projeto Energia Solidária correalizado com a Enel, levará, de forma 100% gratuita, máscaras de proteção para domicílios situados nos bairros de maior vulnerabilidade da Região Metropolitana de Fortaleza. Doze designers e marcas autorais do line-up do DFB Festival desenvolveram estampas exclusivas, inspiradas em “esperança e solidariedade”.

O Projeto New Faces evolui nesta edição para uma versão online. Mais que um simples concurso de beleza para novas modelos, a iniciativa nasceu para revelar talentos em áreas de vulnerabilidade social da Região Metropolitana de Fortaleza, proporcionando sua inserção no mercado de trabalho do trade da moda e da beleza no Ceará.

Cultura/Mostra Competitiva MoveModa 2020 engloba curtas-metragens assinados por videomakers profissionais, estudantes e amadores, tem como tema as múltiplas interpretações sobre visões de futuro que se desenham no horizonte. São quatro categorias da mostra: Fashion Film Independente, Pensamento Crítico, Inovação em Linguagem e Talento Educacional.

Design/Concurso dos Novos e tradicional competição entre instituições de ensino superior e técnico de Estilismo e Moda já havia encerrado o prazo de inscrições antes das paralisações por conta da pandemia do novo coronavírus. Para contemplar os trabalhos inscritos, sem expor os participantes aos riscos de aglomeração demandados em uma eventual segunda fase, o Concurso dos Novos realizará uma edição extraordinária. Ao invés da coleção cápsula completa, que seria apresentada em desfile durante a edição física do DFB Festival, a avaliação será feita a partir do look-piloto enviado e da análise dos projetos teóricos das propostas.

Empreendedorismo/Prêmio DFB Digital iniciativa realizada em parceria com o Sistema Fiec e o Sebrae/CE, o Prêmio DFB Digital foi criado em reconhecimento aos esforços da indústria têxtil do Ceará e de microempreendedores independentes, para contemplar as iniciativas que mais têm se destacado nesses tempos de isolamento social. Além de apontar iniciativas de grandes players da indústria, o Prêmio DFB Digital mira na atividade online de designers, artesãos e marcas autorais, que utilizam estratégias diferenciadas em suas plataformas digitais (sites, apps e redes sociais) para impulsionar modelos de negócio e comunicação em moda e design. As categorias são “Engajamento Social”, “Negócio Sustentável” e “Feed Criativo”.

Gastronomia/Marmita Chic realiza versão online de sua mostra gastronômica, visando auxiliar restaurantes com expertise em comida afetiva cearense, que foram impactados pela pandemia da covid-19. Ao todo, chefs de nove restaurantes criarão suas versões de marmita-chic, que serão comercializadas online, em suas redes sociais, com preço acessível. A renda de cada marmita-chic irá integralmente para o restaurante responsável por sua execução e venda. A curadoria da ação fica a cargo do Chef João Lima.

Digital Pensando Moda, que em parceria com o Senac Ceará, promoverá palestras e workshops online gratuitos. Entre os convidados está o estilista Alexandre Herchcovitch, que participará de um bate-papo com o consultor e editor de moda Eduardo Motta no dia 11 de julho, no canal do Youtube do evento (youtube.com/dragaofashionhouse).  Com o tema “Criando a moda para o futuro”, a conversa online discutirá as perspectivas do segmento para o novo mercado.

O diretor  do DFB Festival Claudio Silveira inova com uma edição digital do evento (Foto: Davi Magalhães)

Heloisa Tolipan – Cláudio, você sempre pautou o DFB a partir da valorização da autoralidade e da identidade brasileira. Por conta dessa pandemia estamos acompanhando muitas mudanças no mercado de moda, em que uma ‘injeção’ de consciência chega com força aos consumidores e profissionais da área. A ‘Moda com Propósito’ entrou em pauta. Como você enxerga essa tomada de consciência?

Claudio Silveira – Esse movimento tem se desenhado nos últimos anos e a pandemia pisou fundo no acelerador desse novo modelo de consumo e produção. Falando sobre a perspectiva do DFB Festival, moda e propósito sempre foram duas faces de uma mesma moeda. O evento, aliás, só existe porque o propósito é mais forte que qualquer outra questão. Somos idealistas-pé-no-chão. A gente continua sonhando e acreditando, mas, duas décadas depois, carregamos a maturidade de saber como a banda toca. E a banda tem experimentado novos ritmos. Vender não significa mais exibir um produto para a venda. Isso não basta para um mundo em profunda transformação. O consumidor da moda, principalmente após o estabelecimento do fast fashion, parece despertar dessa overdose consumista. O que é ótimo para quem trabalha com a moda autoral. Significa que cada vez mais pessoas devem desejar produtos com mais alma que chassi. Já para a indústria, o desafio da indústria é imenso, porque é preciso repensar tudo: processos, prazos, expectativas. O DFB Festival tem uma espécie de visão privilegiada dessa situação, já que sempre dialogou com esses dois extremos. Eu, particularmente, acredito que quanto mais conversa e troca, mais enriquecedores são os resultados para todos os envolvidos.

HT – Sgundo a Global Entrepreneurship Monitor (GEM), em 2019, o Brasil atingiu o número de 52 milhões de pessoas com negócio próprio. Deste total, 9,031 milhões são microempreendedores individuais (MEIs), segundo pesquisa do Sebrae”. Como você enxerga esses números?

CS – A moda desceu do salto não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Esse movimento é global e marca o início de novos e desconhecidos tempos para essa indústria. Os valores que sempre mantiveram a moda dentro de uma aura dourada estão em plena crise de identidade. As majors mundiais do segmento, as highline brands, descobriram isso antes e estão conseguindo traduzir o espírito das ruas em seus produtos e coleções, sem perder o valor agregado (pelo menos até agora). Mas, se antes elas é que determinavam a cadência do setor, hoje já não têm tanto peso. É por isso – além das questões econômicas e sociais do nosso país – que presenciamos o boom do microempreendedorrismo. Imagine um espaço como o DFB Festival, em que designers, estilistas e artesãos estão em pé de igualdade com qualquer grande marca estruturada para apresentar suas propostas. Olha a potência disso! E quando os microempreendedores formais da moda representam quase 20% do total brasileiro é sinal de que uma nova realidade chegou e se estabeleceu de forma definitiva no sistema atual. Porém, não podemos esquecer que, além dos MEIs, a moda brasileira sofre com a informalidade e, levando isso em consideração, o número real de pessoas que obtêm rendimentos com confecção deve ser multiplicado. São milhões e milhões de pessoas que, com o tempo, alcançaram status de protagonistas da própria história. Ao mesmo tempo em que é um cenário animador, é profundamente desafiador nos prepararmos para o que vem por aí.

HT – O DFB, em sua essência, traz a pluralidade de estilos dentro da moda nacional. Como funciona essa curadoria de marca que integra o line up do evento?

CS – A manufatura do DFB sempre foi feita com esse objetivo: reunir vozes diferentes. Eu acredito que, quanto mais diverso, quanto mais plural o evento for, mais longe ele chega com sua mensagem de visibilidade e valorização dos talentos. O que amplifica nosso radar é o fato de sermos muito abertos a novas perspectivas. Além do meu feeling e do trabalho de minha esposa, Helena, na curadoria, a cada edição nós lançamos um edital de participação para que novos designers e marcas possam enviar suas propostas. Ou seja, ao invés de abordar somente quem já está trilhando seu caminho, nós somos provocados pelos criativos a abrir passagem também para aqueles nomes que nunca tiveram acesso a grandes públicos.

HT – Por conta da pandemia mundial, muitos eventos de moda no Brasil e no mundo foram adiados e/ ou cancelado. Como foi reinventar o DFB e trazer esse formato digital?

CS – O DFB Festival já se encontrava com toda uma estrutura montada, em um processo que tinha sido iniciado em agosto de 2019. O evento já estava marcado para o início do mês de maio, como já é tradicional. Mas com a pandemia e todos os procedimentos de segurança que devemos priorizar e realizar, o modelo tradicional já não poderia mais existir. Então pensamos em trabalhar um outro formato, com o digital e todo o alcance e plenitude das redes sociais. Essa se tornou a forma principal de veiculação das atividades. Podemos definir o DFB DigiFest como a versão online da programação do evento presencial.

HT – No dia 12 de maio, o Instagram do DFB postou um vídeo em que você cita que a criatividade é sempre uma saída para os momentos de crise. Você como idealizador de um dos mais importantes eventos de moda autoral do país de que maneira pode incentivar essas mudanças no setor?

CS – A moda vive um momento crítico e cheio de problemas, mas eu acredito em um futuro com grandes perspectivas. Por isso apresentamos esse conceito como temática principal deste ano. Temos que driblar todas essas dificuldades, e por isso o DFB está se reinventando. Vamos apresentar novos formatos e ações, ressignificando nosso trabalho.

HT – Quais são os prós e os contras de se fazer uma edição do DFB em forma digital? Como foi ou está sendo esse processo de readequação?

CS – Animar o público e os diferentes setores do projeto com este novo formato foi sem dúvida o nosso maior objetivo e preocupação. Mas nossos parceiros acreditaram em nossa ousadia e conseguimos dar continuidade ao maior encontro da moda autoral. Neste formato digital, conseguimos ampliar cada vez mais as ações realizadas por todos esses profissionais que merecem todo o nosso reconhecimento. O DFB em formato digital é um reconhecimento do esforço e da criatividade do brasileiro.

HT – Fala-se muito sobre o ‘novo normal’. O que Cláudio Silveira considera como ‘novo normal’?

CS – Uma das razões da moda é cobrir o efêmero com um verniz de duradouro. Por isso, é bom tomarmos cuidado com cada novo statement que nos é jogado no colo. Esse conceito de “novo normal”, pelo menos agora, me parece mais um desejo de mudança do que uma quebra real de paradigma. Quando as primeiras grandes lojas foram reabertas na Europa, semanas atrás, o tal “novo normal” foi esmagado pela realidade das filas formadas na porta da Louis Vuitton, da H&M, da Zara… Por isso, esse “novo normal” é, hoje, mais uma projeção idealizada do que um projeto em execução. É claro que muitos processos já estão sendo repensados; as pessoas descobriram que talvez estivessem consumindo muito mais do que necessitavam, mas que o preço a ser pago estava ficando insustentável, principalmente no que se refere à exploração das reservas naturais e no abismo crescente entre as classes que produzem e as que exploram o negócio da moda como um todo. O “novo normal”, ao que tudo indica, deve se estabelecer de forma definitiva. Só não consigo afirmar quando isso vai acontecer.

HT – O DFB sempre foi um festival altamente inclusivo, em todos os seus olhares. Qual a sua visão sobre essas denúncias de racismo e gordofobia que estão vindo à tona?

CS – É absurdo constatar que certo tipo de comportamento ainda persiste nessa indústria que, tradicionalmente, sempre foi plural e diversa. Minha visão à frente do DFB Festival se traduz nas ações que, ano após ano, implementamos. Seja na valorização de questões de gênero – lançamos a Valentina Sampaio, que é uma das maiores modelos trans do mundo – seja na luta contra o preconceito racial. Nossas passarelas nunca tiveram hegemonia racial; estamos no Nordeste, somos 100% miscigenados e o DFB sempre serviu como reflexo étnico da nossa sociedade. Nossas campanhas publicitárias têm, predominantemente, modelos negros. Em 2019, tivemos uma modelo teen com síndrome de down na passarela, vários modelos da terceira idade e plus size, além de modelos trans no casting de vários desfiles. O que podemos melhorar é incentivar ainda mais a inclusão e a diversidade nas apresentações para que essa percepção chegue ao público de forma clara. Enfim, combater o racismo, o sexismo e outras formas de preconceito é uma ferramenta poderosa e tenho orgulho em dizer que estivemos também à frente em relação a esse assunto.

HT – Como serão feitos os lançamentos das coleções?

CS – Em um ano que a gente se reinventa como “digital”, nossas iniciativas de promoção da moda autoral também tinham que passar por uma nova formatação. Estamos chamando o line up desta edição de LiveModa, ou seja: durante uma semana, em julho, iremos apresentar uma programação de desfiles e talks com conteúdo 100% produzido à distância. E como a missão do DigiFest 2020 é colaborar na geração de renda para profissionais da moda impactados pela pandemia, iremos remunerar um casting de modelos das duas principais agências do Ceará, que apresentarão os looks de 10 marcas autorais e da indústria de um jeito que nunca experimentamos antes, com segurança sanitária total para todos os envolvidos. Vai ser um desafio e é um projeto que estamos terminando de alinhar os últimos detalhes. Ganham as marcas, que terão o suporte do DFB DigiFest para divulgar seus lançamentos, ganham as modelos, que voltam a atuar em uma área totalmente paralisada.

HT – Vimos que o concurso dos Novos está sendo uma das grandes apostas dessa edição do DFB Digital. Qual a importância de incentivar esses novos nomes neste momento?

CS – O Concurso dos Novos tem como principal objetivo promover para os estudantes de moda uma imersão no segmento, que é tão rico e plural. O projeto é idealizado para oferecer oportunidades e visibilidade para novos talentos e estudantes de moda de todo o nosso país. Este ano, mesmo que de uma forma digital, não poderíamos deixar de realizar essa iniciativa tão maravilhosa.