A era delxs: como a discussão sobre gênero invadiu diferentes esferas da cultura popular e levou visibilidade às minorias


Da polêmica entrevista de Bruce Jenner e a ascensão de Laverne Cox à transformação de Andreja Pejic e John Jolie-Pitt, transgêneros estão ganhando mais representação – da maneira certa – do que nunca

Nunca a discussão sobre gênero esteve tão presente na grande mídia e nas mais diferentes esferas da cultura como nos dias atuais. Para onde se vira, desde reality shows a desfiles de moda, o assunto se faz presente e, mesmo que ainda haja um preconceito enraizado, nada melhor para mudar o cenário atual e a percepção geral do que visibilidade, algo negado há muito tempo para as minorias sociais dessa ordem. E o assunto não permeia apenas os canais internacionais, mas marca presença forte no Brasil, mesmo que sofra a repressão por parte de Malafaias, Bolsonaros e seus seguidores.

Mas, primeiro, vamos ao exterior. Um dos assuntos mais comentados da semana foi a polêmica entrevista que Bruce Jenner concedeu a Diane Sawyer, a qual você acompanhou aqui. É justo dizer que Bruce, um dos maiores atletas nos anos 1970 e vencedor de medalha olímpica por seu desempenho em decatlo, tem se mantido relevante nos dias atuais graças ao império midiático que sua família construiu. Membro querido e ativo do “Klã Kardashian-Jenner”, o ex-atleta tem despertado a curiosidade do público há meses com a sua transição de gênero, que só foi confirmada, de fato, agora.

Bruce Jenner durante a entrevista à Diane Sawyer (esq.) e durante os anos 1970, no seu auge atlético (dir.)

Bruce Jenner durante a entrevista à Diane Sawyer (esq.) e durante os anos 1970, no seu auge atlético (dir.)

Mais do que erguer definitivamente a sua bandeira de “celebridade”, Bruce Jenner, com a ajuda de uma das jornalistas mais conhecidas e respeitadas dos Estados Unidos, deu um show de coragem e uma verdadeira aula sobre como o “gênero” deve ser tratado. Ele não apenas se declarou como mulher, mas também disse que nunca se envolveu com um homem, desmembrando sexo e gênero em duas partes distintas da equação que forma a identidade de um ser humano. A reportagem, mesmo que focada em sua nova persona, era intercalada com pequenas pílulas nas quais a produção inseriu explicações quase didáticas sobre o tema: “Não é por se identificar como uma mulher que uma pessoa se sente sexualmente atraída por homens”, por exemplo.

Trecho da entrevista de Bruce Jenner para Diane Sawyer

Para os brasileiros, essa não é a primeira vez que a discussão sobre gênero chega ao mainstream por conta de uma “celebridade de reality show”. Em 2011, o país inteiro acompanhou o desenrolar da história de Ariadna, a primeira transexual a participar do Big Brother Brasil. Ela, por sua vez, bateu no peito, levantou a bandeira e ainda por cima estampou a capa da Playboy, feito que lembra o pioneirismo de Roberta Close com a revista na década de 1980.

No ano passado, o mundo inteiro se viu confuso e depois deslumbrado pela figura enigmática da austríaca Conchita Wurst. Sua pessoa desafia os padrões vigentes: com cabelos compridos, make perfeita e look impecavelmente feminino, a cantora faz questão de sustentar uma barba. Passado o estranhamento inicial, a figura pública de Conchita saiu da Eurovision e alcançou o mundo, com uma carreira profissional que já está em andamento.

Ariadna na capa da Playboy (esq.) e Conchita Wurst (dir.)

Ariadna na capa da Playboy (esq.) e Conchita Wurst (dir.)

Ainda no campo musical, o americano Mike Hadreas, que atende pelo nome de Perfume Genius nos palcos, lançou seu terceiro disco em 2014 e foi eleito como uma das melhores revelações do ano. Sua música mais famosa, “Queen”, traz um trocadilho com a palavra “queer” (designada para falar da cultura LGBT) e serve como uma espécie de hino gay da irreverência. Sua própria figura no videoclipe da faixa se encarrega disso: caracterizado como uma espécie de drag queen inspirada em um David Bowie menos caricato, Genius leva seu glamour ao extremo. Resultado: o cantor hoje já integra o lineup de festivais como o Glastonbury e aparece em editorias de revistas como a W. Até o mercado fonográfico brasileiro tem começado a mostrar suas cores, vide o recente lançamento da banda de drags As Baphônicas, inspiradas no triunfo de “RuPaul’s Drag Race”, que também tem influenciado movimentos coletivos como o Drag-Se, no Rio de Janeiro.

Perfume Genius – “Queen”

A TV, além de estar aos poucos mostrando casais gays como, por exemplo, aquele vivido por Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg em “Babilônia” (como é de se esperar, a diversidade no Brasil ainda perde em grande número com relação ao resto do mundo), já tem uma musa e representante oficial dos transgêneros: Laverne Cox, a transexual que despontou com a série “Orange Is The New Black” e é figura constante em talk shows norte-americanos, onde aborda sua sexualidade e o combate ao preconceito, além de ter entrado para a lista de 100 pessoas mais influentes do mundo, de acordo com a revista TIME.

Laverne Cox em imagem promocional da série "Orange Is The New Black" e na capa da TIME, revista que a elegeu como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo

Laverne Cox em imagem promocional da série “Orange Is The New Black” e na capa da TIME, revista que a elegeu como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo

Por mais que tenha rendido alguns comentários absurdos e homofóbicos de gente do porte de Giorgio Armani e da dupla (Domenico) Dolce & (Stefano) Gabbana recentemente, a moda também está construindo já há alguns anos os seus próprios ícones trans. Um dos maiores exemplos, diga-se de passagem, vem do Brasil: Lea T., que fala abertamente sobre a transfobia vivida no país (como você lê em nossa entrevista exclusiva com ela), fez sucesso no exterior com campanhas como a da Givenchy e, a mais recentemente, como garota-propaganda da Redken, marca pertencente ao grupo L’Oréal e de grande projeção mundial. Ao se tornar o rosto de um nome importante de produtos para o cabelo, Léa representa um tipo de beleza que pode (e deve!) ser almejado pelas mulheres, transgêneros ou não.

Léa abriu o caminho e, hoje, é possível ver gente como Carol Marra e Andreja Pajic despontando no cenário mundial das passarelas e campanhas. Esta última, por sinal, merece um olhar mais atento. A moça começou sua carreira como o modelo andrógino Andrej Pejic. No ano passado, Andrej, considerado como it model dos editoriais e passarelas, passou pela cirurgia de mudança de sexo e, por mais que pareça surpreendente, encarou certa resistência da indústria. “Houve definitivamente um monte de ‘Oh, você vai perder o que é especial sobre você e não será mais interessante. Existem várias garotas bonitas por aí'”, disse sobre a reação geral à sua cirurgia de mudança de sexo, realizada no ano passado e amplamente discutida/observada pela mídia. A entrevista foi concedida à edição de maio da Vogue americana, o que por si só já é um motivo de comemoração, já que a revista nunca deu espaço para um perfil inteiro sobre uma modelo transgênero na sua história. Hoje, Andreja é também a primeira modelo transexual a estrelar uma campanha de cosméticos, no caso, da Make Up For Ever.

Na esq., Lea T. em campanha da Redken; na dir., Andreja Pejic em perfil da Vogue US

Na esq., Lea T. em campanha da Redken; na dir., Andreja Pejic em perfil da Vogue US

A influência do assunto e o debate em questão chegaram ao público infantil, reforçando a ideia de que o gênero deve ser aceito desde criança, quando os primeiros sinais podem começar a aparecer. O caso mais famoso, provavelmente, é o de Shiloh Jolie-Pitt, filha de Angelina Jolie e Brad Pitt que, de acordo com a própria mãe, já se identifica como um menino aos oito anos e quer ser chamado de John. “Ela quer ser um garoto. Então tivemos que cortar seu cabelo. Ela gosta de usar tudo o que é de menino e acha que é um dos irmãos”, declarou a atriz à Vanity Fair, em 2010. Na pré-estreia de “Invencível”, filme dirigido por Angelina, lá estava John, de terno e cabelinho curto, esbanjando fofura e atitude.

À esq., Shiloh ainda jovem, com roupas femininas e, à dir., como John na pré-estreia de "Invencível"

À esq., Shiloh ainda jovem, com roupas femininas e, à dir., como John na pré-estreia de “Invencível”

A Clean & Clear, marca conceituada no ramo de perfumaria, escalou para a a sua campanha “See The Real Me” (“Veja o verdadeiro eu”, em tradução livre) uma garota trans de 14 anos, Jazz Jennings, diagnosticada com “Inadequação de gênero” aos três anos. E, por aqui, a revista Escola estampou sua capa de fevereiro com o menino Romeo Clarke, de cinco anos, que foi suspenso da escola por usar vestidos. A importância de alertar os professores e diretores brasileiros para o tema, em uma publicação de circulação e respeito nacionais, é imensurável.

Campanha da Clean & Clear estrelada por Jazz Jennings

Por mais que os sinais pareçam otimistas, muito ainda precisa mudar nos direitos LGBT e na forma como os transgêneros são vistos na nossa sociedade ocidental, principalmente no Brasil, onde travestis e transsexuais ainda são motivos de polêmicas nas ruas. Mas uma coisa é certa: a mudança está iminente. E, nessa nova era, só há uma escolha a ser feita: subir no trem ou ser atropelado por ele.