Quitéria Chagas volta a reinar no carnaval, fala da biografia e o que enfrentou na Itália com a morte do marido


Celebrando 25 anos de história no Carnaval, a atriz retorna ao Sambódromo à frente da bateria da Império Serrano. Nesta entrevista, Quitéria revisita sua história, fala de aposentadoria, etarismo, amadurecimento e detalha a morte do marido, o italiano Francesco Locati, em 2023 e a volta ao Brasil depois de tanto tempo na Itália. “Meu marido me aconselhou antes de falecer. Pediu para eu voltar e para eu resgatar a minha vida, tudo o que eu amo, a arte, a cultura brasileira, e é o que eu estou fazendo. É um renascimento de tudo que enfrentei. Ele partiu na minha frente e eu fechei seus olhos. Foi um peso muito grande e o samba cura, a arte cura, os nossos talentos quando são aflorados, enaltecidos, reconhecidos, tudo isso é curativo, tudo isso é importante pra minha vida”. Ela vai lançar sua biografia em fevereiro. “Muita coisa vai acontecer. Vai ter o lançamento da autobiografia, e a retomada da atuação, que eu tive que frear por conta do carnaval. Também tem outro livro no final do ano com a doutora Helena Theodoro, em que recontamos a história do Carnaval para as pessoas passarem a ter conhecimento e corrigir equívocos, rótulos, estereótipos e preconceitos”

*Por Brunna Condini

Quitéria Chagas, Rainha de Bateria da escola de samba Império Serrano já começa o ano com muitas novidades. Aos 44 anos, ela celebra em 2025 seus 25 anos de história no carnaval. Além disso, se prepara para o desfile na Império, que fecha os desfiles da Série Ouro, no sábado, dia 1º de março; e vai lançar sua biografia em fevereiro. “Este vai ser o ano, né? Muita coisa vai acontecer. Terá o lançamento da autobiografia, e a retomada da atuação, que eu tive que frear por conta do carnaval. Também tem outro livro no final do ano com a doutora Helena Theodoro, no qual recontamos a história do carnaval para as pessoas passarem a ter conhecimento e corrigir equívocos, rótulos, estereótipos e preconceitos. Teremos ainda, a peça desse livro que vai ser conosco e com o Antonio Pilar, mais para frente”, comemora.

Em sua biografia, Quitéria vai falar do caminho percorrido para que a mulher fosse valorizada dentro do samba. “Incluindo enfrentar o machismo, racismo, preconceito… a gente enfrenta até hoje, de maneiras veladas ou não. Tentamos jogar luz nestas questões para que as pessoas se reeduquem. Óbvio que ninguém nasce sabendo, nossa sociedade é complexa. Falo também da minha história de mulher preta, de como saí de passista para me tornar Rainha de Bateria, em uma época em que a maioria das mulheres que ocupavam esses postos eram mulheres brancas e midiáticas. E de como fiz um sistema ao contrário, estrategicamente, para me tornar ‘rainha’ sem ter dinheiro. Consegui ir para a mídia sendo uma pessoa da dança, participei de um concurso na TV no programa da Carla Perez, no SBT, quando mulheres pretas não eram muito vistas na televisão com este destaque. Depois disso, consegui trabalhar na TV, fui abrindo caminhos”. Abaixo, Quitéria revisita sua história, fala de aposentadoria, etarismo, amadurecimento e da perda do marido em 2023.

Quitéria Chagas faz 25 anos de Carnaval, se prepara para desfile, lança biografia e livro da história do samba, e anuncia que voltará a atuar em 2025 (Divulgação)

Quitéria Chagas faz 25 anos de Carnaval, se prepara para desfile, lança biografia e livro da história do samba, e anuncia que voltará a atuar em 2025 (Divulgação)

Não foi fácil trabalhar na TV, permanecer esses anos todos no carnaval. Foram muitos ‘leões’ por dia até aqui. Então, a minha luta, das minhas ancestrais, valeu a pena. Isso aconteceu para que hoje tivéssemos a maioria de mulheres pretas no samba, como Rainhas de Bateria e passistas por exemplo. E essas pessoas merecem, porque carregam o legado e a raiz do samba. O Carnaval é um espaço diverso, democrático e nele não cabem preconceitos, precisamos de equidade . Não podemos reforçar esteriótipos nocivos da mulher preta no samba, o carnaval não está à parte da cultura. O samba é a base da cultura brasileira – Quitéria Chagas

Ela afirma que não pensa em aposentadoria da folia, como chegou a divulgar em 2020, aos 39 anos. “Em 2020, eu disse que estava me aposentando porque tive vários agravantes. Morava no exterior, o custo do passageiro internacional é altíssimo, eu não tinha como ficar sendo uma pessoa muito frequente como Rainha de Bateria, então entreguei o cargo para a escola conseguir alguém que financiasse, ajudasse, porque sei das questões da agremiação, que na época precisava se levantar. Pensei muito mais na escola, do que em mim mesma, do que no meu amor pelo samba, pelo carnaval, já que ficaria complexo estar aqui como o cargo pedia. Mas continuei vindo como Rainha da Escola, abrindo desfile antes da comissão de frente, função que me deram pela minha história no samba, pela minha importância no carnaval. Eu vinha da Itália duas vezes por ano. A presença com a comunidade, aquela coisa toda, como Rainha da Escola não me exigia tanto, então pude manter isso e retornar agora em 2025 como Rainha da Bateria”.

Quitéria Chagas, Rainha de Bateria da escola de samba Império Serrano (Reprodução/Instagram)

Quitéria Chagas, Rainha de Bateria da escola de samba Império Serrano (Reprodução/Instagram)

Luto e ressignificação

Apesar do entusiamo e da potência, Quitéria vive uma perda irreparável há quase dois anos. Em 2023, seu marido, o empresário italiano Francesco Locati, com quem tem a filha, Elena, morreu em decorrência de um câncer. Ela relata tudo o que viveu: “Infelizmente, meu marido faleceu, mas a minha vida na Itália continua, porque tenho dupla cidadania. Tenho uma vida lá, mas escolhi voltar ao Brasil pelo acolhimento, pela sensibilidade do brasileiro, pelo calor humano e pelos processos de humanização, incluindo no hospital. O que vivi na Itália, eu não desejo a ninguém. Lá a cultura é diferente e eu não vou mudar a cultura deles. Então, apesar dos problemas do Brasil, a gente entende a importância do nosso país. Como ele é rico e importante, apesar da violência. A saúde física, mental e de existência por aqui não dá para comparar. Eu já tive a ilusão do brasileiro que pensa que a grama do vizinho é melhor por ser europeu, mas, depois de viver por sete anos lá, sei muito bem as problemáticas. Por isso, a decisão de estar aqui”, divide.

Meu marido me aconselhou antes de falecer, ele pediu pra eu voltar e para eu resgatar a minha vida, tudo o que eu amo, a arte, a cultura brasileira, e é o que eu estou fazendo. É um renascimento de tudo que enfrentei. Ele partiu na minha frente e eu fechei seus olhos. Foi um peso muito grande e o samba cura, a arte cura, os nossos talentos quando são aflorados, enaltecidos, reconhecidos, tudo isso é curativo, tudo isso é importante pra minha vida – Quitéria Chagas

Francesco Locati e Quitéria Chagas (Reprodução/Instagram)

Francesco Locati e Quitéria Chagas (Reprodução/Instagram)

“A perda dele foi fulminante, avassaladora, rápida. Só entendi o que que é um hospital na Itália quando ele ficou doente, eu não tinha ido a hospitais lá antes, nunca precisei, graças a Deus. A questão da saúde na Itália é complicada. Infelizmente, quando ele começou a se sentir mal, eu estava no carnaval, período das Campeãs. E ele estava segurando umas dores na coluna que começou a sentir do nada. Ficou travado e achou que estava com um problema na coluna, porém já estava com metástase e não sabia. O médico demorou a pedir uma ressonância, e quando ele fez os ossos já estavam degenerados. Nunca havia visto meu marido sentir medo, ele era um cara completamente corajoso, enfrentador da vida, leonino, mas ficou aflito, achou que ia morrer, mas por uma doença degenerativa dos ossos. Só que na verdade era um câncer fulminante, raríssimo, neurogângulo reto-intestinal. Sobre ele existem pouquíssimos artigos científicos. Tentei buscar informações, mandei os exames dele para o Brasil, mandei para tudo quanto é lugar, mas não teve jeito”.

Quitéria Chagas, Francesco Locati e a filha Elena (Reprodução/Instagram)

Quitéria Chagas, Francesco Locati e a filha Elena (Reprodução/Instagram)

Quitéria continua seu depoimento emocionado. “Francesco pediu que se ficasse vegetativo ou inválido, ele queria eutanásia, mas na Itália não é permitido, então ele teve que morrer da maneira que não queria, agonizando, e o pior é que os médicos da Itália não poupam o paciente ou sua acompanhante. Tive que enfrentar isso, e tive e dar esse suporte humanizado para ele, na medida do possível. Também confrontei o médico, porque ele não ia contar nem pra mim que meu marido ia falecer, eu não estaria preparada. Meu marido ainda tinha um pouco de consciência, lutava para viver mesmo com altas doses de morfina. Era um homem muito forte, tinha só 57 anos e foi se deteriorando, é horrível isso. O câncer é um animal que vai comendo por dentro. Ele faleceu em três dias, entrou em coma hepático na minha frente, olhou, chorou, teve a parada cardíaca na minha frente, sem respirador, e eu fechei os olhos dele”.

Me orgulho de ter conseguido quebrar todos os preconceitos, estereótipos e bloqueios sociais do início dos anos 2000. Quando eu entrei como passista e me tornei Rainha de Bateria do Império Serrano, graças aos antigos do Império que me chancelaram, e disseram que eu era importante pra escola, e que seria importante resgatar essa coroa preta de uma mulher preta do samba, para continuar o legado dos antigos da escola. E na minha trajetória têm as questões do feminino que fiz parte como doula também, minha formação na psicologia. Então, estou em diversas frentes do mundo feminino, da importância do valor da mulher no samba, da mulher como um todo – Quitéria Chagas

O presente

E avalia a vida no agora: “Morar em Milão ficou inviável. Era muita memória, vir pro Brasil foi a melhor coisa que eu e minha filha fizemos. Estamos muito melhor agora e muito mais felizes aqui. Estou na melhor fase da minha vida, apesar de ter tido uma perda gigante. Quero continuar trabalhando. Não existe a aposentadoria para quem faz arte, né? Obviamente as funções corporais vão reduzindo com o envelhecimento, porém hoje temos uma qualidade de vida com o passar dos anos, uma longevidade muito melhor. Teremos profissionais por muito tempo sambando, dançando, fazendo balé, fazendo esporte. Enfim, essa coisa do etarismo, da faixa etária, de você perguntar, questionar quando o outro vai parar, se aposentar, isso vai cair por terra, porque as pessoas estão seguindo em frente. Vou sambar até o fim da minha vida, veloz ou não, não interessa, porque eu estarei presente, é a arte que me move. Não existe uma regra que invalide pessoas sambando e nem no samba, nem desfilantes, nem nada, ainda mais tendo a história que  tenho. Vou ficar a vida inteira fazendo e exercendo o que sou”.

"Me orgulho de ter conseguido quebrar todos os preconceitos, estereótipos e bloqueios sociais do início dos anos 2000" (Divulgação)

“Me orgulho de ter conseguido quebrar todos os preconceitos, estereótipos e bloqueios sociais do início dos anos 2000” (Divulgação)

Dois livros até o fim do ano

Tanto na biografia, quanto no livro que vai lançar com a  historiadora Helena Theodoro, Quitéria diz que terá destaque a visibilidade das pessoas pretas na história do samba. “Vou falar desses enfrentamentos, porque eu entrei em um marco de época, o início dos anos 2000, em que a maioria dos cargos eram pagos, por personalidades brancas midiáticas em sua maioria, como o de Rainha de Bateria, por exemplo. Descoroaram mulheres pretas do samba, que ficaram invisibilizadas na história do Carnaval, e hoje já existem registros históricos dessas personalidades. Aconteceu um apagamento da história das fundadoras, das mulheres pioneiras, que exitiram desde os primeiros ranchos carnavalescos e das primeiras escolas de samba. Por conta do machismo e do racismo da época, essas mulheres foram ocultadas pela mídia. Essa reparação histórica precisa ser feita. E eu, junto à doutora Helena Theodoro, a maior historiadora de samba deste país, uma mulher preta que viu escolas em sua fundação, e chancela toda a importância disso, lançarmos até o final do ano esse livro recontando a história do Carnaval, mas por gente preta agora. Vivemos em uma sociedade que fala do carnaval, sem conhecer. Quem pode falar do carnaval é quem o vive”.

É muito importante ter essa equidade, e eu como uma veterana do samba tenho a missão de dar voz a isso, para as pessoas refletirem, porque tudo está atrelado ao preconceito, ao racismo, ao classicismo, só que velado. As pessoas reproduzem e se esquecem, aí é bom a gente enfatizar. Esse meu retorno também faz parte disso, porque valorizando os profissionais do samba, a gente valoriza as escolas de samba e a história do samba, e todo o carnaval em si – Quitéria Chagas

"Quero continuar trabalhando. Não existe a aposentadoria para quem faz arte, né?" (Divulgação)

“Quero continuar trabalhando. Não existe a aposentadoria para quem faz arte, né?” (Divulgação)