Verônica Bonfim vai interpretar a primeira Mamãe Noel negra do audiovisual e em uma família interracial


A atriz, cantora, compositora, escritora e professora é uma das protagonistas da série Liga do Natal – Uma Aventura no Rio, que vai ser exibida agora, em dezembro, na TV e na Internet. “Achei de uma coragem, inovação e de uma grandeza a produção propor mostrar uma Mamãe Noel negra, que diz muito sobre nós no Brasil”. Ela, que também é ativista afirma: “Sou artista negra, uma ativista em movimento, que utiliza a arte como instrumento de mobilização, transformação política, e mudança social para as chamadas minorias, mas que sabemos que não são minorias. No entanto, não tem acesso nem tem resguardado os seus direitos. Então, luto por questões relacionadas aos direitos humanos, das populações negra e LGBTI +, nas quais me incluo”

* Por Carlos Lima Costa

Um trabalho de extrema importância no que concerne a representatividade e referência para os negros em um país repleto de desigualdades e preconceitos. Assim, a atriz, escritora, cantora, compositora, professora, ambientalista e ativista pelas causas das minorias Verônica Bonfim enxerga a função de sua personagem em Liga do Natal – Uma Aventura no Rio, primeira série natalina onde ela interpreta a Mamãe Noel. “Esta produção propõe que o Papai Noel, vivido pelo Beto Vandesteen, um ator incrível, tenha uma companheira, a Mamãe Noel, que não é uma senhora gordinha, de bochecha rosa, branquinha do Polo Norte. É uma mulher negra! Achei de uma coragem, inovação e de uma grandeza a produção propor isso, uma família interracial que diz muito sobre nós no Brasil. Somos essa mistura. Eu mesma, minha mãe é branca e meu pai era negro”, pontua.

E acrescenta: “Nada que não passa pela nossa vivência vai causar impacto no outro. Quando falo que sou ativista e que a minha arte propõe uma mudança, ela parte de mim. Só posso mudar o mundo se estiver disposta a mudar dentro de mim. Como disse, venho de família interracial e, todos os dias, desde que era criança, no Natal, vejo aquela família à mesa, da ceia, em todas as televisões. Uma família branca que não me representa. E aí a Liga do Natal me vem agora com essa proposta. Caramba! Nunca tive oportunidade de ver o que as crianças vão ver agora, uma mulher negra fazendo a Mamãe Noel. Isso é tão importante. É dizer para essas crianças que essa família existe, não está só na ficção, ela é a sua família. Então, estou honrada de fazer este trabalho, de interpretar a primeira Mamãe Noel negra do audiovisual. E além disso, ela é empoderada, tem um programa de culinária na TV, e é companheira do Papai Noel, não uma serviçal da família, o que também é uma mudança de paradigma da função da mulher”, vibra Verônica, orgulhosa de seu trabalho nessa série para TV e internet, com narrativa educativa de entretenimento, que vai ser exibida em três episódios, dias 5, 12 e 19 de dezembro, na InterTV, afliliada da Rede Globo para Região Serrana e Região dos Lagos, e no YouTube.

Em Liga do Natal, Verônica interpreta a Mamãe Noel (Foto: Juliana Chalita)

Em Liga do Natal, Verônica interpreta a Mamãe Noel (Foto: Juliana Chalita)

Um papel emblemático que remete ao especial Juntos A Magia Acontece, exibido ano passado, na Globo. “Foi uma produção lindíssima, tendo pela primeira vez uma família negra, onde o Papai Noel, essa figura simbólica do imaginário da humanidade, que vem lá do Polo Norte, aquele homem gordinho, carismático, foi vivido pelo Milton Gonçalves. Quando uma emissora como a Globo propôs mostrar um Papai Noel próximo à realidade do Brasil foi ganho imensurável para uma discussão que precisamos fazer com relação à representatividade. Dizer que o Papai Noel é figura que pode ser humanizada e que ele é o seu papai, o seu vovô que está na sua casa com você e não só essa figura fictícia. Isso foi lindo. Afinal, se somos 54% da população como podemos não nos ver representados”, lembra.

Mamãe Noel e Papai Noel vividos por Verônica Bonfim e Beto Vandesteen (Foto: Juliana Chalita)

Mamãe Noel e Papai Noel vividos por Verônica Bonfim e Beto Vandesteen (Foto: Juliana Chalita)

A atriz faz questão de lembrar os outros artistas negros que estão no elenco principal da série Liga do Natal, que tem direção geral de Priscylla Mesquita, também idealizadora do projeto: Nady Oliveira, Marcos Camelo e Kelson Succi, que interpretam respectivamente a Estrela Guia, o Duende e Lino. “Você vê como se privilegiou também a diversidade dentro do projeto. Acho importante isso ser dito”, frisa. Seguindo todos os protocolos de segurança sanitária, as gravações foram realizadas em outubro e novembro. Na história, ao descobrir pelas mídias sociais que existe uma liga anti Natal que planeja invadir sua casa no Polo Norte, Papai Noel e sua turma, para garantir a festa de final de ano, se refugiam no Rio de Janeiro.

Elenco da série Liga do Natal - Uma Aventura no Rio (Foto: Juliana Chalita)

Elenco da série Liga do Natal – Uma Aventura no Rio (Foto: Juliana Chalita)

Verônica faz questão de frisar as questões pelas quais ela batalha por justiça e mudanças. “Sou artista negra, uma ativista em movimento, que utiliza a arte como instrumento de mobilização, transformação política, e mudança social para as chamadas minorias, mas que sabemos que não são minorias. No entanto, não tem acesso nem tem resguardado os seus direitos. Então, luto por questões relacionadas aos direitos humanos, da população negra e da LGBTI +, populações nas quais me incluo. Todos esses atravessamentos passam pelo meu corpo. Não tem como fazer uma arte que não fale sobre isso. Sou autora, tenho livro infantil, que dialoga com criança essa linguagem de afro literatura. Não tem como escrever uma história que não seja a minha, dos meus, da minha vivência. Por isso, me considero uma artista brincante, aquela que brinca para contar e cantar histórias para os outros. Faço de forma propositiva e séria para empoderar e transformar o mundo a minha volta. A arte tem poder de cura e transformação, também do planeta, sou ambientalista”, enfatiza.

Filha de mãe branca e pai negro, a artista de 46 anos já foi vítima de preconceito. “Como no Brasil, o racismo é velado, se você vem de uma família interracial como eu, demora a perceber que essas agressões são de cunho racista, até porque, na minha época, não se falava tanto nesse tema quanto agora. Meus apelidos na escola eram cabelo de bombril, nega do cabelo duro. Isso me incomodava. A questão racial no Brasil é muito delicada e a gente passa por cima dela, porque ela é velada. Tenho três irmãs. Quando alguém chegava lá em casa e a gente atendia, falavam ‘vai chamar sua patroa’. A gente era tratada assim na nossa própria casa. Não imaginavam que éramos filhas da nossa mãe. Em suas quatro gestações, minha mãe era chamada de barriga suja, que é quando uma mulher branca casada com preto, vai ter filho preto, pardo. Isso é muito sério”, relata.

E enfatiza: “Existe sim racismo no Brasil no momento que a estrutura impede que pessoas de cor consigam ter os mesmos privilégios de uma hegemonia branca. Demorei para perceber o abismo que nos separa. E, olha, sou mulher negra, nordestina, latino-americana, brasileira, lésbica, imagina, estou em todas as minorias possíveis, uma população marginalizada do sistema. Se é preto, indígena, transexual, não binário, homem gay, transgênero, você é diferente, sofre opressões e violências, porque não está dentro de uma norma da sociedade.” Verônica, inclusive, ministra o workshop Um Corpo Negro e Lésbico em Cena: Atravessamentos, Movimento, Ressignificação e Expansão.

Entre outras profissões, Verônica é cantora (Foto: Carmen Campos)

Entre outras profissões, Verônica é cantora (Foto: Carmen Campos)

Verônica ressalta que o exercício para quem não é negro é escutar, ter empatia, se colocar no lugar do negro e imaginar que jamais o segurança de uma loja ou supermercado vai ficar perseguindo para saber se vai roubar algo. “Eu já passei por essa situação, todos os meus amigos negros já passaram por isso uma vez na vida. Em uma loja, atendem a pessoa branca com a maior presteza. Já o negro, é como se nem estivesse ali, ignoram a existência”, realça.

Verônica se deu conta que é lésbica por volta dos 14 anos. “Venho de uma época superconservadora. Quando comecei a entender um pouco a minha sexualidade eu me escondi muito. Não entendia bem o que estava acontecendo, mas sabia que aquilo era considerado diferente. Ai disse para mim mesma: ‘Não posso falar sobre isso, mas sei que errada eu não estou (risos)’. Deus prega o amor, então, ele não ia castigar quem ama, independentemente de quem eu amasse”, lembra.

Nos bastidores da série 3%, da Netflix (Foto: Divulgação)

Nos bastidores da série 3%, da Netflix (Foto: Divulgação)

“Diferente das crianças de hoje, eu não era menina precoce. No interior da Bahia, podia brincar até tarde da noite, ficava jogando bola, brincando de boneca, não sexualizei cedo. Eu entendia que gostava de menina e que era natural, mas não falava para ninguém, porque eu sabia que iam me questionar. Com 20 anos, me apaixonei por uma mulher, aí sim, contei para a minha família e foi maravilhoso, um alívio, tirei um peso do ombro de ficar me escondendo e a partir daquele momento, acolhida pela família, me assumi, me senti livre para viver a minha sexualidade da melhor maneira que eu quisesse”, acrescenta.

Em cena do musical Elza, Verônica Bonfim interpreta Elza Soares (Foto: Jonathan Marques)

Em cena do musical Elza, Verônica Bonfim interpreta a cantora Elza Soares (Foto: Jonathan Marques)

Na questão artística, primeiro vieram a poesia e a música. “A veia artística sempre existiu desde os meus 15 anos. Nasci em Ubatã e com menos de um ano  fui para Itabuna, onde fui criada. Vindo do interior da Bahia, onde não tem nem teatro, é difícil você imaginar que vai ser artista um dia. Cresci com grande paixão com relação a questão ambiental e dei vazão a isso, porque não achava que fosse poder viver de arte um dia”, recorda, ela que se mudou para o Rio, em 2007. Formada em Engenharia Florestal, há uns 15 anos, leciona em universidades. “Atualmente, dou uma aula por semana, porque a carreira artística, que mantinha em paralelo, tomou uma proporção maior. Hoje, vivo de arte basicamente, não da minha carreira acadêmica”, diz ela, doutora em Ciência Florestal.

Em 2016, Verônica publicou seu primeiro livro para crianças, A Menina Akili e seu Tambor Falante, e pretende fazer dele seu primeiro musical infantil, com estreia prevista para outubro de 2021, no Oi Futuro Flamengo, tendo ela no papel título. “É voltado para todas as famílias, mas que tem uma importância com relação a discussão racial muito forte e fala de empoderamento feminino, da infância, do respeito as nossas identidades e a nossa ancestralidade, e fala das diferenças”, adianta ela, que em 2005, participou durante seis das dez semanas da quarta edição do programa Fama, cantando MPB.

Agora, em 2020, aproveitou parte do tempo da quarentena para compor. “A pandemia imprimiu outro ritmo, mas desde que começou, em março, eu não parei. Já vinha nesse movimento de não parar, de aproveitar quando não estou trabalhando em projetos dos outros, para dar conta dos meus projetos autorais, o que não me remunera (risos). Então, toda vez que da uma pausa, aproveito para cuidar das minhas canções, dos meus projetos. A pandemia me trouxe essa coisa de fazer lives o tempo todo e estar colaborando com os projetos dos outros. Não posso reclamar”, conta ela, que na TV aberta fez pequenas participações em novelas como Malhação e Segundo Sol e tem brilhado em canais pagos, como no seriado Além da Ilha, com Paulo Gustavo, na Globoplay, e que está agora no Multishow; De Sonhos e Segredos, de Oswaldo Montenegro, onde participou das duas temporadas, como uma mulher trans e uma mentirosa compulsiva, e a série 3%, da Netflix. “Este é meu maior trabalho no audiovisual, minha maior vitória, que está no ar agora, uma série bem legal, que tem muita audiência lá fora, principalmente nos Estados Unidos”, aponta.

Outro trabalho que a emocionou muito foi o espetáculo Elza, no teatro. “Um projeto muito importante, porque foi o primeiro musical no Brasil feito com protagonismo todo de mulheres negras para falar da vida dessa mulher, que é uma das maiores artistas vivas do mundo, a Elza Soares. Sete atrizes se revezando em várias Elzas e também nos papéis dos homens da vida dela”, lembra.